quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Dialética e Marxismo

 [Carlos Rios]

A paradoxal fita de Mobius


Considerações gerais sobre o marxismo: uma aproximação.

O que chamamos de “marxismo” então deve ser traduzido de maneira mais sistemática. Se nos servimos da súmula de Lenin: “O marxismo é o sistema das ideias e da doutrina de Marx.” [1] Este pensamento seria resultante de uma relação com a filosofia clássica alemã, da economia política inglesa e do socialismo francês.  Segundo esta definição o marxismo teria por isso “três partes constitutivas” [2].

Marx e Engels teriam lutado por se desvencilhar do materialismo limitado de L. Feuerbach, assim como de outros como Bücher, Vogt e Moleschott; que era mecanicista, não histórico (ou anti-histórico), não dialético e criador de uma “essência humana” de modo abstrato puro sem atentar para as relações sociais concretas. Ao combater Feuerbach e outros eles defenderam a dialética. Definida de modo sumário por Lenin como “doutrina do desenvolvimento” a dialética consiste na tese de que o mundo é formado por fenômenos que passam por ininterruptas transformações no lugar de fatos estáticos e acabados. Marx e Engels integraram a tese dialética à concepção materialista da natureza concluindo que esta seria uma comprovação da dialética. Como outro fragmento síntese a dialética pode ser entendida também como “a ciência das leis gerais do movimento tanto do mundo exterior como do pensamento humano” [3]. A “adoção” da dialética por Marx, e esta parece ser um consenso da literatura marxista, ocorreu superando o idealismo de Hegel, autor do qual Marx seria devedor da ideia de dialética.

Por fim, o materialismo dialético de Marx não se sujeita à ação metafísica de qualquer filosofia especulativa. Sua relação com a filosofia, ou do que “restou da filosofia precedente”, é com a “teoria do conhecimento” que abriga a teoria do pensamento e as suas leis, a lógica formal, a lógica dialética etc. Quer dizer, esta toma por objeto o conhecimento e seu desenvolvimento.
A outra face do pensamento marxista em oposição ao limitado e “velho materialismo” é seu caráter histórico. A tese materialista defende que a consciência explica-se pelo ser, tomado esta concepção como método a vida social também deveria explicar a consciência social. Isto quer dizer que não é a consdeciência dos homens que determina suas vidas e suas condições sociais, mas são as suas condições sociais que determinam sua consciência. Com este método o materialismo histórico analisa estas relações por meio das relações sociais compreendidas pela produção. Como disse Engels: “A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social (...)” [4] Sendo assim, são nas relações sociais de produção que se concentram o ser social condicionado pelo estágio de capacidade de produção, de transformação da natureza. Ou seja, condicionado pelo desenvolvimento de suas forças produtivas.

Esta tese considera com isso atitudes sociais que se desenvolvem independentes da vontade dos humanos reafirmando o que já foi dito: a consciência social é determinada pelo ser social, ou de outro modo, a existência precede a consciência. A consciência, a vida espiritual, a religião, a jurisprudência e as instituições políticas são superestruturas que se erguem sobre esta infraestrutura material e econômica da sociedade[5].]

Este tipo de tese afastou a ilusão de autodeterminação consciente até então sustentada por concepções de cunho idealista e conferiu mais objetividade às ciências sociais. Estas se equilibravam até então entre o subjetivismo que se posicionava a partir da coleção de ideologias dominantes deixadas pela história e o acúmulo de dados positivos sem conseguir explicar a marcha geral dos fatos perante ela.

Como se vê Karl Marx e Engels contribuíram de modo revolucionário e decisivo para as ciências humanas. Estes apontamentos iniciais apenas abrem de modo sumário algumas afirmações mais conhecidas referentes ao materialismo. Resta agora tentar avançar e ir mais fundo no pensamento marxista para entender qual sua relação com a dialética.

3-Hegel e a dialética.

Ao afirmar que Marx e Engels abraçaram a dialética como recurso do conhecimento, para compreender e transformar a realidade, não se pode esquecer de que, em se tratando de textos da literatura marxista sempre que a palavra dialética é mencionada o filósofo Hegel também é citado. Tal como em Lenin quando ressalta o “(...) aspecto revolucionário da filosofia de Hegel que Marx adotou e desenvolveu.” [6] Ou ainda em Stalin: “Ao definir o seu método dialético, Karl Marx e Friedrich Engels se referem habitualmente a Hegel, como filósofo que enunciou as características fundamentais da dialética.” [7] E ao mesmo tempo segue a explicação da diferença entre a dialética concebida por Hegel e Marx. O que é esta dialética? No que ela se distingue da dialética de Hegel? Cabe por tanto responder este tipo de questão para que não fiquemos a deriva neste estudo. É preciso limpar este terreno com algumas breves marcações iniciais para orientar os estudos futuros mais detalhados. Começaremos por um entendimento inicial de Hegel e sua filosofia.

A filosofia de Hegel surgiu em um cenário filosófico e sócio histórico determinado, seu estudo auxilia a compreender a dinâmica geral de seu pensamento.[8] Tentaremos destacar aqui alguns aspectos marcantes deste cenário e a dinâmica de sua filosofia.

A Revolução Francesa teve para o hegelianismo o papel de pano de fundo que deixou impressa a sua marca. Esta marca de estendeu como um todo na Europa e sua abrangência no campo do pensamento marcou também o idealismo alemão. No cenário de liquidação política da nobiliarquia e do absolutismo surge a concepção de indivíduo livre pensante na história, sujeito este que transforma a realidade por meio da razão. Porém, se esta revolução abriu tal cenário da história a Alemanha, por outro lado, contratava com seu atraso e miséria material perante a marcha dos acontecimentos. É neste ponto que se situa a filosofia de Hegel e o idealismo alemão em geral: construir refúgios no campo das ideias para a realização da liberdade tão cara aos princípios da Revolução Francesa.

Deste modo, a filosofia “rejeitava” a realidade, já que esta não era uma realização racional humana, só por meio desta adequação à razão o homem poderia ser livre segundo o idealismo. Ou seja, tal condição preconiza que a adequação da realidade à razão do homem é a condição de liberdade ao mesmo tempo em que esta razão só poderia ser exercida pelo homem livre e autoconsciente de seu desenvolvimento. Tal caráter, o de não se acomodar perante a ordem estabelecida, conferiu à filosofia de Hegel o título de “filosofia negativa”, algo que a distinguia da “filosofia positiva” baseada no acúmulo positivo e acrítico de dados e fatos. Esta designação também se referia ao papel da negação do sistema hegeliano no qual a negatividade, a contradição, cumpre papel fundamental.

Porém, ao atestar o papel da razão fica em aberto como defini-lo ou mensura-lo mediante a diversidade das capacidades racionais dos diversos indivíduos existentes. Considerando isso é preciso esclarecer que Hegel fundou o seu sistema no conceito universal de razão.  Assim, o sistema de Hegel é uma estrutura de conceitos articulados em torno do conceito de razão. Em consonância com os princípios da Revolução Francesa o homem deveria ajustar a realidade segundo sua capacidade livre.

Para que esta razão presida a realidade é necessário que o ser, em sua substância, seja um “sujeito”. Por esta sentença Hegel queria dizer que toda a realidade é um processo e dentro dela todo ser um conjunto de forças contraditórias, eis aqui a negatividade antes mencionada. Por isso, pelo conceito de sujeito Hegel toma a definição de “eu”, de subjetividade, de consciência epistemológica (do conhecimento) usualmente acrescida do fato de que esta corresponde a um “modo de existência” no qual toda a unidade se autodesenvolve como processo contraditório. Ela toma consciência de si e da realidade para submetê-la à razão.
É por isso que a figura do homem cumpre importante papel na filosofia hegeliana. Somente o homem poderia se auto realizar e ser um sujeito que se auto determina, somente suas faculdades racionais o permitem ter um conhecimento compreensivo da realidade e transformar as suas potencialidades. Somente o homem possui uma “subjetividade real”. É ela que torna subjetividade e mundo objetivo em um só, ser e sujeito.

Por isso sujeito e objeto se identificam na filosofia de Hegel de modo que todo objeto é tomado como uma espécie de sujeito que termina se desenvolvendo de modo autoconsciente. Até mesmo porque a concepção de história em Hegel é também o desenvolvimento da razão, designada pela palavra Geist (espírito), sendo esta uma “luta incessante para adaptar o mundo às crescentes potencialidades da humanidade.” [9].

É esta busca pela unidade entre realidade posta e a capacidade racional humana o cerne da filosofia de Hegel. E esta só poderia ser atingida após um longo processo como se viu acima. Por isso para Hegel existe diferença entre realidade, que só pode ser entendida pelo conceito de razão universal, e as aparências observáveis das coisas. Como se vê a realidade última das coisas só poderia estar na razão, já que suas formas observáveis a contradizem. Quer dizer, a aparência das coisas não é racional, não existe liberdade para o homem submetido à nobiliarquia alemã e à miséria num território nacional não unificado. Não existiria razão na pauperização dos trabalhadores assalariados e nas crises econômicas periódicas.

É neste cenário do sócio histórico do otimismo racional que surge a filosofia de Hegel. Buscaremos agora concluir esta parte do estudo situando o debate filosófico no qual Hegel está inserido. O debate teórico do seu tempo está também envolto no conflito de ideias opostas. Eram elas: o empirismo inglês, de Hume e Locke e o idealismo alemão, dentro dele o próprio Hegel incluso. Se por um lado Hegel tentava estabelecer conceitos válidos universalmente, os empiristas por outro refutavam a validade destes conceitos. A argumentação deles era de que o conhecimento advém dos hábitos e costumes de modo que só poderiam se referir ao particular, à realidade que Hegel relegou à mera aparência. Ou seja, para eles a verdade não contraria os fatos ordinários da existência como Hegel assumia.

Para o idealismo alemão em geral tal posição comprometia a possibilidade de ordem à realidade por meio de conceitos universalmente válidos. Ela colocava o homem em uma posição conformista e cepticista. Em síntese, por se conformar as formas dadas da existência o homem renunciaria à sua própria liberdade que tem na razão universal a sua precondição.
Neste panorama, situava-se também Kant que ao adotar a tese dos empiristas referente à origem do conhecimento na experiência afirmou que somente a razão inata no espírito humano seria capaz de organizá-la. O espírito humano o faria por meio de formas universais, formas de intuição (espaço e tempo) e formas de entendimento (categorias) todas ela firmadas a priori das experiências. Em resumo, a ordem do “mundo dos objetos” seria estabelecida por um sujeito pensante, que não pode ser confundido com o indivíduo, com atos de seu espírito estruturado de modo universal nos indivíduos.
Tal tese caminha no sentido de tentar “salvar” a razão humana da conformidade do “dado” deixado pelos empiristas. E Kant adotou o termo “apercepção transcendental” como processo de síntese pelo qual a “consciência transcendental” opera as formas de intuição e entendimento. Porém, este aspecto leva a outra importante questão. Ao defender esta tese Kant defende também que se o contexto do conhecimento se opera por meio de tais formas a priori no espírito não seria possível conhece-lo “em si”. Não seria possível tocar a essência das coisas.

Para Hegel esta concepção se prostraria aos “ataques empiristas” e deixaria relegadas a inação “as coisas desconhecidas em si”, fora do alcance da razão. Mais uma vez seria inviável, sobre tais pressupostos, a liberdade humana. Conforme a filosofia hegeliana é possível tocar a essência das coisas, conhece-las em si, pois para esta filosofia “aquilo que é verdadeiro é idêntico ao seu conceito” [10]. Ou seja, o conceito toca a essência das coisas por se referir também a sua realização, ao seu desenvolvimento ulterior, às suas formas vindouras.  Assim, para o sistema de Hegel os conceitos têm aspecto ambíguo e não são meros conceitos formais, pois para ele “o pensamento correto representa a realidade porque esta última, no seu desenvolvimento, atingiu o estágio em que está existindo em conformidade com a verdade." [11].

Esta é a dinâmica do pensamento de Hegel que considera todo ser como um sujeito estabelecido num processo contraditório de “vir a ser”, sempre superando as aparências do dado, sempre ligado ao movimento da razão que possibilita a eles se desenvolverem suas potencialidades às suas formas verdadeiras, consonância com a razão. Este é o processo de mediação (vermittlung) de Hegel, é a sua dialética. Finalmente, conforme o método dialético de Hegel os fatos comuns, os dados, devem ser destruídos para se estabelecer a verdade: dinâmica essencial de sua filosofia negativa.

Esta foi uma abordagem sumária muito panorâmica e geral sobre Hegel com o intuito de situá-lo no seu contexto histórico e filosófico para melhor compreende-lo. Com o terreno aplainado, retornemos a nossa questão inicial: Qual a relação de Marx com a dialética de Hegel?

4- Marx e Hegel.
É conhecida a afirmação de que Marx teria “invertido Hegel e o aplicado sobre as teorias de economia política e sobre o socialismo francês”. A menção retoma o clássico texto de Lenin aqui antes citado “as três fontes e as três partes constitutivas do marxismo”. Porém, a dúvida permanece justamente aí: como Marx teria “virado de ponta à cabeça” a dialética hegeliana e assim operado análises tal como aquelas presentes na obra “O capital”? A constante referência a esta operação de inversão parece estabelecer uma distinção entre Marx e Hegel sem explicá-la claramente. 

Permanecendo no escuro devemos aprofundar um pouco mais para superar expressões vagas que surgem tal como chaves esotéricas e obscuras. Nesta tentativa estudaremos a tese de Althusser[12] para abrir caminho para debates e estudos posteriores mais aprofundados. Cabe aqui expô-la brevemente para tentar tirar algumas indicações.

Althusser situa a relação entre Marx e Hegel dentro de uma análise estruturada segundo “realidades” enunciadas em teses, abordaremos estas que parecerem ser transversais nos escritos do autor possuindo implicações significativas:

Tese1: “A união ou fusão do movimento operário e a teoria marxista é o maior acontecimento da história das sociedades de classes, isto é, praticamente de toda história humana.” [13].

Desta tese se estabeleceram as seguintes relações. A primeira diz respeito da união entre teoria e prática selada entre o movimento operário e a teoria marxista. A segunda refere-se ao fato dela não ser totalmente adquirida.

Tese 2: “A teoria marxista inclui uma ciência e uma filosofia.” [14]

Estes dois componentes da teoria marxista são o materialismo histórico (MH) e o materialismo dialético (MD) respectivamente. A relação entre estas duas disciplinas é aquela da ciência ocupando o campo de determinação e da filosofia ocupando o campo de domínio. Esta relação será estudada com mais detalhes posteriormente, mas vale aqui ressaltar que o autor distingue estas duas disciplinas.

Tese 3: “Marx fundou uma ciência nova: a ciência da história das formações sociais ou ciência da história.” [15]

A conhecida metáfora dos “continentes científicos” surge pra ilustrar esta tese. Nela cada continente representa uma área, ou melhor, ciência na história da produção de conhecimento. Assim, quando surge uma nova ciência ela contesta as formas de conhecimento que previamente ocupavam tal área, ou para o autor: os “antigos ocupantes do espaço teórico”. A forma de expressão desta “descoberta continental” se processa por meio de um “corte” que abre caminho para o trabalho da prática científica. Seguem abaixo os “continentes científicos” didaticamente distinguidos pelo autor:

{1º continente: a matemática aberto pelos gregos.
{2º continente: a física aberto por Galileu.
{3º continente: a história aberto por Marx.

Tese 4: As grandes descobertas científicas provocam transformações de grande envergadura na filosofia.

Retornamos aqui à relação entre ciência e filosofia antes mencionada sobre relação entre o MD e MH. Para estas duas disciplinas existe uma relação de domínio e determinação, a relação entre as duas disciplinas é reafirmada na tese 4: a ciência ocupa espaço de condição de possibilidade para a filosofia[16]. É por este motivo que tamanhas transformações se operam na filosofia diante do surgimento de novas “ciências continentais”. O autor chega a estabelecer uma cronologia comparativa entre o surgimento destas ciências e a história da filosofia:

{1º continente-matemática: nascimento da filosofia com Platão.
{2º continente-física: transformações profundas na filosofia com Descartes.
{3º continente-história: nova transformação da filosofia com Karl Marx.

A terceira ciência continental e seus impactos filosóficos estão ligados diretamente a XI tese sobre Feuerbach[17]onde a filosofia rejeita a mera contemplação da realidade e busca a sua transformação. Surge aí a ”nova prática filosófica” mencionada por Althusser em “A transformação da filosofia” [18]. Para tal perspectiva a filosofia deveria transformar o mundo no lugar de apenas interpretá-lo. Visto desta forma a filosofia é também política e por isso sujeita às “relações de força”. Na nossa atual relação de forças ideológicas as ideias burguesas estão no poder levando à criação de um “cordão ideológico” de combate ao marxismo.
Tese 5: “Como explicar a descoberta científica de Marx?”

Esta tese na forma de pergunta tenta situar a relação entre Marx e Hegel no processo de surgimento da ciência da história. Aparentemente estamos próximos de um esboço de resposta da nossa pergunta inicial. Althusser ressalta a concepção marxista da história que parte do conhecido princípio: “não são os homens que fazem a história”, mas a dialética geral da história realiza-se na prática dos homens por meio das massas na luta de classes. Para a história das ciências e da produção de conhecimentos existe similitude com a concepção marxista da história[19]. Ou seja, a descoberta dos indivíduos é maior que o arbítrio ou voluntarismo por eles possuído.

O autor alude às indicações de Lênin na obra “as três fontes do marxismo” (já a citamos aqui mais de uma vez) no que se refere à produção da teoria socialista. Ela é resultado de uma “prática teórica”, conceito que rendeu ao autor uma série de críticas e polêmicas que não serão abordadas por hora. O importante é que para a dialética de Marx, aquela que está presente em “O capital”, existe uma prática teórica a ser compreendida.

Num quadro esquemático geral Marx teria usado um instrumento de produção, aqui se refere a Hegel evidentemente, para aplicá-lo à sua matéria prima, a teoria do valor de Ricardo e o socialismo francês. Esta operação teve como produto “O capital”. É justamente aqui que ao autor se diferencia de diversas aplicações atribuídas às relações entre Marx e Hegel. Pois para ele Marx não teria simplesmente “aplicado Hegel em Ricardo”, ou meramente realizado uma “inversão de uma tendência idealista na tendência materialista”, mas sim realizado uma transformação na dialética de Hegel.
“O instrumento de trabalho teórico que transforma a matéria-prima teórica é ele próprio transformado pelo seu de transformação.” [20]            .
Apesar de aparentemente enigmática esta afirmação possui um significado preciso. Ela quer dizer que o instrumento teórico (Hegel) foi transformado ele mesmo na sua “aplicação” na “matéria prima teórica” (Ricardo e o Socialismo francês). Tal concepção deixada por Althusser visualiza em Marx um teórico que rejeitou o sistema de categorias filosóficas clássicas e diferencia-se de Hegel. Marx é fiador, por tanto, de:

{ Concepção não hegeliana da história;
{ Concepção não hegeliana de estrutura social;
{ Concepção não hegeliana de dialética.

Estas afirmações carecem ainda de esclarecimentos, pois Marx é depositário da dialética. Por outro lado, falta ainda explicarem em que sentido ele se coloca como devedor deste legado. Em síntese: em que sentido ele é devedor de Hegel? A busca por tal explicação requer uma pequena digressão por parte do autor na obra aqui constantemente supracitada.

Comumente, existem referências na literatura filosófica onde a dialética é identificada como uma oposição ao “fixismo do entendimento”. Dialética para esta leitura se caracteriza como uma forma de relativismo e historicismo. De outra forma, uma reposição da “Razão crítica do entendimento de Hegel”. Porém, a rejeição ao relativismo de Lenin na obra “Materialismo e empireocriticismo” é forte indício de que está não é a dialética adotada por Marx.

Onde está a relação entre Marx e Hegel? Uma resposta possível é a formulação que indica que é a apropriação de Marx do “núcleo racional” da dialética em Hegel. E onde estaria então este “núcleo racional“ da dialética?  Continuemos nesta busca analisando a exposição althusseriana sobre a história de formação do pensamento marxista.

O momento decisivo desta história foi a ruptura de Marx com o humanismo teórico de Feuerbach. O texto que expressa esta ruptura são as “tesessobre Feuerbach” escrito após a introdução à força de Hegel em Feuerbach nos manuscritos de 1844.

E o que seria este “humanismo teórico”? Para responder a esta questão o autor se embrenha numa digressão sobre a filosofia de Feuerbach baseada nas suas obras principais como “A essência do Cristianismo” e “Filosofia do futuro”. Sua filosofia foi responsável pela tentativa de por fim ao idealismo alemão ao mesmo tempo em que partilhava dos problemas por ele colocados. Para tentar resolvê-los o filósofo se utilizou de elementos advindos do século XVIII. Este fato confere a ele uma filosofia que “regula seus traços de idealismo alemão (...) através de um sistema teoricamente retrógrado.” [21]·.

Em síntese, Feuerbach tomou as questões idealistas e as resolveu invertendo a relação baseada na ideia/razão de Hegel e integrando a unidade das distinções no conceito de homem, natureza e Sinnlichkeit (materialidade sensível, receptividade e intersubjet6ividade sensível). Feuerbach, por tanto, opõe-se às concepções de Hegel por considerá-las abstrações que são renunciadas em nome do sensível, do concreto. Estes são fatores imprescindíveis para a sua teoria da alienação. Esta afirmação do homem pela superação da especulação hegeliana é uma forma de inverter a Razão (ou Ideia) no real, o atributo no sujeito, o abstrato no concreto. Este caminho em rumo da “essência extraviada do homem”, do sujeito, no entanto carrega consigo uma série de dificuldades.  A principal delas é inviabilidade própria da inversão como método.

Conservar os problemas do idealismo alemão gerou um estreitamento da problemática filosófica e gerou uma aparência de inversão. Feuerbach sacrificou a dialética e a história presentes em Hegel para fazê-lo. Justamente estes são os fatores do qual Marx é devedor. Marx é devedor da concepção de história como processo e, mais importante, da história como processo sem sujeito. Aqui a reflexão parece finalmente se aproximar do “núcleo racional” da dialética hegeliana antes mencionado.

Em Hegel, o sujeito é o processo mesmo da negação, ou negatividade, ou seja, “a própria dialética”. Em resumo, “como este sujeito é a dialética (...) não há sujeito no processo: é o próprio processo que é o sujeito na medida em que não tem sujeito.”[22]. Marx, no entanto, teria transformado de tal forma a dialética hegeliana que não teria incorporado sua concepção de negatividade. Este conceito repelido por Marx constitui a teleologia dialética de Hegel pode ser traduzido como “ultrapassagem-conservando-o-ultrapassado-como-ultrapassado-interiorizado”. Pois para Althusser:

“Tirai, se possível, a teleologia e resta esta categoria filosófica que Marx herdou: a categoria de processo sem sujeito. Eis a principal dívida positiva de Marx para com Hegel: o conceito de processo sem sujeito.” [23].

Ou seja, esta dialética e concepção de história se apresentam de forma desantromorfizada. Ela não é a dinâmica do processo de alienação do Homem ou dos povos. Mas, se Marx não se apresenta como caudatário desta teleologia quais as consequências teóricas deste fato? Este questionamento revela que o sujeito é uma noção ideológica e que o conceito de processo é científico.
Para tanto, o autor enumera duas importantes consequências. A primeira diz respeito à possibilidade de existência da ciência da história. A segunda é a revolução operada na filosofia clássica até então existente baseada nas categorias de sujeito e objeto, considerando esta relação onde objeto é um “reflexo especular do sujeito”. Desta forma, Marx toma por referência o processo da história, processo de relações: relações sociais de produção, relações políticas e ideológicas.

Concluindo este breve estudo, Althusser analisa a relação entre Marx e Hegel sob o conceito de “trabalho teórico” Por meio desta ação Marx transformou a dialética de Hegel ao elaborar a obra “O capital” e não simplesmente “invertido Hegel” ou “invertido o idealismo no materialismo”. A concepção dialética marxista não é hegeliana e não é teleológica e assume o processo compreendido em relações. Marx é assim herdeiro de Hegel na medida em que concebe a história como processo sem sujeito. Tomemos estes pontos como orientações iniciais para aprofundamentos futuros na busca pela correta formulação do marxismo-leninismo e uma correta orientação na luta de classes.




[1] LENIN. Karl Marx. Em: Obras escolhidas, tomo 1. São Paulo: Alfa-Ômega, 1982.
[2] LENIN. As três fontes e três partes constitutivas do marxismo. Em: Obras escolhidas, tomo 1. São Paulo: Alfa-Ômega, 1982.
[3] ENGELS, F. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Em: Marx, K. , Engels, F. Obras escolhidas. Volume 3. Alfa Ômega: São Paulo,1982 .
[4] ENGELS, F. Do socialismo utópico ao científico. Global editora: São Paulo, 1984. Pág.54
[5] Althusser foi um dos teóricos que ao estudar a relação infraestrutura e superestrutura a relacionou com a “metáfora do edifício”. Esta sofreria de limitação por ser descritiva e poderia ser superada com o estudo da reprodução. Para mais informações ver: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). 6ª edição. Graal: Rio de Janeirol, 1992. 
[6]LENIN. Obra citada.
[7] STALIN, Josif. O materialismo dialético e o materialismo histórico. Em: Netto, José Paulo (org.). Stalin Política. São Paulo: Ática, 1982.
[8] Para este assunto ler: MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
[9] MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social. São Paulo: Paz e Terra, 2004.pág. 21
[10] MARCUSE, Obra citada. Pág 32.
[11] Idem.
[12] ALTHUSSER, Louis. Sobre a relação entre Marx e Hegel. Em: A transformação da filosofia, seguido de Marx e Lênin perante Hegel. Mandacaru: São Paulo, 1989.
[13] ALTHUSSER, Obra citada, pág. 64
[14] Idem, pág. 65.
[15] ALTHUSSER, Obra citada pág. 66.
[16] Para mais detalhes ver: ALTHUSSER, Louis. A dupla revolução teórica de Marx. Em: ALTHUSSER,L., BADIOU.Materialismo histórico e Materialismo dialético. Global: São Paulo, 1986.
[17] MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. Em: Marx, K. ,Engels. F.Obras escolhidas vol3. São Paulo: Alfa-Ômega, 1982.
[18] ALTHUSSER, Louis. A transformação da filosofia, seguido de Marx e Lênin perante Hegel. Mandacaru: São Paulo, 1989.
[19] “Os indivíduos empíricos conhecidos por terem feito tal ou tal descoberta, realizam, na sua prática, relações e uma conjunção que as ultrapassa.” ALTHUSSER, Obra citada págs. 70-71.
[20] ALTHUSSER, Louis. Obra citada pág.76.
[21] Idem. Obra citada pág. 83.
[22]Idem. Obra citada pág. 94.
[23] Idem, obra citada pág. 95.