quarta-feira, 28 de agosto de 2013

As vergonhosas aventuras de uma filósofa: sobre compromissos metafísicos com o oportunismo

 [Augusto Machado]

Diz o discurso ideológico da filosofia que ela tem o compromisso com a verdade. Mas talvez, assim como o jornalismo, ela, dada sua capacidade de manipulação, esteja mais próxima das artes circenses. A sombra sofista persiste na ágora e a filosofia volta e meia retorna às suas origens!

Foi um choque (?), sobretudo para os manifestantes cariocas, que há meses tocam uma jornada de luta heroica contra um governo (da aliança governista) assassino e mafioso, as declarações da "filósofa" Marilena Chauí para a sombria PM rio. Para ela, facistas são os Black Blocks (grupos de autodefesa nas manifestações). E não a Polícia brasileira que persegue, fere, reprime arbitrariamente, tortura e até mata quem se levanta por uma causa justa. Nem as empresas e governos e controlam essa máquina feroz.

Parece que a filósofa vê "fascismo" em tudo que não condiz com seu PT. Em uma palestra para o PCdoB, recentemente, ela taxava toda a classe média de fascista. Seria uma defesa pura e sectária do proletariado? Obviamente que não. Agora são os manifestantes, que desejam por um basta na chacina e guetificação dos pobres cariocas, os fascistas. Quanto rigor conceitual!

Vejamos os malabarismos:

“Temos três formas de se colocar. Coloco os “blacks' na fascista. Não é anarquismo, embora se apresentem assim. Porque, no caso do anarquista, o outro [indivíduo] nunca é seu alvo. Com os “blacks', as outras pessoas são o alvo, tanto quanto as coisas”, disse ela. Chaui afirmou ainda que as manifestações de junho em nada se assemelham aos protestos de maio de 1968, na França.  Para ela, as reivindicações atuais dialogam com o poder constituído, o Estado. “O grande lema [em 1968] era: é proibido proibir porque nós somos contra todas as formas de poder. Não se reivindicou nada. [...] As manifestações de junho não disseram “não' a coisa nenhuma. Eles se dirigiram ao poder, ao Estado e pediram diminuição da tarifa, mais verba para educação, saúde, CPIs e auditorias contra a corrupção e contra a Copa. Fizeram demandas institucionais ao poder.”[Retirado da Folha]

Impossível não comentar:

1- No plano político ou militar há pessoas e "coisas", que encarnam instituições, ideologias, bandeiras. Para ela a luta política é uma luta de significações, ou melhor, só possível nas urnas!

2- Em qualquer blog adolescente se encontra uma definição de 68 como esta. Não se reivindicou nada nos EUA, na França, na Itália, nas ditaduras latino-americanas?

3- Junho não disse não? Nós que somos muito pessimistas ao ler "não queremos mais uma vida caótica!", onde na verdade haveria "queremos uma vida mais digna". Malabarismo sagaz! O fato é que essas demandas institucionais põem em cheque o próprio formato pobre do Estado e democracia brasileira.

Talvez a filósofa tenha se sentido um pouco um Adorno de saias e tupiniquim. O grande teórico alemão, nos levantes de 68, preferiu não sair de sua mansão de mármore para compreender e apoiar as ruas e chamar tudo que via uma ameaça ao seu recanto e de caráter fascista. O acontecimento mais marcante foi a ocupação estudantil na Universidade de Frankfurt, finalizada com a atuação da polícia chamada pelo próprio Adorno. Em sua entrevista "a filosofia muda o mundo ao manter-se como teoria" fala:

"O poeta Grabbe tem uma sentença: “Pois nada senão o  desespero pode salvar-nos”. Isto é provocador, mas nada tem de tolo. Não  vejo como condenar que se seja desesperançado, pessimista, negativo no  mundo em que vivemos."

Que destino negro esses dos grandes iluminados, viver num mundo de massas irracionais e violentas (sejam da classe média, ou da população rebelde e pobre)! Que o CNPQ e a PMERJ nos salve! Para eles, o anti-intelectualismo (ou seja, anti-academia burguesa) é o maior sinal de fascismo. E não a perseguição e eliminação sistemática da população pobre e dos movimentos populares. Veem no critério da prática um viés burguês, mas não veem em si um comportamento pior: aristocrático.

Em crítica a Adorno, Marcuse escreveu à época a legitimidade de ocupações de prédios, por exemplo, e que "na medida em que a democracia burguesa (em virtude de suas antinomias imanentes) se fecha à transformação qualitativa, e isso por meio do próprio processo democrático-parlamentar, a oposição extraparlamentar torna-se a única forma de "contestation": "civil disobedience", ação direta. E as formas dessa ação não seguem mais o esquema tradicional.". Um intelectual é mais honesto quando desce de se pedestal e reconhece que a história e as contradições na massa vão além que suas laudas e notas de rodapé fechadas.

O Batalhão de Choque coordena a repressão na rua; no quartel, quem dirige o batalhão ideológico é um intelectual "progressista" do PT. Tiro para todos os lados! Tudo em prol das instituições democráticas do Rio! Afinal, vivemos uma revolução no país - ordeira, claro, pois somos civilizados. E um processo de revolução avançado: estamos conseguindo até mesmo mexer numa das formas de opressão mais profundas no Brasil, a opressão contra a mulher... através da Bolsa família (sic, segundo Chauí), essa estranha espécie de revolução cultural que coexiste com a submissão estatal e econômica, e cuja direção revolucionária é um banco internacional... Essa dialética não conseguimos captar, talvez com um doutorado na USP possamos um dia. Ou melhor, com doutorado em oportunismo, possível em estágios nas centrais sindicais pelegas e partidos reformistas.

Quem sabe nos próximos acontecimentos vejamos uma uspiana do escalão de Chauí se juntando com a equipe das Olavetes (Pondé e cia) para mais algumas "alianças táticas" filosóficas. Pois no mercado eleitoral, a verdade é só mais uma mercadoria.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Notas sobre o livro póstumo de Hobsbawm




A "anti-arte industrial" de Warhol, massificada e vazia: avanço ou retrocesso à cultura burguesa tradicional?


Hobsbawm se foi no final de 2012, levando toda a sua erudição. Ainda é um autor progressista? A Veja, à época, o chamou de "idiota moral", denunciando seu "marxismo irredutível", apesar de elogiar seu "talento". Não nos apressemos: a linguagem histérica desse podre exemplar do monopólio do reacionarismo de vanguarda (e seus nefastos objetivos) é capaz de acusar o próprio sol de comunista quando avermelha o céu. Na realidade o historiador nos seus últimos anos de vida chegou ao ápice de uma ambiguidade política típica de um revisionista: chegando a apontar a "relevância de Marx" na atual crise juntamente com declarações anticomunistas comuns a qualquer formador de opinião ocidental do pós-guerra fria (formado na melhor escola arendtiana do "totalitarismo").

Em "Tempos Fraturados - cultura e sociedade no século XX", vemos esse Hobsbawm ambíguo, mais pra lá do que pra cá, com um realismo/ceticismo exemplar em relação à possibilidade de um futuro para além do capitalismo. Talvez tenha se tornado inconveniente nos círculos acadêmicos negar a plausibilidade do regime democrático-liberal que força sua entrada nos últimos rincões do mundo, sem nenhuma alternativa à altura - em oposição aos estranhos e cruéis "totalitarismos" socialistas do passado que impunham uma ditadura popular a seus habitantes e ameaçavam o cotidiano morno de um homem das letras. De qualquer forma, como em Era dos Extremos, sua posição política não enche de desonestidades suas análises e dados a ponto de inviabilizar sua leitura. Estamos diante de um intelectual que, em alguns assuntos, conseguiu a proeza de não perder a lucidez.

Então tentando isolar sua falta de "prognóstico", e consequente neutralismo do presente, vejamos o que ele traz, e uma possível explicação que leve a um terreno marxista.

O livro é um exemplar de seu projeto de história social e cultural, sobretudo do século XIX para cá, contendo várias palestras, artigos dos últimos anos de sua vida, já publicados ou inéditos. Felizmente, isso não coloca o livro dentro da teoria da história e da historiografia "pós-moderna" em voga (mais próxima da literatura solipsista). Hobsbawm é um dos poucos historiadores contemporâneos do período após a moda da "História Nova/Estudos culturais" que manteve um mínimo de decência materialista em suas análises culturais, em oposição à ironia em relação ao marxismo e a qualquer análise científica dessa corrente. Ele toma as principais transformações da cultura nas sociedades humanas modernas/ocidentalizadas (e outras nem tão principais assim...) entre a consolidação burguesa e o iniciante século XXI, relacionando-as com as relações geopolíticas e econômicas.

Tomemos as linhas principais, e deixemos seus capítulos de exercício erudito e hermenêutico de lado. Hobsbawm quer saber sobre a decadência da sociedade burguesa tradicional, através das mudanças sociais do século XX, e que nos fez herdar um mundo aparentemente tão complexo quanto o de hoje. Para ele, as revoluções tecnológicas alteraram de forma significativa as formas de sociabilidade e de produção artística em todo o mundo. A ideologia na sociedade burguesa não é mais a mesma: eis um ponto que muitos marxistas resistem a compreender, renovando apenas seu "repertório" econômico e político, e deixando sua visão sobre a ideologia (as formas de construção de identidade, produção e luta simbólica entre as classes) intacta desde meados do século XX.

Que alterações foram essas? Segundo Hobsbawm: "o muro que separa cultura e vida, reverência e consumo, trabalho e lazer, corpo e espírito, está sendo derrubado. Em outras palavras, "cultura" no sentido burguês criticamente avaliativo do mundo cede a vez à cultura no sentido antropológico puramente descritivo.". Aquele mundo das artes e da cultura de elite, acessível a poucos iluminados, em espaços públicos determinados e quase sagrados (museus, óperas etc.) se foi - e parece ter sido corrompido para sempre. A sociedade atual possui um formato muito diverso daquele representado pelas cidades burguesas europeias com claras distinções entre cultura "alta" e popular.

Abrindo um parêntese, há de se perguntar, no entanto, se esse mundo que não encontrou espaço no século XX deve ser chamado de "burguês tradicional". Ora, o próprio Hobsbawm aponta que ele foi montado em muitos aspectos por traços não-democráticos (meritocráticos) e principescos, herdados de um passado recente aristocrático. A sociedade de massa do século XX, e agora, a chamada sociedade de massa individualizada do século XXI, não seria mais próximo aos ideais universais burgueses, e ao seu modo de produção industrial (e não artesanal)? Isso nos faz lembrar as teorias que afirmam um presente "pós-capitalista", por identificar capitalismo apenas suas fases nascentes (supostamente "descritas" no Capital de Marx, nesse sentido, não mais útil). O que é uma bizarrice sem tamanho.

Porém, se levarmos em conta uma tese que é muito defendida por Hobsbawm, de que o século XX, mais precisamente após a Segunda Guerra Mundial, abandonou os ideias iluministas (progresso, razão emancipadora), que tinha se aliado numa frente (capitalismo-socialismo) para vencer o irracional nazi-fascismo, podemos ver melhor que, o apontado por ele como sociedade burguesa tradicional é aquela cujo funcionamento se dava através de um horizonte ideológico provindo das revoluções burguesas (que opunha ao obscurantismo e o absolutismo). Mas, novamente, podemos afrontar essa tese com a seguinte reflexão: a sociedade burguesa seria consolidada apenas por uma ideologia fixa, que denotaria sua "natureza", ou se modificaria, através dos anos e das formações sociais, buscando perpetuar sua existência (no início, mais aristocrática, depois mais liberal etc.)? Nesse sentido podemos pensar também as sociedades nazi-fascistas como sociedades burguesas, o que de fato são, apesar de em sua aparência (coorporativismo, anti-liberalismo etc.) serem tão "opostas". E também, podemos pensar o socialismo de forma não-idêntica ao iluminismo, argumento pelo qual Hobsbawm parece justificar sua desconfiança de um possível retorno à "ditadura do proletariado" - afinal, os ideais iluministas acabaram... Então como o capitalismo se mantém de pé sem eles???

Esse debate, na filosofia, normalmente é conhecido sobre a ruptura ou continuidade entre a modernidade (molde burguês clássico e seu opositor socialista) e a pós-modernidade (onde, a priori, nenhum dos dois faz sentido em seu sentido clássico).

Enfim, o fato é que essa esfera cultural apresentou transformações: a produção simbólica apresenta traços muito peculiares hoje, e cada vez mais internacionalizados. A laicização e o impulso à modernização levaram a cultura e as artes a uma velocidade e dinâmica nunca antes vistas. As ciências naturais e exatas aplicadas transformaram não só as forças produtivas mas nossos cotidianos e nosso mundo. Assim como relações sociais impulsionaram novas invenções que dessem conta desse modelo.

O legado burguês clássico e ocidental parece ter caído no ostracismo: permanece como artigo de luxo, e com pouca expressividade na sociedade, restringindo-se a clubes seletos e pouco ortodoxos. As artes plásticas (sobretudo elas), o teatro, a poesia declamada, e demais produtos permanentes de representação humana, monopolizados pela "burguesia instruída" em seu início, vem perdendo terreno para a produção cultural de massa e fortemente baseada na intermediação tecnológica e multimidiática. O lugar privilegiado das artes e do saber erudito (que elevava, como no romantismo, a figura do artista ao lugar de mediador do sublime) desapareceu, e seu enterro se deu com o fracasso das vanguardas, e as propostas de anti-arte dadaístas ou do pop art. O muro, que Hobsbawm falava, entre arte e vida, belo e banal, foi rompido e sua diluição gerou esse nosso cotidiano mergulhado em excesso de informação, imagens e sons. O mundo da alta cultura, com seu gênio e seu artista, foi profanado, no momento em que nosso cotidiano foi elevado à condição de artístico, com muitos artistas (lema do punk rock: faça você mesmo), muitos intelectuais especializados e serviços artísticos-culturais.

O fim desse elitismo cultural simboliza tanto uma democratização da cultura (vide o crescimento vertiginoso da escolaridade e da alfabetização depois do pós-segunda guerra, e a constituição de massas estudantis e "consumidores de cultura" em todo o mundo), quanto um efeito perverso (que os estudiosos da cultura de massa já apontavam como a criação de uma sub-cultura, e a mercantilização da cultura através da indústria do entretenimento). Esse efeito perverso foi muito perceptível ao longo do século XX, onde o rádio, a TV, o cinema e a propaganda, foram grandes aliados ideológicos para o capitalismo. Assim como hoje é perceptível uma onda mais "democratizante" a partir da internet e maior mobilidade migratória, que em oposição à homogeneidade imposta por setores dominantes e seus monopólios, possibilitam um maior grau de sincretismo e interferência cultural - o que hoje se chama de multiculturalismo e que representa uma possibilidade de interseções culturais (sincretismos) que possibilitam uma certa "voz", influência e resistência a culturas dominadas. Eis uma primeira aparência, e Hobsbawm consegue completá-la com a advertência que essa abertura ao multiculturalismo, através das "mídias horizontais" por exemplo, também é útil ao mercado a partir de criação de novos nichos de consumo (mulheres, negros, gays etc.). Além disso, esse novo terreno para além do massificado, e mais individualizado, mina o potencial de intervenção política coletiva - é preciso notar, como aponta Hobsbawm, os artistas e intelectuais hoje são muito menos engajados que no no intervalo XIX-XX - e continua nas mãos de empresas privadas ou Estados (vide os casos recentes de espionagem ianque em servidores famosos da web). Assim como, podemos adicionar, os meios de comunicação de massa foram, como na URSS, e são essenciais ainda para uma propaganda contra-hegemônica que atinjam as massas.

De forma geral, o livro de Hobsbawm consegue apontar algumas características do estado cultural (ideológico) do mundo ocidental de hoje (cada vez global e veloz, apesar de aparecer de forma mais metamorfoseada na "periferia" ou no campo - e muito mais sincréticas). Não é um livro isolado, mas compartilha com outros esforços essa busca de apreensão da realidade ideológica - que também, como Hobsbawm, se afastam do, ou veem com preconceito, marxismo. Essas características da ideologia hoje desafiam não só a construção de novas análises conjunturais - órfãos de uma análise completa marxista-, que consigam encontrar a "essência" desse novo cenário, como também de novas ações e projetos políticos que busquem alcançar relevância e organicidade com as massas.

O sociólogo Norbert Elias, em famoso ensaio, aponta que a século XX caminhou culturalmente para sociedades onde há primazia da identidade individual sobre a identidade coletiva, onde o "eu" (potencializado com o simulacro do consumo e serviços individualizados por exemplo) é maior que o "nós" de uma tradição ou coletividade (família, nação, ideologia). Ao mesmo tempo que o "nós" ainda se permanece nos Estados-nações (de funções gigantescas na sociedade) além de se internacionalizar: um "nós" humano se tornou mais concreto, e cada vez mais podemos ter acesso rapidamente a fatos do mundo todo, e conseguimos nos identificar com injustiças em locais que nunca fomos. Eis a transformação de mão dupla que a decadência da sociedade tradicional burguesa e seus ideais e instituições nos trouxe, cheia de arestas ainda não concluídas e em disputa. E ela fica muito clara se refletirmos sobre essa nova "geração facebook", que ao mesmo tempo que gasta horas com marketing pessoal na rede, também se organiza e se articula no mundo todo. Ou que, vivendo em mundo cada vez mais técnico-científico, tem buscado em religiões e fundamentalismos (ver o boom pentecostal no Brasil) parâmetros normativos para sua vida pessoal de forma a não se contradizer.

A esfinge do presente está na nossa frente. Ou atualizamos nossa resposta para dar conta de sua charada e mudamos o mundo sobre suas bases atuais, ou, graças a nossa nostalgia, somos engolidos por ela. Largar o lado da tradição anacronizada, que nos afasta no concreto, sem cair no terreno pantanoso (e mais fácil) da traição: um grande desafio para os marxistas.

A CIA e a guerra fria cultural

Reproduzimos resenha de Miguel Urbano Rodrigues de um importante livro para compreender a relação entre política, luta de classes as artes/cultura. Esta, em nossa época, mais uma vez se mostra, não paira puramente nas bibliotecas e museus, mas está, em última instância, vinculada ou à perpetuação ou à superação do sistema capitalista.

© 2013 Sally Edelstein


Esta semana chegou-me às mãos um livro muito importante: A CIA e a guerra fria cultural. [1]

Desconhecido em Portugal, gostaria que fosse editado no nosso país para ser lido por milhares de pessoas desinformadas por um sistema mediático perverso que apresenta uma imagem deformada do sistema de poder dos Estados Unidos.

O título é enganador. Ao iniciar a leitura estava persuadido de que se tratava de mais uma obra de divulgação de ações criminosas da CIA. Daí a surpresa.

O livro de Frances Stonor Saunders é muito mais ambicioso. A autora, jornalista e historiadora britânica, dedicou cinco anos à investigação de um tema muito mal conhecido: as atividades encobertas desenvolvidas pela CIA no mundo da cultura para promover o descrédito do comunismo e mobilizar contra a União Soviética grande parte da intelligentsia progressista ocidental.

Em 1945, o prestígio da URSS nos EUA era enorme. A maioria do seu povo sentia uma grande simpatia, sobretudo apos a batalha de Stalinegrado, pelo país que desempenhara um papel decisivo na derrota do Reich nazi.

Essa realidade era muito incómoda para a elite do poder estado-unidense. A Doutrina Truman e o Plano Marshall demonstraram ser manifestamente insuficientes para alterar a atitude da classe média estadunidense perante a União Soviética.

Os cérebros ligados ao poder em Washington concluíram pela necessidade urgente de convencer o homem comum norte-americano de que o aliado na guerra durante quatro anos, de 1941 a 1945, era, afinal, um perigoso inimigo.

A elite que se propunha a reorganizar o mundo sob a égide dos EUA em torno dos seus "valores" estava consciente de que esse objetivo somente poderia ser atingido se o Ocidente capitalista fosse empurrado para a conclusão de que o comunismo, "obscurantista, desumano, agressivo", era a grande ameaça para a humanidade, pelo que se tornava imprescindível combatê-lo.

A Oficina de Serviços Estratégicos-OSS, que funcionou durante a guerra como uma Gestapo americana, foi de certa maneira uma predecessora da CIA. O seu chefe, o general William Donovan, reuniu à sua volta destacadas figuras da aristocracia do capital como os filhos do banqueiro JP Morgan, os Vanderbilt, os Dupont, e intelectuais como George Kenan e Charles Bohlen.

Uma das primeiras iniciativas da OSS foi o recrutamento de militares e civis nazis. Dezenas de altas personalidades alemãs passaram de criminosos de guerra a aliados de confiança. Um caso expressivo:o general das SS Reinhardt Behlen, chefe dos serviços secretos nazis que, em vez de ser preso e julgado, recebeu o tratamento de colaborador privilegiado da OSS.

No seu livro, Frances Saunders dedica os primeiros capítulos às campanhas desenvolvidas por Donovan, com o apoio de Truman, para demonstrar aos europeus que os EUA eram uma sociedade onde a cultura ocidental lançara raízes profundas, contrapondo essa imagem à "barbárie soviética". O Bem contra o Mal.

A literatura, a música, a pintura, a arquitectura, o ballet dos EUA foram amplamente divulgados na Alemanha, na França, na Itália e noutros países. Simultaneamente, antecipando-se a eventuais acusações de patrioteirismo, obras de Aristófanes, Goethe, Schiller, Thomas Mann, Ibsen, Strindberg, Shaw, Gorki, Gogol eram difundidas numa prova inequívoca do amor dos EUA pela cultura universal.

Essa ofensiva cultural não produziu, porem, os resultados previstos.

Coube à CIA a tarefa de levar adiante no contexto da Guerra Fria um projeto muito mais complexo e ambicioso, também na frente da cultura.

Criada em 1947 pela Lei de Segurança Nacional, a Agencia Central de Inteligência-CIA assumiu as proporções de um polvo gigantesco. Inicialmente não estava autorizada a intervir em assuntos de outros países. Truman e os seus sucessores permitiram que ela desenvolvesse atividades de espionagem, e promovesse operações militares. Hoje possui linhas aéreas, emissoras de TV e rádio, jornais, companhias de seguros, imobiliárias, bancos.

Em l948 foi criado na Agencia um Escritório de Coordenação de Politicas – OPC com a missão específica de realizar "operações secretas" em múltiplas áreas.

Esse estranho departamento especial cresceu vertiginosamente. Em três anos o seu pessoal passou de 302 pessoas a 2812,alem de 3142 assalariados no estrangeiro. O orçamento elevou-se de 4,7 milhões de dólares para 82 milhões.

O ideólogo do sistema era então George Kennan, o ex embaixador em Moscovo, fanático anticomunista, arquitecto do Plano Marshall que desempenhou um grande papel na concepção e funcionamento da Guerra-Fria.

Foi um dos pais da CIA e consultor da OPC. Coube-lhe formular o conceito da "mentira necessária" como componente fundamental da diplomacia estado-unidense.

Uma das operações secretas mais difíceis foi a concebida para utilizar a esquerda não comunista em campanhas anticomunistas. Secreta porque os intelectuais envolvidos em campanhas contra a União Soviética deveriam ser manipulados habilidosamente. A OPC atuava nos bastidores, invisível. O governo americano, as embaixadas dos EUA, os grandes media norte- americanos abstinham-se inclusive de comentar elogiosamente as tomadas de posição antissoviéticas de escritores e artistas europeus, muitos dos quais eram ex-comunistas. Tudo se passava como se as conferencias, seminários, festivais manifestações e outros eventos em que participavam esses intelectuais fossem espontâneos, nascidos de iniciativas suas.

Mas a realidade era muito diferente. Oculta, era a CIA quem planeava a orquestração anticomunista, quem financiava generosamente (com o Departamento de Estado) essas campanhas.

Frances Saunders desce a minúcias ao descrever o esforço desenvolvido pela OPC através de intermediários respeitáveis para conseguir que grandes nomes da esquerda aderissem a iniciativas de cariz anti-soviético.

Nos EUA prestaram-se a esse papel escritores prestigiados como John Steinbeck, John dos Passos, Gertrude Stein, Schlesinger, W.H.Auden, Arthur Miller, e orquestras sinfónicas, museus, etc. Os intelectuais trotsquistas aderiram massivamente. Na Europa, foram envolvidos na teia anti-soviética: André Gide, Albert Camus, Elsa Triolet, Andre Malraux, Simone de Beauvoir, Raymond Aron, Georges Orwell, Aldous Huxley, Laurence Olivier, Jean Cocteau, Salvador de Madariaga, Claude Debussy, Denis de Rougemont, Milan Kundera, e muitos outros. E – chocante, mas real - Aragon, Sartre, Bertrand Russell.

A intervenção na Hungria das tropas do Tratado de Varsóvia, em 1956 criou na Europa uma atmosfera favorável à intensificação da Guerra Fria.

Entre os muitos livros cuja publicação foi promovida pela CIA, um deles, The God That Failed (O Deus Que Falhou) foi best-seller mundial. Traduzido em dezenas de línguas vendeu milhões de exemplares. Partiu da CIA a ideia de reunir seis ensaios (a maioria já publicados na revista alemã Der Monatcontrolada pela Agencia) de Arthur Koestler, Ignazio Silone, Andre Gide, Richard Wright, Stephen Spender, todos eles escritores famosos que haviam sido militantes ou simpatizantes comunistas.

"Além de ser uma espécie de confissão coletiva – escreve Frances Saunders – o livro era um ato de recusa, uma rejeição do estalinismo no momento em que para muitos essa atitude era ainda uma heresia. Foi um livro de importância transcendental no pós-guerra e aparecer nele foi um passaporte válido para o mundo oficial da cultura nos vinte anos seguintes".

Koestler, que adquirira enorme notoriedade com o seu romance O Zero e o Infinito, Milovan Djilas e George Orwell, autor do 1984, destacaram-se nessas iniciativas pela sua febre anticomunista.

O primeiro, que havia sido nos anos 30 um dedicado militante do Partido Comunista Alemão-DKP, colaborou intimamente com a CIA e foi conselheiro do Foreign Office em campanhas anti-soviéticas.

Comités e Associações constituídos para defender a Cultura, a Liberdade e a Democracia, mas cujo objetivo era a promoção de iniciativas anticomunistas, permitiram então à CIA (sempre atuando nos bastidores) exercer uma grande influência sobre uma parcela importante da "esquerda não comunista".

Para isso contou com a colaboração e a ajuda financeira de organizações como a Fundação Ford.

Das muitas revistas criadas para "promover a cultura", uma delas, a britânica Encounter, alcançou prestígio mundial. Dirigida por Stephen Spender, um poeta inglês, foi concebida para funcionar como um instrumento político anticomunista no mundo da cultura. E atingiu o objectivo. Durante anos colaboram nela eminentes figuras da intelligentsia mundial.

Nem o diretor, Spender, conhecia a origem do financiamento. Quando uma inconfidência revelou, nas vésperas da Assembleia do Congresso pela Liberdade da Cultura, a ponte entre Encounter a CIA e as elites financeiras dos EUA, o escândalo foi maiúsculo.

Em reuniões desse Congresso fantasmático, ideado pela CIA, participaram, aliás, durante anos grandes nomes da esquerda não comunista. Na prática foi uma tribuna anticomunista.

No seu belo livro, Frances Saunders dedica alguns capítulos a ações encobertas da CIA não comentadas neste artigo. Cita nomeadamente várias Fundações, Universidades, congressistas e governantes que apoiaram iniciativas criminosas da famosa Agencia. Um mar de lama tóxica.

E dedica especial atenção aos quadros – ideólogos e executantes – que idearam as campanhas anti-soviéticas, fazendo delas uma poderosa arma da Guerra Fria.

Cito alguns nomes dessa máfia política praticamente desconhecida em Portugal: Lasky, Josselson, Nabokov, Kristol, Hook, Wisner. Termino transcrevendo o último parágrafo do livro de Frances:

"Sob a (ainda não) estudada nostalgia dos "Dias dourados" da inteligência americana havia uma verdade muito mais demolidora:   as mesmas pessoas que liam Dante, estudaram em Yale e se educaram na virtude cívica, recrutaram nazis, manipularam o resultado de eleições democráticas, proporcionaram LSD a pessoas inocentes, abriram o correio de milhares de cidadãos americanos, derrubaram governos, apoiaram ditaduras, conceberam assassínios e organizaram o desastre da Baia dos Porcos.

Em nome de quê? perguntava um crítico: "Não da virtude cívica, mas do império". 
Vila Nova de Gaia, 9/Agosto/2013


[1] Frances Stonor Saunders, Who Paid the Piper? The CIA and the Cultural Cold War , Granta Books, United Kingdom, 1999. Em 2013, a Random House Mondadori lançou em Bogotá a edição colombiana, com 597 páginas: www.megustaleer.com/ficha/C922362/la-cia-y-la-guerra-fria-cultural 

O original encontra-se em www.odiario.info/?p=2980 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A teoria revolucionária de Marx

Reproduzimos aqui a segunda parte do texto Marx e o marxismo, de Étienne Balibar do seu livro Cinco Estudos Do Materialismo Histórico (1974), tradução de Elisa Amaro Bacelar.






2. A TEORIA DE MARX
A teoria de Marx não é um sistema, assentando num fundamento filosófico. Uma das comsequências deste facto é a teoria de Marx não estar acabada. Uma outra consequência reside em que a exposição desta teoria não tem começo absoluto, nem no seu conjunto nem em cada uma das suas partes (por exemplo, na parte «económica» que O Capital expõe).
Mas isso não significa que a teoria de Marx não seja sistemática, no sentido científico, isto é, que não defina o seu objecto de estudo de forma a explicar-lhe a necessidade objectiva.
O que confere à teoria de Marx o seu carácter sistemático, neste sentido, é a análise das diferentes formas da luta de classes e da sua conexão. É a melhor «definição» que dela se pode dar, se é que o conteúdo duma ciência pode ser encerrado numa definição.
3. CLASSES E LUTAS DE CLASSES
No Manifesto, Marx escreve: «A história de toda a sociedade até aos nossos dias não foi mais do que a história da luta de classes.» Esta afirmação deve ser tomada num sentido reforçado: não significa que as lutas de classes tenham sido o principal «fenómeno» que se pode observar na história; nem mesmo que as lutas de classes sejam a causa profunda, mais ou menos directa, dos fenómenos históricos. Significa que os fenómenos históricos, que são a única realidade da história, não são mais do que formas (diversas, complexas) da luta de classes. A precisão trazida por Marx: «até aos nossos dias» — e que se pode repetir ainda hoje sem qualquer modificação — não significa, pois, que a definição pareceria parcial, inexacta, se se tomasse em consideração as «sociedades sem classes» que precederam ou que sobreviverão à história das sociedades «de classes». As sociedades sem classes não revelam (e não revelarão) uma realidade social mais profunda, mais geral do que a luta de classes, nem lhe fogem (é no entanto, geralmente, o que a antropologia social aí vai procurar), e por isso mesmo «sem história». As sociedades sem classes do futuro — cujas tendências da sociedade actual nos indicam apenas certos traços — não podem ser senão o resultado da transformação da luta de classes sob o efeito desta mesma luta de classes. Eis porque Marx (e Engels) sempre insistiram no facto de «as comunidades primitivas» que a pré-história e a etnografia nos revelam não terem nada de comum com o «comunismo», o qual sucederá ao capitalismo como modo de produção e de organização sociais.
Importa apreender bem este ponto para compreender o uso e a significação do conceito de «classe social» no marxismo. Em 1852, Marx escrevia ao seu amigo Weydemeyer: «Não é a mim que cabe o mérito de ter descoberto a existência das classes na sociedade moderna, assim como a luta que elas aí travam [...]. O que eu trouxe de novo, foi: 1) demonstrar que a existência de classes só está ligada a fases históricas determinadas do desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classes leva necessariamente à ditadura do proletariado; 3) que esta ditadura em si própria não representa senão uma transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes.» Esta declaração, feita numa época em que no entanto Marx ainda não tinha elaborado o conceito da mais-valia, isto é, o conceito da exploração capitalista (cf. abaixo), esclarece-nos sobre a natureza do «derrubamento», melhor, da revolução teórica operada por Marx no uso do conceito de classe social. É a luta de classes, com os seus efeitos históricos e as suas tendências, que determina a existência das classes e não o inverso. Por outras palavras, as classes sociais não são coisas ou substâncias (como por exemplo uma parte deste «todo» que é a sociedade, um «subgrupo» deste «grupo», uma subdivisão, etc.) que entrariam em seguida em luta. Ou se se prefere, a análise histórica das classes sociais não é senão a análise das lutas de classes e dos seus efeitos.
Assim, a ideologia histórica duma classe (a «consciência de classe» do proletariado, por exemplo), não é criada, elaborada, inventada por esta da forma como a primeira psicologia surgida imagina que um sujeito (um indivíduo, um grupo) inventa, consciente ou inconscientemente, as suas ideias: produz-se em condições materiais dadas face à ideologia contrária e ao mesmo tempo que ela, como uma forma particular da luta de classes, e impõe-se na sociedade (realiza-se, existe simplesmente) com o desenvolvimento desta luta.
Por isso, a teoria de Marx torna completamente ultrapassado o debate tradicional entre os defensores duma definição «realista» das classes e os que defendem uma definição «nominal» (serão as classes unidades reais ou apenas colecções de indivíduos agrupados por necessidade da teoria segundo um ou vários «critérios»?), quer dizer, o debate entre sociólogos que, todos, procuram uma definição das classes sociais antes de chegar à análise da luta de classes. Note-se que na prática esta diligência corresponde exactamente à tendência fundamental da ideologia burguesa que procura demonstrar que a divisão da sociedade em classes é eterna, mas não o seu antagonismo; ou ainda, que este é apenas um comportamento particular das classes sociais, ligado a circunstâncias históricas (o século XIX...), ideológicas (a influêncido comunismo) e transitórias, um comportamento ao lado do qual se podiam imaginar e praticar outros (a conciliação).
Eis porque Marx pôde escrever com todo o rigor no Manifesto: «A sociedade burguesa moderna [...] não aboliu os antagonismos de classes. Não fez mais do que substituir novas classes, novas condições de opressão, novas formas de lutas, às de antigamente.» Deve ler-se no sentido mais reforçado: novas classes, isto é, novas condições de opressão, isto é, novas formas de lutas.
Por isso, somos levados à proposição fundamental, segundo a qual as classes sociais são determinadas pelo seu papel económico ou, mais exactamente,pelo seu lugar na produção material. Proposição que é idêntica a esta: o conjunto das lutas de classes é determinado em última instância pela luta «económica» de classes, a luta de classes na produção. Isto significa que as classes sociais não se colocam a favor ou contra concepções do mundo, a favor ou contra um estatuto jurídico, a favor ou contra formas de organizações políticas, a favor ou contra modos de repartição da riqueza social, a favor ou contra formas de organização da circulação de bens materiais, senão por causa da luta de classes na produção e, finalmente, com vista a esta luta. E isto porque é a luta de classes na produção que arrasta a existência material das classes, a sua «subsistência»: é a luta de classe quotidiana conduzida na produção pelo capital que faz do processo de trabalho um processo de produção de mais-valia (e portanto de lucro, que não é mais do que uma fracção), base material da existência duma classe capitalista; é a luta de classe quotidiana conduzida na produção pelos trabalhadores que assegura contra a tendência do capital para o lucro máximo as condições de trabalho e as condições materiais (sobretudo o nível dos salários) necessárias à reprodução da força de trabalho, à existência da classe operária.
Esta proposição, que é a base da teoria histórica de Marx, é também a base da táctica da luta de classes do proletariado: ilumina o ponto de «partida» e o ponto de «chegada». O ponto de partida: a luta do proletariado começa com a sua luta económica, e continua permanentemente a basear-se nela. O ponto de chegada: a luta política do proletariado não atinge o seu objectivo senão com a condição de prosseguir até à abolição do salariato, da relação capital/trabalho assalariado que é a «relação social de produção» fundamental. Os objectivos políticos são o meio de chegar a este fim, que lhes comanda a realização segundo as conjunturas históricas.29
4. CAPITAL E TRABALHO ASSALARIADO
Nesta perspectiva, não é difícil determinar o que constitui, segundo a expressão do próprio Marx, a «quintessência» da teoria do modo de produção capitalista exposta em O Capital e que nos indica o lugar preciso da ruptura operada por Marx a respeito da economia política, da sociologia e da historiografia burguesas.30 É a análise da mais-valia.
a)        O movimento do capital
O que define o capital na prática da economia burguesa, é o pôr em valor (valorização) uma quantidade de valor dada. Toda a soma de valor não é imediatamente capital, isso depende da sua utilização: os valores entesourados ou consagrados ao consumo individual não são capital. É necessário para isso que o valor seja investido de maneira a aumentar de determinada quantidade. Esta quantidade constitui, por definição, a mais-valia. Neste sentido, a noção de mais-valia está formalmente presente desde que seja dado um capital qualquer; cada capital individual realiza por sua conta o mesmo movimento geral, que o define, libertando mais-valia e incorporando-a num processo que, por definição, não tem fim. Mas este processo pode aparecer de forma diferente segundo os modos de investimento (e por consequência também os pontos de vista que definem na prática e na teoria económicas): capital financeiro, capital comercial, capital industrial. A mais-valia parece então dissolver-.se nas diferentes formas de crescimento do capital: juro, lucro comercial, lucro industrial, cujo mecanismo é na prática completamente diferente. Ao mesmo tempo, o capital identifica-se a uma forma particular sob a qual se apresenta o seu valor: dinheiro, mercadorias, meios de produção. No entanto, a forma dinheiro está sempre presente e privilegiada: como o dinheiro é o equivalente de todas as mercadorias (compreendendo os meios de produção e o «trabalho» necessários ao funcionamento do capital industrial), representa o valor «em si», independentemente dos objectos materiais aos quais está ligado. Ora o movimento do capital não se interessa por estes objectos, mas somente pelo desenvolvimento da quantidade de valor. O movimento do capital aparece pois essencialmente como o crescimento duma quantidade monetária, uma forma desenvolvida da circulação monetária.31
b)        A origem da mais-valia
Se se considerar a existência do capital à escala social e se se puser o problema da origem da mais-valia, torna-se evidente, no entanto, que esta não pode residir na circulação mercantil e, por conseguinte, nem nas operações específicas do capital comercial nem nas do capital financeiro, se bem que as formas da circulação mercantil, generalizada pelo capitalismo, sejam aparentemente o essencial dele. Com efeito, a circulação mercantil e monetária, à escala da sociedade, é regida tendencialmente pela regra da troca entre valores equivalentes, que se impõe a cada acto individual de troca, a cada contrato. Nenhum novo valor (nenhuma mais-valia) poderá ser portanto criado na esfera da circulação. O único capital cujo movimento pode criar valor é pois o capital industrial, o capital produtivo, cujas operações específicas se desenvolvem fora da esfera da circulação, e não consistem em trocas, mas, uma vez reunidos os factores de produção necessários (matérias primas, meios de trabalho, trabalhadores assalariados), consistem em transformação material, isto é, em trabalho.
É portanto necessário inverter a nossa primeira definição: o lucro industrial ou comercial, o juro (e igualmente a renda fundiária) não são formas autónomasdo crescimento do capital: são (incluindo o lucro de empresa industrial) formas derivadas, «transformadas», partes da mais-valia social proveniente da esfera da produção. Cada capitalista industrial funciona assim, qualquer que seja a parte de que finalmente se aproprie, como fornecedor de mais-valia por conta do capital social inteiro, como seu «representante». A autonomia aparente do lucro, do juro, etc., não provém senão da complexidade das relações concorrenciais que ligam umas às outras as diferentes fracções do capital social, e que se reflecte nas categorias da contabilidade e da economia política burguesas. Para compreender estas leis, é preciso em primeiro lugar perscrutar o segredo da produção da mais-valia, depois descobrir os mecanismos derivados da sua realização (monetária) e da sua transformação, cuja prática económica não nos mostra senão os resultados.32 É necessário restabelecer a determinação das relações de distribuição pelas relações de produção.
Tal é a primeira descoberta fundamental de Marx.
c) Trabalho e supertrabalho
O capital produtivo divide-se em duas partes, cuja relação quantitativa varia: a que se investe em meios de produção, quer sejam fixos ou «circulantes» (máquinas, matérias primas), consumidos no processo de trabalho ; a que se investe em salários, preço da força de trabalho que o capital compra por um tempo determinado. Marx chama ao primeiro capital constante, ao segundo capital variável. Com efeito, os meios de produção, que são o produto dum trabalho passado e representam uma certa quantidade de valor, não podem por eles próprios introduzir qualquer novo valor. Mais precisamente, transferem para o produto o próprio valor, à medida do seu consumo «produtivo» (transformação, deterioração) pelo trabalho. Inversamente, o trabalho humano tem a dupla propriedade de conservaro valor dos meios de produção que consome, transferindo-o para o produto, e de lhe acrescentar um valor suplementar em função da qualidade de trabalho despendida (tempo, intensidade, número de trabalhadores).
Esta teoria só é rigorosa com a condição de definir o trabalho como uso duma mercadoria, a força de trabalho que o capitalista compra ao trabalhador. Definição conforme, precisamente, às condições do modo de produção capitalista, nas quais (contrariamente ao que se passa por exemplo na escravatura), o trabalhador não é ele próprio uma mercadoria, comprada e vendida, mas surge (no mercado do trabalho) perante o capitalista como o vendedor, o participante num contrato de troca (força de trabalho contra salário). É mascarada pela ficção jurídica (mas ficção necessária, vamos vê-lo em breve) do salário que apresenta o salário como «preço do trabalho», proporcional à quantidade de trabalho fornecida. O trabalho não é, de facto, uma mercadoria, é o uso da mercadoria «força de trabalho».33
O valor duma mercadoria comporta pois, sempre, duas partes: uma transferida dos meios de produção para o processo de trabalho, proporcional à quantidade de trabalho passado necessária à sua produção; a outra criada (acrescentada) por este processo, proporcional à quantidade de trabalho presente; com a condição, pelo menos, de que se trate em todos os casos de trabalho socialmente necessário, despendido nas condições médias de produtividade e correspondendo a uma necessidade efectiva do conjunto da produção social, o que não é geralmente verdadeiro senão em média (encarregando-se a concorrência de impor esta norma aos capitais individuais como «lei coerciva externa»).
O modo de produção capitalista não se pode; desenvolver senão na base duma produtividade suficiente do trabalho (dependente ela própria dos progressos dos instrumentos e técnicas de produção): tem por condição histórica inicial um dado estado do desenvolvimento das forças produtivas materiais. Nesta base, o emprego do trabalho assalariado tem como consequência que a quantidade de novo valor criado em cada processo de produção excede sempre o valor da própria força de trabalho. Por outras palavras, apenas uma parte do trabalho dispensado é necessário à reprodução da força humana de trabalho que é utilizada (portanto usada, consumida) no processo de trabalho: o resto, liberta, em relação a este trabalho necessário, um superproduto, constitui um supertrabalho de importância variável. Ainda por outras palavras, apenas uma parte do valor novamente produzido, representa o equivalente das mercadorias que o trabalhador deve consumir para reproduzir a sua força de trabalho, o resto constitui a mais-valia. Quanto ao valor transferido para o produto pelos meios de produção em proporção com a sua utilização, representa evidentemente o equivalente dos novos meios de produção que devem ser adquiridos para que o processo de produção possa continuar na mesma escala, portanto para que o capital possa funcionar como tal: o processo de produção tem por condição a apropriação permanente dos meios de produção pelo capital que o seu próprio funcionamento reproduz.
O «mistério» da criação da mais-valia pelo movimento do capital não tem portanto outro segredo senão o conjunto das condições técnicas (produtividade do trabalho) e sociais (forma do trabalho assalariado) que permitem ao trabalho criar um valor que excede o da força de trabalho. A mais-valia tem pois um limite superior, constituído pela capacidade de trabalho da classe operária, e um limite inferior, constituído pelo valor da força de trabalho, num determinado momento. O mecanismo de produção da mais-valia, é o mecanismo das relações de produção capitalistas, quer dizer, o mecanismo que obriga o trabalhador a ultrapassar este limite inferior correspondente à sua própria reprodução e a fazer recuar indefinidamente o limite superior da sua capacidade de trabalho. É um mecanismo de exploração, quer dizer, de luta (económica) de classes. Luta do capital assegurando a extracção da mais-valia; luta dos trabalhadores preservando a sua própria subsistência.
d)        As duas formas da mais-valia
Marx analisa separadamente as duas formas típicas sob as quais esta luta de classes se desenrola permanentemente: designa-as como produção de mais-valia «absoluta» e produção de mais-valia «relativa».
A mais-valia «absoluta»34 corresponde a uma dada produtividade do trabalho social, a um dado valor da força de trabalho. Ela mostra-nos simplesmente, sob uma forma imediata, a extracção dum supertrabalho que é a essência do crescimento do capital: constranger o trabalhador a despender a sua força de trabalho para além das necessidades da sua própria reprodução, pelo facto de não dispor por ele próprio dos meios de produção necessários. O meio fundamental para aí chegar é o prolongamento da duração do trabalho, a fixação do salário de tal maneira que o trabalhador não possa reproduzir a sua força de trabalho senão trabalhando durante mais tempo. Esta tendência aparece isoladamente (ou como forma principal) com os começos do capitalismo, mas continua a representar o seu papel na base de qualquer produtividade do trabalho social.
Suscita directamente a luta de classe (eco­nómica) dos trabalhadores pelo dia de trabalho «normal», que se esforça por contrariar a ten­dência para o prolongamento da duração do trabalho, compreendendo também medidas le­gais arrancadas ao Estado.35
A mais-valia absoluta tem como limite a preservação da própria classe operária. A história mostra eloquentemente a elasticidade deste limite, dado que a concorrência de mão de obra e a debilidade da sua organização tornam a relação de forças desfavorável à classe operária. Inversamente, a resistência organizada da classe operária torna este limite mais estreito. Contribui assim para orientar o capital para uma segunda forma:
—       A mais-valia «relativa»36 tem um princípio inverso: o aumento do supertrabalho não é obtido directamente por prolongamento do trabalho necessário, mas pela redução deste, fazendo baixar o valor da força de trabalho, quer dizer, o valor das mercadorias necessárias à sua reprodução. Este resultado é obtido pela elevação da produtividade do trabalho. A análise dos diversos «métodos» utilizados pelo capita! para produzir a mais-valia relativa põe bem em evidência a solidariedade que, para além da concorrência, reúne as diferentes fracções do capital social no processo de exploração: cada capitalista aumenta o seu lucro individual aumentando a produtividade do trabalho, mas não contribui finalmente para a produção da mais-valia sobre a qual são retirados todos os lucros individuais, senão na medida em que concorre para baixar assim o valor dos meios de consumo da classe operária.
Assim, os métodos que permitem elevar a produtividade do trabalho não comportam, contrariamente ao prolongamento do trabalho, limite absoluto. Eisporque engendram o modo de organização da produção material específica do capitalismo. Assentam na cooperação, na divisão do trabalho intensificada entre os indivíduos (divisão «manufactureira» — precedendo a «organização científica do trabalho», o taylorismo e o post-taylorismo actuais), na utilização das máquinas substituindo parcialmente a actividade humana (ou antes subordinando-a) e na aplicação das ciências da natureza ao processo de produção, o desenvolvimento da tecnologia. Todos estes métodos concorrem para elevar o grau de socialização do trabalho, substituindo o trabalhador individual, outrora susceptível de pôr em marcha sozinho os meios de produção, por um «trabalhador colectivo», complexo e diferenciado.
Pressupõem a concentração dos trabalhadores, portanto a concentração do capital numa escala sempre maior.37
A análise da mais-valia relativa ilustra a teoria marxista da combinação das relações sociais de produção e das forças produtivas materiais (que incluem a força de trabalho humana): mostra como o capitalismo, que pressupõe historicamente um dado estado do desenvolvimento das forças produtivas, determina a transformação incessante, o desenvolvimento necessário das forças produtivas, como meio de produzir a mais-valia; de que modo o capitalismo determina uma revolução industrial ininterrupta (enquanto a ideologia burguesa representa sempre, hoje, o capitalismo como uma variante da «sociedade industrial», concebendo a revolução industrial como uma evolução natural cujo conteúdo não dependeria em nada das relações de produção — quer dizer, de exploração— capitalistas). Ela mostra que o desenvolvimento das forças produtivas é a realização material das relações de produção capitalistas. Mostra que, neste desenvolvimento, é a transformação dos meios de produção que precede e comanda as transformações na qualidade da força de trabalho.
A análise de Marx mostra que o desenvol­vimento das forças produtivas no capitalismo, que corta com o conservadorismo relativo de todos os modos de produção anteriores, não é um desenvolvimento absoluto: não eleva a pro­dutividade do trabalho social senão dentro dos limites que a procura do lucro máximo impõe a cada capital. No entanto, este desenvolvimento não comporta nenhum limite superior predeterminado para além do qual não poderia prosseguir, senão por causa das contradições determinadas no seu seio pelo carácter antagónico das relações de produção, e que alimentam a luta de classes. Precisamente, esta luta está presente sob múltiplas formas que são indissociáveis da organização «técnica» do próprio processo de trabalho: no modo de produção capitalista, o desenvolvimento da produtividade do trabalho tem como condição necessária a intensificação permanente do trabalho (as «cadências» infernais que substituem o prolongamento da duração do trabalho), a fragmentação das tarefas, a desqualificação relativa dos trabalhadores, o agravamento tendencial da divisão do trabalho manual e do trabalho intelectual (que assegura ao capital o controlo absoluto dos meios de produção no seu uso), o desemprego «tecnológico» dos trabalhadores eliminados pela mecanização, etc.
e)        A acumulação
O movimento do capital não produz a mais-valia senão para ele próprio se reproduzir como capital, e mesmo reproduzir-se numa escala alargada. A reprodução simples do capital intervém quando a mais-valia é completamente consumida pela classe capitalista de forma improdutiva. É uma situação ideal, fictícia. A reprodução alargada, a acumulação do capital, é o verdadeiro objectivo da produção capitalista. É ao mesmo tempo o seu meio, pois só ela permite a concentração do capital de que depende a elevação da produtividade, a mais-valia «relativa».
Na aparência, em cada ciclo de produção tomado isoladamente, o capital e o trabalho provêm de dois pólos distintos; o capitalista e o trabalhador assalariado, um e outro «proprietários» duma mercadoria, concluem um contrato de troca entre valores equivalentes (salário contra força de trabalho). Na realidade, se considerarmos a transformação da mais-valia em capital, se considerarmos o processo de reprodução do capital durante os ciclos de produção sucessivos, o capital mostra-se constituído por mais-valia acumulada: o capital é supertrabalho já extorquido, que serve para a extorsão de novo supertrabalho.
Marx escreve: «[...] cada transacção isolada respeita a lei da troca das mercadorias exactamente, comprando o capitalista continuamente a força de trabalho, enquanto o trabalhador a vende continuamente (admitamos mesmo que a compra pelo seu valor real); nesta medida, a lei de apropriação que assenta na produção e circulação das mercadorias (ou lei da propriedade privadatransforma-se manifestamente no seu contrário directo pela sua dialéctica própria, interna e inelutável. A troca de equivalentes que surgia como a operação original transformou-se de maneira a que a troca não se deu senão na aparência, enquanto, primeiramente, a parte do capital trocado contra a força de trabalho não passa de uma parte do produto do trabalho de outremapropriadosem equivalente e, em segundo lugar, deve ser substituída pelo seu produtor, o trabalhador, aumentando-a com um novo acréscimo. A relação de troca recíproca entre o capitalista e o trabalhador não é pois mais do que uma aparência pertencendo ao processo de circulação, uma simples forma [...] a separação entre propriedade e trabalho torna-se a consequência necessária duma lei que, aparentemente, derivava da sua identidade.» 38
As formas económicas da circulação mercantil e as formas jurídicas burguesas (liberdade, igualdade, propriedade individual) que lhes são exactamenteadaptadas não são portanto a essência ou origem das relações de produção capitalistas, são o meio necessário da sua reprodução.
A acumulação do capital é o fenómeno tendencial fundamental ao qual se ligam as leis económicas do modo de produção capitalista. É o seu ritmo conjuntural que comanda o ritmo de crescimento da massa dos salários (e não o inverso, como se esforça por fazer crer o capitalista). Mas este, não depende somente da taxa global da acumulação: depende sobretudo das transformações que ela acarreta na composição orgânica do capital, expressa na relação da suafracção constante (valor dos meios de produção) com a sua fracção variável (valor da força de trabalho). Enquanto assenta essencialmente na elevação da produtividade do trabalho e nas revoluções tecnológicas produtoras de mais-valia «relativa», a acumulação faz-se acompanhar duma elevação tendencial da composição orgânica média do capital social, quer dizer, duma desproporção crescente entre a fracção do capital (máquinas, matérias primas) que materializa trabalho passado, «morto», e a que se investe em trabalho vivo, actual.
Eis porque a acumulação do capital produz um duplo resultado histórico:
—       A concentração sempre maior dos meios de produção, a concentração inelutável do capital sob as suas diferentes formas;
—       A criação duma superpopulação relativa de trabalhadores permanente, ou «exército industrial de reserva», que é a verdadeira «lei da população» da sociedade capitalista, e que pode tomar diversas formas segundo a conjuntura e as épocas históricas: as diferentes formas do desemprego operário, parcial ou total; as diferentes formas de superpopulação «latente» criadas pelo capital nos campos e nos países coloniais.
A conjunção necessária destes dois efeitos e a sua explicação é uma descoberta fundamental de Marx, constantemente ilustrada pela história da sociedade capitalista actual.39
Mostra que a reprodução da força de trabalho (portanto o consumo de trabalhadores, o seu número, a sua qualidade) é um aspecto da reprodução do capital social. «No ponto de vista social, a classe operária é pois, como qualquer outro instrumento de trabalho, uma pertença do capital, cujo processo de reprodução implica, dentro de certos limites, até o consumo individual dos trabalhadores. [...] Uma cadeia prendia o escravo romano; são fios invisíveis que ligam o assalariado ao seu proprietário. Simplesmente, este «proprietário» não é o capitalista individual mas a classe capitalista. [...] O processo de produção capitalista, considerado na sua continuidade, ou como reprodução, não produz portanto somente a mercadoria, nem apenas a mais-valia; produz e eterniza a relação social entre capitalista e assalariado.»40 Não há pois outro meio de lhe remediar os efeitos senão abolir a própria relação, transformando a luta (económica) de classe quotidiana, graças à qual a classe operária assegura a sua sobrevivência, numa luta (política) de classe, uma luta organizada para a transformação das relações sociais. O próprio capital fornece as bases concentrando a classe operária e agravando a sua exploração.
Mais geralmente, Marx analisa (no livro II do Capital) as condições de conjunto que permitem a reprodução do capital e a sua acumulação: retomando e transformando certas ideias de Quesnay, mostra que estas condições são condições de desigualdade entre os investimentos no sector I do capital social (ramos de produção de meios de produção) e no sector II (produção de meios de consumo), que correspondem na escala social à divisão de cada capital individual em capital constante e capital variável. Esboça o estudo matemático construindo os esquemas de reprodução do capital social. São estas condições que, ao mesmo tempo, permitem a realização da mais-valia (a sua transformação em dinheiro capitalizável) e tornam possível a cada capital produtivo encontrar no mercado factoresmateriais da sua reprodução. Implicam o avanço permanente da produção dos meios de produção sobre a produção dos meios de consumo: o facto de que o«sector I» do capital social constitui por ele próprio o seu principal «mercado», a «produção pela produção».
Sobre este ponto, é preciso 1er os comentários e desenvolvimentos de Lenine, concentrados em O Desenvolvimento do capitalismo na Rússia41 (1899), que diz: «Esta extensão da pro­dução sem uma extensão correspondente do consumo corresponde precisamente ao papel histórico do capitalismo e à sua estrutura social específica: o primeiro consiste em desenvolver as forças produtivas da sociedade; a segunda exclui a utilização destas conquistas técnicas pela massa da população.»
O que, no movimento do capital, não é senão o meio da acumulação e da exploração (o desenvolvimento das forças produtivas) constitui também umresultado material, uma «aquisiçao» histórica.
f) As «leis económicas» do capitalismo
As análises que acabamos de resumir constituem o próprio âmago da teoria de Marx, onde se concentra a sua novidade revolucionária. Implicam o enunciado duma série de outras «leis económicas», que o próprio Marx precisou não ter podido estudar completamente em O Capital e que aparecem seja comopressupostos, seja como consequências da análise da mais-valia e da reprodução do capital social. Seremos aqui necessariamente breves e parciais.
A análise de Marx implica o enunciado e a verificação duma «lei do valor». Esta lei é geralmente enunciada como lei da troca das mercadorias pelo seu valor, ele próprio proporcional à quantidade de trabalho necessário à sua produção. Esta formulação é no entanto inexacta.
Marx retomou dos economistas «clássicos» (A. Smith, Ricardo) o princípio da determinação objectivamaterialista, do «valor» das mercadorias pelo tempo de trabalho necessário à sua produção. Mas os economistas clássicos (incluindo Ricardo) não foram capazes de desenvolver cientificamente este princípio: depressa tiveram que regressar a outros princípios de explicação, que relevavam da observação empírica da circulação mercantil (da concorrência) Esta incapacidade está ligada à ausência duma análise da mais-valia e dos mecanismos da sua produção, como fonte das «formas transformadas» do lucro, do juro e da renda, que procuram explicar directamente. Está ligada ao erro (herdado de Adam Smith) que consiste em reduzir, remontando gradualmente aos ciclos de produção anteriores, o valor de toda a mercadoria a salário e lucro, isto é, ao capital «variável». Por outras palavras, esta incapacidade vem do facto de os economistas não verem que a produção capitalista é produção de mercadorias, de valor, unicamente enquanto produção de mais-valia; não «vêem» nesta produção o papel dosmeios materiais de produção (capital constante), cuja apropriação capitalista reproduzida permanentemente é a única que permite «criar» o valor, despender trabalho «vivo» acrescentando-o ao trabalho «morto» capitalizado. Donde a necessidade duma «crítica da economia política» (é o subtítulo de O Capital).42
Na primeira secção de O Capital (livro I), Marx analisa a noção de valor. Mostra a diferença radical entre os dois aspectos da mercadoria: a sua utilidade(«valor de uso») e o seu valor de troca. A utilidade social das mercadorias (para a produção ou o consumo) remete para os caracteres «concretos» (singulares,incomensuráveis) do trabalho que os produz e os transforma. O valor de troca remete unicamente para o trabalho «abstracto», quer dizer, para a quantidade da força humana despendida na produção, e como tal homogénea, intermutável. Em segundo lugar, distingue claramente a quantidade de valor das mercadorias da sua forma de valor, a qual faz com que, na prática da troca, uma quantidade duma dada mercadoria represente a quantidade de valor doutra mercadoria. Esta distinção permite-lhe expor uma génese lógica das «formas desenvolvidas» sucessivas do valor, cujo termo é uma teoria do dinheiro, «equivalente universal» de todas as outras mercadorias, em que o valor parece materializar-se «por natureza» (ou então «por convenção», variante ideológica clássica). A distinção do valor e da forma de valor permite assim compreender de que modo o preço das mercadorias (o seu equivalente em dinheiro) pode diferir do seu valor.
Mas esta explicação é apenas formal, no sentido literal do termo. Não nos permite compreender por que motivo e como o valor das mercadorias determina o seu preço. Para isso, é necessário, precisamente, considerar as mercadorias enquanto produtos de capitais. É o objecto do livro III, secções 1 e 2: Marx mostra a necessidade tendencial duma taxa geral de lucro que seja a mesma para todos os capitais, com flutuações mais ou menos conjunturais. Com efeito, capitais diferentes, investidos em diferentes ramos de produção, têm geralmente composições orgânicas diferentes (cf. supra); e como só o «capital variável» é produtor de mais-valia, renderiam por isso mesmo, nas condições dadas de exploração da força de trabalho, lucros muito desiguais se as mercadorias fossem vendidas «pelo seu valor», se a mais-valia produzida por cada capital constituísse directamente o lucro de que se apropria. Esta desigualdade tendencial acarreta a concorrência dos capitais, que produz, por sua vez, a perequação (igualização) das taxas de lucro e a fixação duma taxa geral média. As mercadorias vendem-se então (sob reserva das variações individuais do mercado), não pelo «seu valor», mas pelo seu preço de produção, obtido adicionando os custos de produção (preço dos meios de produção, salários) e o lucro médio. Mas é óbvio (embora Marx não pudesse desenvolver bem este ponto, de importância prática considerável) que o movimento dos preços depende directamente das condições nas quais se pode exercer a concorrência dos capitais, condições que se transformam com a história do capitalismo. É óbvio igualmente que, ao nível de toda a sociedade, a soma dos valores permanece sempre estritamente igual à soma dos preços de produção.
Tal é o verdadeiro enunciado da «lei do valor» de Marx.
Pode aproximar-se dela directamente a «lei da baixa tendencial da taxa de lucro»43 que resulta da própria acumulação capitalista: com ela, a composição orgânica média do capital social tende a elevar-se permanentemente. E, por conseguinte, ainda que o capital aumente sem cessar a massa do trabalho assalariado, alargando a escala da produção e destruindo todas as formas de economia anteriores, tende também constantemente a diminuir a importância relativa, para fazer baixar assim a mais-valia em proporção ao capital total investido (portanto o lucro). Os diferentes meios que o capital põe em prática para «contrariar» esta tendência histórica reduzem-se todos, em última análise, quer a alargar o campo de exploração, quer a intensificar esta, compensando a diminuição relativa da massa de mais-valia pela elevação absoluta da sua taxa. Conduzem portanto todos ao agravamento e à generalização do antagonismo das classes.
As «leis económicas» enunciadas por Marx têm assim duas características notáveis:
—       Por um lado, são leis necessárias, deduzidas do mecanismo fundamental da produção, e não simples «modelos» das variações das grandezaseconómicas definidas ao nível da circulação das mercadorias e dos capitais.
—       Por outro lado, são leis tendenciais, cujos efeitos são contrariados na sequência dos próprios relatórios de produção de que derivam, e que conduzem assim a «contradições». Dependem, na sua realização, do desenvolvimento histórico da acumulação capitalista (cf. acima a concorrência dos capitais, que toma formas diferentes em função do seu grau de concentração, do desenvolvimento desigual do mercado mundial, etc.). Desembocam assim directamente no estudo das fases históricas do capitalismo.44
g)        As contradições do capitalismo
Retomando as indicações dadas acima, podemos distinguir para maior clareza:
—       As contradições características do funcionamento da produção capitalista, que lhe confere uma marcha permanente, aberta ou larvar, de «crise»: superprodução, impossibilidade de controlar à escala social o processo de reprodução e de desenvolvimento das forças produtivas, desenvolvimento desigual dos capitais cuja concorrência arruina de repente regiões ou ramos inteiros de produção, alternância cíclica dos períodos de prosperidade e de depressão. Estas contradições dependem das condições históricas nas quais os capitais individuais se consagram à produção da mais-valia. Compõem o quadro de conjunto do que Marx chamava «a anarquia da produção mercantil».
          A contradição fundamental do modo de produção capitalista que o constitui e que implica por conseguinte, simultaneamente, a sua necessidade histórica e a necessidade da sua destruição: a contradição das classes sociais antagonistas, do capital e do trabalho. Em última análise, todas as contradições do modo de produção capitalista, incluindo as contradições no desenvolvimento das forças produtivas, explicam-se pela necessidade de extorsão de mais-valia, de supertrabalho. E da mesma forma, têm sempre como consequência agravar o antagonismo de classes (pois não é o capital, pelo menos à escala social, que paga pela crise; pelo contrário, como diz Marx, graças à crise, «o modo de produção capitalista afasta espontaneamente os obstáculos que por vezes lhe acontece criar»; são sempre os trabalhadores que pagam o preço da crise e o preço do «retorno à ordem»). Mas se o próprio funcionamento do capital constitui  uma luta de classes permanente de que ele reproduz («eterniza») os factores, desenvolve assim cada vez mais a força daqueles que «são tanto a invenção da época actual como o próprio maquinismo [...] os filhos primogénitos da indústria moderna, e que não serão certamente os últimos a contribuir para a revolução social que esta indústria implica, uma revolução que significa a emancipação da sua própria classe no mundo inteiro, tão universalmente quanto a dominação do capital e a escravatura assalariada são universais».45 O capital engendra os seus próprios «coveiros».
5. CONCLUSÃO: O MATERIALISMO HISTÓRICO
O que é, em suma, o «capital»? Não é uma «coisa» (dinheiro, meios de produção): deve ser pelo contrário estudado como um processo cíclico que se desenrola permanentemente à escala da sociedade inteira, e cujo momento principal é o da produção; é aí que, simultaneamente, se efectua a transformação material da natureza e a criação de mais-valia: é aí que se efectua o trabalho com a condição de ser (de fornecer) um supertrabalho.
Não é um título jurídico, por exemplo a propriedade jurídica (privada) dos meios de produção. Claro que a propriedade jurídica (que toma historicamente uma série de formas, desde o capitalismo individual ao monopólio de Estado) é indispensável ao funcionamento do capital, da mesma forma que lhe é indispensável a forma jurídica, na aparência distinta, do trabalho assalariado. Mas não se trata senão de condições requeridas para o funcionamento das relações de produçãocapitalistas, que são o processo real de apropriação do trabalho por intermédio da apropriação dos meios de produção, que o ciclo capitalista reproduz sem cessar. Enquanto relação social, a propriedade capitalista é idêntica ao trabalho assalariado. Um não pode existir historicamente sem o outro.
O capital é um sistema de relações sociais de produção, que não encobre outra coisa senão a existência do supertrabalho. Da mesma forma, a «lei do valor» desenvolvida pelo modo de produção capitalista não encobre outra coisa senão um modo particular de repartição do trabalho social entre os diferentes ramos de produção e de regulação desta repartição, com vista à obtenção do supertrabalho.
Mas o supertrabalho tem outras formas de existência histórica além da forma capitalista: também a renda feudal é uma forma de supertrabalho, muitas vezes imediatamente visível (na corveia) e que o capital teve de abolir para ele próprio se desenvolver. O capital não é mais que um sistema de relações sociais históricas, transitórias, e com ele o conjunto das categorias «económicas» da circulação e da contabilidade mercantil que requere e generaliza.
Mas esta formulação é insuficientePodia-nos fazer pensar que a análise de Marx conduz a um relativismo histórico; fazer do capital uma simples forma histórica, limitar o seu domínio de validade... A análise de Marx ensina na realidade outra coisa, a que se prende toda a simplicidade e toda a dificuldade da ideia de dialéctica (Lenine dizia nos seus Cadernos sobre a dialéctica que o relativismo é para a dialéctica o que o idealismo é para o materialismo). Ela descobre no próprio mecanismo desta «forma histórica» (o mecanismo da mais-valia) as causas de transformação das condições materiais nas quais aparece (a produtividade do trabalho, a revolução das forças produtivas); as contradições cujo desenvolvimento produzirá a sua própria «negação», a sua própria destruição; os agentes desta transformação (o proletariado), cujas capacidades técnicas, as formas de organização política, a ideologia, prefiguram em parte relações sociais vindouras.
O capital, o conjunto das relações sociais, devem ser definidos indissoluvelmente como processo, como contradição, e como tendência histórica.
Dito isto, não basta de maneira nenhuma ter analisado a determinação económica da dialéctica da luta de classes para estar em posição de a explicar e de lhe dominar as fases concretas. Sobre esta «base», é preciso saber analisar igualmente a «superestrutura» política e ideológica cujo funcionamento é necessário à reprodução do conjunto das relações sociais, por onde passa igualmente a sua transformação, e que consiste em lutas de classes específicas, irredutíveisunicamente à luta económica. Da mesma forma, é necessário estar em posição de analisar o complexo das lutas de classes que, no seio duma dada formação social (a França de 1848, a Rússia de 1917, o mercado imperialista mundial de 1970), nos remetem para modos de produção diferentes, desigualmente desenvolvidos: a questão do campesinato foi sempre o ponto mais difícil da teoria e da táctica marxistas. Estes desenvolvimentos não pôde Marx, pelo seu lado,realizá-los sistematicamente, na sequência de O Capital. Mas esboçou-os amplamente, e pôs as conclusões em prática ao longo da sua actividade de militante.46 Marx não é o único autor da sua obra: o facto era, no seu tempo, ímpar.
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Na exposição de conjunto, que se acaba de ler, que data de 1911, certas formulações são muito alusivas, outras equívocas num ou noutro ponto. Tentei completá-las melhorá-las nos estudos seguintes. Por outro lado, o recorte dos artigos previstos para um diccionário «enciclopédico» obrigou-me a apagar em parte o papel de Engels, ou então a fazer passar a obra e a acção comuns sob o nome de Marx. Mas não pretendo ser exaustivo. Não valeria a pena dizer isto se a distinção entre o «bom» Marx e o «mau» Engels não fosse ainda hoje um dos pontos crónicos do anti-marxismo.


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Notas:
29 Sobre todos estes pontos, cf. Miséria da Filosofia; Salário, Preço e LucroCrítica do Programa de Gotha.
30 Cf. Engels, prefácio ao livro II de O Capital e Anti-Dühring, II parte; Marx, O Capital, livro IV: «Teorias da mais-valia».
31 Cf. O Capital, livro I, cap. 4-5; livro II, cap. 1 a 4.
32 Cf. O Capital, livro III, introd. e s. 7; livro IV.
33 Cf. O Capital, livro I, cap. 6 e sect. 6.
34 Cf. O Capital, livro I, sect. 3.
35 Cf. O Capital, livro I, cap. 10.
36 Cf. O Capital, livro I, sec. 4.
37 Cf. infra, «A Acumulação».
38 O Capital, livro I, cap. 24 (texto da edição alemã).
39 Cf. O Capital, livro I, cap. 25.
40 Os trabalhadores enunciam, eles próprios, a contradição da relação social capitalista de que sofrem assim os efeitos: «Para mim, sou um escravo. A única diferença é que me deixam ir para casa à noite, não me põem cadeias.» (L.D., O.S. 2, regulador da Renault-Billancourt, em Jacques Frémontier, A Fortaleza OperáriaFayard, 1971, pag. 80). «Vim aqui para trabalhar, é tudo. Não é uma vida feliz. O patrão, pode mandar-te varrer as retretes. Só tens uma coisa a fazer, dizer sim. Se o não fizeres é o pontapé. Para a rua. Pode dizer-te: «Se quiseres, volta para tua casa». E depois, a verdade é que eu é que vim aqui procurar trabalho. Não foi o patrão que me foi procurar a mim [...].» Um trabalhador africano, em L’Humanité, 18/XI/71; sublinhado pelo autor, E. B.) Tal é a realidade do trabalhador «livre».
41 Obras completas, tomo III.
42 Cf. livro II, cap. 19, e todo o livro IV.
43 O Capital, livro III, cap. 13 a 15.
44 Cf. Lenine, O Imperialismo, estádio supremo do capitalismo.
45 Marx aos operários ingleses, 14 de Abril de 1856.
46 Cf. supra, I parte.