domingo, 10 de fevereiro de 2013

A indigência cultural no país e suas verdadeiras causas: sobre um artigo de Safatle




Reproduzimos abaixo um recente artigo do filósofo Vladimir Safatle, publicado na Carta Capital. Já não é a primeira vez que indicamos ou dialogamos com alguma proposição do filófoso. Um exemplo foi nosso recente ensaio sobre a política racionalista de esquerda, presente aqui: http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/12/por-uma-nova-teoria-da-ideologia.html, onde nos aproveitamos de suas inovações para a teoria da ideologia marxista, que se afastam da linha teórica (e política) majoritária nos últimos anos em nosso país, quer seja, o humanismo-historicismo.

Mesmo levando em conta todas as ponderações (que apresentaremos também em relação a esse artigo) frente às posições de Safatle, que não é nenhum militante revolucionário ou marxista, no sentido prático da palavra, achamos que volta e meia Safatle, autor de destaque na “opinião pública” em geral, apresenta questões importantes no debate teórico e político contemporâneo em nosso país, relacionando os mundos da cultura e da ideologia, que são os objetos mais privilegiados no projeto BRADO!. Essas contribuições nos ajudam a reformular algumas posições dentro do marxismo, atualizando-o para a conjuntura.

Esse artigo de Safatle abre caminhos para sair do relativismo que fecha-se a total e qualquer crítica cultural (impossibilitando assim, a crítica ideológica, bem comum ao discurso ceticista da pós-modernidade). Aponta, corretamente sobre a cultura subordinada à logica de reprodução do capital. Além de destacar os limites do espontaneísmo cultural e que mesmo em comunidades pauperizadas ideologias e culturas reacionárias também operam. 

No entanto, parece válido ponderar uma defesa dele que afirma: "Uma verdadeira política cultural deveria insistir na autonomia da cultura, ou seja, na sua realidade como fim em si mesmo, e não como meio para se alcançar outra coisa." 

Esta defesa resvala em parte em uma perspectiva liberal(arte por arte etc.), ou para o elitismo cultural e estético presente, por exemplo, nos teóricos de Frankfurt, sobretudo Adorno, de grande influência na posição de Safatle. Não poderia a cultura ser parte de uma processo revolucionário que incita outras transformações dialéticas para além de "si mesma"? Um martelo que molda a realidade, como dizia Brecht? A realidade, que Safatle diagnostica como ausência de política autônoma para a cultura, não seria mais precisamente uma reprodução necessária das estruturas que hoje nossa sociedade se assenta, levadas a cabo por um projeto de governo oportunista, em nada “popular” ou “democrático”? Aqui vale o conceito de Mao de contradições encadeadas ou a perspectiva de Althusser, baseada em Mao, de sobredeterminação: cultura pode ser determinante em certa perspectiva, porém ela pode tornar-se seu contrário (identidade dos contrários) e é interdependente das demais contradições. Deste modo, ela nunca poderá ser um "fim em si mesmo" e sua autonomia só pode ser relativa: por isso ela pode ser um meio para alcançar diversos objetivos, para expressar a agudização de contradições principais, e também um objetivo por meio no qual diversos meios se convergem, ou a contradição principal que encadeia as secundárias etc. A autonomia relativa da cultura encerra uma certa possibilidade de “contribuições universais”, núcleos de neutralidade nas práticas sociais, mas nunca é totalmente separada do campo da luta de classes. Isso nos previne de cair nos extremos (desvios) e adotar uma posição justa, que é o princípio e objetivo da dialética: não há nem cultura puramente ideológica, nem cultura puramente “técnica” e neutra, autônoma das esferas de poder; não há nem esponteneismo puro (como quer o obreirismo ou o culturalismo relativista), nem puramente cultura como acúmulo e reprodução de conhecimentos e técnicas universais e exatas.

Se nós pensarmos no papel da cultura nas revoluções fica nítido o tipo de destruição operada por ela e na luta sem quartel contra as culturas contrarrevolucionárias. Resumindo, admitindo este ponto já não é possível defender uma "autonomia da cultura" ou como "um fim em si mesmo". Pode ser pensado que o autor apontou uma linha de defesa conjuntural para a cultura para "abrir espaço na indigência de nossos tempo presentes", porém numa perspectiva mais ampla ela parece equivocada e ainda na conjuntural questionável se levarmos em conta uma ampliação da ideologia conservadora que nós temos indicado (e como se observa também as críticas de Safatle).Uma linha de fundo liberal é justa para vencer este combate? Reflexões necessárias pois em certas táticas a melhor via é o ataque e não defesa. 

Também nesse sentido, não podemos pensar uma construção de uma alternativa cultural, que nos ajude a sair desse pântano de mediocridade mercadológica que vivemos, separada da (re)construção política das classes progressistas. Isso quer dizer, de uma alteração da correlação de forças dentro da luta de classes que possibilite minar a universalidade da ideologia dominante, não como visão de mundo que paira no ar ou está na consciência dos sujeitos, mas entendida como conjunto “material” de práticas e instituições. Como afirma Althusser, não há ideologia sem práticas sociais específicas, tecidas na concretude das formações sociais e na luta de classes. Por isso, mais uma vez, não é só da cultura, ou da estética, como queria Adorno, que virá o iniciar da nova sociedade, da nova subjetividade, pelo contrário: sozinha ela não pode nada, a não ser se isolar numa torre de marfim, num “grande hotel abismo” (Lukács)que se tornou grande parte dos núcleos acadêmicos, intelectuais e culturais progressistas e críticos.

Como dito por um texto publicado por nós de Augustín Cueva (aqui: http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/07/cultura-classe-e-nacao-de-agustin-cueva.html), “[...a]cultura não é, em primeira instância, um fator constitutivo (determinante) da estrutura social [...] a cultura não pode desenvolver-se sem sofrer algum tipo de determinação proveniente da estrutura de classes própria de cada formação social.” E o autor continua em seu texto, embasando-se em Gramsci, que a cultura “popular”, esmagada, dominada, e desarticulada, precisa de uma força sistematizadora. Ora essa força só é capaz com uma força de classe, uma força centralizadora no campo da política.


Relativa prosperidade, absoluta indigência

Revista Carta Capital - 04/02/2013

Análise| O atual ciclo de recuperação econômica, ao contrário do passado, não estimula a cultura brasileira

POR VLADIMIR SAFATLE

Analisar os rumos da cultura brasileira nos últimos dez anos é um exercício tão necessário quanto negligenciado. Poucas são as análises dispostas a tanto, sejam na mídia, sejam no mundo acadêmico. Ao que parece, estamos paulatinamente a nos acostumar com uma modalidade estranha de inibição de julgamento. Como se julgamentos de valor no campo da cultura fossem exercícios proibidos, pois seriam pretensas manifestações de uma vontade de submeter a multiplicidade da produção cultural a padrões, no fundo, particulares de avaliação.

Sim, pois, para esta nova doxa, quem afirma ser possível pensar de maneira valorativa a produção cultural quer, no fundo, apenas impor seus gostos. Como se todo o exercício crítico de levar em conta o estado atual das linguagens artísticas, seus desafios técnicos, suas realizações passadas, assim como a capacidade de as obras de arte fornecerem modos de organização e relação ainda não tematizados pela vida social fosse em vão. 

A disseminação de tal perspectiva de desqualificação do próprio exercício da crítica cultural talvez explique um pouco sobre as dificuldades da produção artística dos últimos anos. É fato que todos os momentos de crescimento econômico brasileiro foram traduzidos em momentos de grande explosão criativa. Foi assim nos anos 30, nos anos 50 e mesmo nos anos 70, em plena ditadura. Não foi assim agora. Alguns podem acreditar que fazer afirmações dessa natureza implica abraçar um discurso passadista, muito fixado em alguns momentos privilegiados e idealizados da cultura brasileira. Mas ele seria passadista se fizesse uma desqualificação generalizada da produção recente, o que não é o caso. 

Há de se reconhecer que a produção contemporânea é, em várias partes do mundo, substancial. Olhemos para nossos vizinhos. Muito se fala sobre a qualidade do cinema argentino, da literatura chilena. Da mesma forma, artistas plásticos promissores continuam a aparecer em várias partes do mundo. Isso serve para nos mostrar como, na verdade, há um problema especificamente brasileiro.

Podemos levantar, ao menos, dois eixos principais de análise para tal problema. Primeiro, sem crítica cultural não é possível consolidar uma cena artística com capacidade de induzir novos artistas e dar visibilidade a problemas comuns. Se Nova York conseguiu firmar-se, no fim dos anos 40, como polo cultural mundial nas artes plásticas e na música, muito disso deve ser creditado à existência de críticos como Clement Greenberg, Michael Fried ou de músicos com profunda capacidade especulativa e teórica, como John Cage. 

Mas vejam a situação brasileira. Pergunte-se, por exemplo, quantas revistas de crítica de artes visuais, com circulação bem estabelecida, existem atualmente em nosso país. A resposta é simples: nenhuma. A situação, em larga medida, se repete quando voltamos os olhos para a música e mesmo para a literatura, salvo algumas heróicas exceções. Para complementar, nossa postura nas universidades acaba, muitas vezes, por colaborar na perpetuação dessa situação. No fundo, estimulamos pouco nossos alunos a se confrontar e pensar, de maneira crítica e interessada, a produção cultural recente. Não só a brasileira, mas a mundial. Nós mesmos fazemos muito pouco tal confrontação. 

Outro eixo importante para analisar a situação brasileira é a ausência de uma verdadeira política cultural. Na verdade, o discurso sobre cultura no Brasil está atualmente prensado entre a economia e a assistência social. Ações de cultura justificam-se por meio de dois eixos: ou o fortalecimento da "economia criativa" ou o uso da cultura como instrumento de integração social de classes desfavorecidas. Colabora para tal limitação o modelo de financiamento, baseado em larga medida na transformação de diretores de marketing de grandes empresas naqueles que decidirão o que será produzido e distribuído. Para eles, desviar investimento para a cultura justifica-se ou por rentabilidade (o que explica por que algumas das melhores coleções de arte da atualidade são de propriedade de bancos) ou para tirar uma bela foto do representante da empresa com crianças pobres, negras e felizes desenhando. 

No caso da reconfiguração da cultura sob a égide da economia criativa, anda-se no mesmo passo do processo contemporâneo de financeirização da cultura. Com números e gráficos mostra-se o potencial de investimento e geração de empregos que os campos da cultura prometem. "Pensem na importância da indústria cinematográfica para a economia norte-americana ou na maneira com que as artes plásticas se transfor­maram em ativo privilegiado de valorização do capital", é o que dizem. Como essa função de rentabilização financeira afeta a própria estrutura das obras? 

Já no caso da transformação da cultura em setor da assistência social, cria-se uma cultura de ONG que procura justificar os investimentos em cultura com o discurso falso da integração social. Fica uma questão: se o índice de violência não cair depois de aberto um centro cultural na periferia, seria então o caso de fechá-lo? Pior é quando essa cultura de ONG acaba por criar a ideia intocável e paternalista de "cultura popular", onde qualquer manifestação da periferia é vista como expressão da "espontaneidade" do povo. Alguém deveria lembrá-los de que comportamentos e produções reacionárias e regressivas existem no centro e na periferia. 

Uma verdadeira política cultural deveria insistir na autonomia da cultura, ou seja, na sua realidade como fim em si mesmo, e não como meio para se alcançar outra coisa. Ela deveria, ainda, ser capaz de articular, de maneira profunda, ações de fomento, de difusão e de formação. Se todas as discussões para sairmos do padrão problemático de financiamento da cultura herdado pela Lei Rouanet são mais do que bem-vindas, há de se lembrar que pouco se discute sobre problemas de difusão e formação. 

Principalmente no último caso, nossa vocação ao espontaneísmo (mesmo nos­so maior compositor, Villa-Lobos, gostava de se apresentar como autodidata) parece nos fazer acreditar que a produção artística não passa pela internalização de um lento processo de aprendizado das técnicas e da visita frequente às tradições, mesmo que um segundo momento do aprendizado seja a capacidade de esquecer o que se viu demais, como essas figuras de Gestalt, nas quais a forma acaba por passar ao fundo. Há tempos o País espera uma verdadeira política de formação de escolas de artes, conservatórios, escolas de cinema, entre outras. Nada disso ocorreu. Ela seria fundamental para dar forma à incrível criatividade do nosso povo e à sua sede desmedida de invenção.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Progressismo na música: duas (semi)homenagens a Marighlella


Marighella: entre a difamação e a glória deturpada


Quando a hegemania cultural é da reação, como hoje em dia, é comum a esquerda ficar alegre, muitas vezes de maneira totalmente acrítica, com qualquer furo nesse acachapante cenário. Fica alegre e reivindica para si, sem nenhuma ponderação qualquer heróico esforço de se contrapor ao status vigente. Muitos riscos moram por aí.

Nessa virada de ano vivenciamos na mídia e na vida cultural do país um retorno do rosto mais odiado da ditadura: o de Marighella. Não é por menos, final de 2011 representou o centenário do internacionalmente conhecido comunista brasileiro. Foi lançado um filme Isa Grinspum Ferraz [1], sobrinha do revolucionário, narrado pelo grande ator Lázaro Ramos; um livro Marighella - O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães [2]; uma música/clipe dos Racionais MC's, Mil faces de um homem leal, presente no filme de Isa [3] e que marca o retorno à ativa do maior grupo de rap da história do país; e uma música, mais recente, do dúbio artista Caetano Veloso, Um comunista, que integra seu mais recente álbum "Abraçaço" [4]. Além de outras atividades culturais e políticas de menor impacto na "opinião pública".

Quem foi Marighella, a quem interssa sua "fama"?

A mobilização popular no período de "redemocratização" do país obrigou constar na história oficial a heróica batalha de lutadores que pegaram em armas para defender seu país. Dentre eles Marighella. Mesmo que esse processo ainda não tenha, nem de longe se completado, só ver a fachada da Comissão de Verdade e Justiça tutelada pelo governo federal [5], ou tenha sido menor e menos expressivo, se comparado a outros países da America Latina que sofreram com as ditaduras fantoches do capital estrangeiro, o fato é que conseguiu-se minar, pelo menos para o povo, a legitimidade do terrorismo de estado daquela época.

O monopólio midiático, as forças armadas e diversos outros setores e aparelhos de Estado e das classes dominantes, obviamente, tentam constantemente difamar essa memória, apagar a verdade ou "relativizá-la" desse período histórico de intensa luta de classes em nosso país e no mundo. Um exemplo é o discurso liberal "anti-totalitarismo" que tenta igualar, de maneira ridícula, a violência dos "terroristas de esquerda" com o terror estatal-militar. Esquecem de ver, por exemplo, a maneira como era tratados os prisioneiros de guerra dos dois lados para ver o quão "igual" foi!

Essa ameaça de difamação é constante, e tem ganhado, infelizmente, força nos últimos anos, junto com a reorganização do setor conservador.

Isso mostra que a luta pela memória é uma disputa contínua, uma das facetas da luta de classes. Por isso é importante defender nossos lutadores de toda e qualquer falácia ou ataque. Independente do viés ideológico e da luta política devemos lembrar que nossos mortos são nossos mortos.

Porém o inimigo também pode fazer seu serviço de maneira indireta, não explicitamente. Essa é a forma mais perigosa de ataque e que mais arrasta incautos.

Marighella, de fato, foi o "inimigo nº 1 da ditadura". Um militante revolucionário extraordinário, experiente, que estava disposto, como mostrou na prática, de dar sua vida pela causa do povo brasileiro e da revolução. Mas será que sua fama, mostrado como paradigma de luta contra a ditadura, de alguma forma indireta, favorece o inimigo?

Como se sabe, Marighella e sua organização ALN, foram fortemente influenciadas pelo foquismo, retirando de maneira errônea lição da experiência cubana e sua importação mecânica. Sua saída do imobilismo do velho PC foi em direção a uma linha política extremamente militarismo, de menosprezo da teoria, da política e das massas. A ALN era uma organização de ação, visava a guerrilha urbana como soma de forças para uma guerrilha rural. As armas controlava a política, e não a política as armas. Um erro fatal.

A falência dessa linha para o proletariado e as classes trabalhadoras ficou clara em nosso país. A repressão cirúrgica do regime extirpou durante anos do país organizações revolucionárias. Eliminou-se os quadros revolucionários, eliminou-se tudo. Isso podemos incluir até mesmo uma experiência que tentou escapar do foquismo, a guerrilha do araguaia, como ficou conhecida, liderada pela reconstrução do PC no nosso país.

"Se for para fortalecer uma linha política revolucionária, que seja a errada, mais confusão e esforços inúteis serão espalhados", "pensa" o inimigo (ou pelo menos, é a lógica de seu ataque ideológico). Por isso, de certa forma, a imagem personalista de Marighella e de sua linha política incorreta são um deserviço ao verdadeiro balanço que os revolucionários devem fazer de sua luta histórica e nacional. Isso, fique claro, de forma alguma retira a importância de Marighella, sua luta, sua organização. Como dito, estão do nosso lado, e devemos defendê-la. Porém, também não podemos dispensar a auto-crítica e cair na armadilha ingênua da reação fantasiada. Junto com nossa defesa, devemos levantar nossa crítica e outras organizações "apagadas" (intencionalmente) da fama, que aplicaram políticas mais justas, e tentaram superar o foquismo, o imobilismo de direita e o sindicalismo trotskista. De toda a derrota sofrida na ditadura o que mais devemos aprender é: sem partido e sem teoria revolucioária, a classe, mesmo com quadros armados naquele momento, está desarmada e não conseguirá realizar sua tarefa histórica.

Duas (semi)homenagens a Marighella: um desvio lumpen, um desvio pequeno burguês, ou duas faces da mesma moeda

Se vimos que nem toda reivindicação faz um serviço à nossa memória e à causa, que essa pode servir sim a um deserviço, vamos a dois exemplos práticos, sobre a imagem de Marighella: a música/clipe dos Racionais e a música de Caetano.

Como dito no início do texto, a esquerda cai nos cavalos de tróia do inimigo muitas vezes, pois acata acriticamente o que lhe vem aparentemente como progressista. E realmente caiu nesse caso. Apresentaremos uma breve análise crítica para evidenciar essa afirmação.

Música/Clipe da música dos Racionais:

Letra de Mil faces de um homem leal

A postos para o seu general, Mil faces de um homem leal (2x)/  Protetor das multidões/ Encarnações de célebres malandros/ De cérebros brilhantes/ Reuniram-se no cé/u O destino de um fiel, se é o céu o que Deus quer/ Tô somado, é o que é, assim foi escrito/ Mártir, Mito ou Maldito sonhador/ Bandido da minha cor/ Um novo messias/ Se o povo domina ou não/ Se poucos sabiam ler/ E eu morrer em vão/ Leso e louco sem saber/ Coisas do Brasil, super-herói, mulato/ Defensor dos fracos, assaltante nato(!)/ Ouçam, é foto e é fato a planos cruéis/ Tramam 30 fariseus contra Moisés, morô/ Reaja ao revés, seja alvo de inveja Irmão,/ esquina de velas pra cima de um rebelde/ Que ousou lutar, honrou a raça/ Honrou a causa que adotou,/ Aplauso é pra poucos/ Revolução no Brasil tem um nome/ Vejam o homem/ Sei que esse era um homem também/ A imagem e o gesto/ Lutar por amor/ Indigesto como o sequestro do embaixador / O resto é flor, se tem festa eu vou/ Eu peço, leia os meus versos, e o protesto é show/ Presta atenção que o sucesso em excesso é cão/ Que se habilita a lutar, fome grita horrível/ A todo ouvido sensível que evita escutar/ Acredita lutar, quanto custa ligar? /Cidade chama vida que esvai/ Clama por socorro, quem ouvirá? /Crianças, velhos e cachorros sem temor /Clara meu eterno amor, sara minhas dores /Pra não dizer que eu não falei das flores / Da Bahia de São Salvador Brasil /Capoeira mata um mata mil, porque /Me fez hábil como um cão /Sábio como um monge/ Antirreflexo de longe/ Homem complexo sim /Confesso que queria /Ver Davi matar Golias /Nos trevos e cancelas /Becos e vielas /Guetos e favelas/ Quero ver você trocar de igual/ Subir os degraus, precipício /Ê vida difícil, ô povo feliz / Quem samba fica, /Quem não samba, camba /Chegou, salve geral da mansão dos bamba /Não se faz revolução sem um fuga na mão /Sem justiça não há paz, é escravidão/ Revolução no Brasil tem um nome/ A postos para o seu general/ Mil faces de um homem leal (2x)  Marighella / Essa noite em São Paulo um anjo vai morrer /Por mim, por você, por ter coragem em dizer.*

*Em negrito queremos destacar certas aproximações do ideário lumpen. Já o sublinhado quer demonstrar os desvios personalistas.

Percebemos que a música, de sagazes melodia e letra, é uma homenagem a um homem corajoso que ousou lutar contra as injustiças do país e o regime que as sustentava. Tenta mostrar que esse homem brotou da cultura brasileira, era também um homem comum, dividia uma vida em comum. Sua defesa é a defesa de nossa honra.

As imagens que usa diversas vezes são oriundas de um certo misticismo/teologismo (vide as comparações com figuras bíblicas) e também da vida marginalizada do país (chega chamar Marighella de "malandro", assautante nato!). O clipe também faz referências sobretudo ao segundo aspecto. Há cenas que os membros do grupo estão em vielas escuras de favelas, portando armas, em supostas "ações revolucionárias". Eis um duplo desvio ideológico: o personalismo, que desliga Marughella das massas, de sua organização, de seu período histórico, para virar um homem que "faz história" com as próprias mãos, um super-homem; outro, a estetização da pobreza, claramente pequeno-burguês, de identificar na pobreza, na miséria, a força contra o sistema. Para o velho Marx, os Racionais ainda acreditam que são os lázaros do proletariado que são a tropa de choque da revolução, e não elementos de forte propensão reacionária.

Muita confusão para uma criativa homenagem. Mas o deserviço está feito: aqueles conservadores que comparam as expropriações de grupos revolucionários a meros assaltos, a luta política com o crime (e o contrário da mesma moeda, aqueles que acham que o crime é uma "resistência política"), agradecem; aqueles que tentam mostrar que a revolução é um golpe dado por intelectuais e grandes homens que enganam uma população ignorante, também.


Música de Cateano Veloso (e banda Cê):

Letra de Um comunista

Um mulato baiano,/ Muito alto e mulato/ Filho de um italiano/ E de uma preta hauçá/  Foi aprendendo a ler /Olhando mundo à volta /E prestando atenção /No que não estava a vista /Assim nasce um comunista / Um mulato baiano /Que morreu em São Paulo/ Baleado por homens do poder militar/ Nas feições que ganhou em solo americano /A dita guerra fria /Roma, França e Bahia / Os comunistas guardavam sonhos/ Os comunistas! Os comunistas! / O mulato baiano, mini e manual /Do guerrilheiro urbano que foi preso por Vargas /Depois por Magalhães /Por fim, pelos milicos /Sempre foi perseguido nas minúcias das pistas/ Como são os comunistas? / Não que os seus inimigos / Estivessem lutando / Contra as nações terror / Que o comunismo urdia / Mas por vãos interesses/ De poder e dinheiro / Quase sempre por menos/ Quase nunca por mais/  Os comunistas guardavam sonhos / Os comunistas! Os comunistas! / O baiano morreu / Eu estava no exílio / E mandei um recado: "eu que tinha morrido" / E que ele estava vivo, / Mas ninguém entendia / Vida sem utopia Não entendo que exista/ Assim fala um comunista  /Porém, a raça humana /Segue trágica, sempre /Indecodificável /Tédio, horror, maravilha / Ó, mulato baiano /Samba o reverencia /Muito embora não creia/ Em violência e guerrilha /Tédio, horror e maravilha / Calçadões encardidos /Multidões apodrecem /Há um abismo entre homens /E homens, o horror / Quem e como fará /Com que a terra se acenda? /E desate seus nós /Discutindo-se Clara /Iemanjá, Maria, Iara Iansã, /Catijaçara / O mulato baiano já não obedecia /As ordens de interesse que vinham de Moscou / Era luta romântica/ Era luz e era treva /Vento de maravilha, de tédio e de horror / Os comunistas guardavam sonhos /Os comunistas! os comunistas!

*Sublinhado frases "anti-comunistas", negrito apoio tácito e confuso "à causa".

Caetano é um artista dos mais perdidos ideologicamente da história contemporânea do país. Por vezes vem com uma crítica social, um certo anti-conservadorismo. Outras vezes, um anti-comunismo atroz. Essa música só refoça.

A música não vem com a estética feroz dos Racionais. É quase um rock minimalista, um tanto melancólico, nostálgico. Mas a letra também tende a prestar uma homenagem, contar a história, quase literal (e mais completa e contextualizada que na música dos Racionais), das ações de um grande homem. Só que fixa bem esse homem e seus sonhos no passado. Caetano abraça, ceticamente, a "democracia" como verdadeiramente fim da história. Defende Marighella, mas muito mais para se diferenciar dos conservadores, parar gerar polêmica pela polêmica, coisa que sempre gosta de fazer.

No fim da "guerra fria", Caetano lançou uma música com um viés ideológico bem semalhante. "Os outros romanticos" [6] , de 1989, é uma música destinada aos comunistas, que ele chama de românticos, como no caso de Marighella, homens com motivações subjetivas e utópicas que se chocam com a negra natureza humana, imutável, e o mundo muito mais complexo que seus pobres esquemas. O mundo não foi feito para ser mudado, e qualquer afirmação contrária é uma violência, um retorno ao obscurantismo totalitário: eis a tese de fundo. No final da música faz uma referência hegeliana, comparando o marxismo a uma profecia, uma escatologia. Aqui a letra completa:

Eram os outros românticos, no escuro /Cultuavam outra idade média, situada no futuro /Não no passado /Sendo incapazes de acompanhar /A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia/ Recitadas na televisão/ Tais irredutíveis ateus /Simularam uma religião /E o espírito era o sexo de Pixote, então/ Na voz de algum cantor de rock alemão /Com o ódio aos que mataram Pixote a mão/ Nutriam a rebeldia e a revolução/  E os trinta milhões de meninos abandonados do Brasil /Com seus peitos crescendo, seus paus crescendo/ E os primeiros mênstruos /Compunham as visões dos seus vitrais/ E seus apocalipses mais totais /E suas utopias radicais / Anjos sobre Berlim "O mundo desde o fim"/ E no entanto era um SIM /E foi e era e é e será sim.

Mais uma vez, muita confusão. A versão quase lumpen "radicalista" se assemelha com a versão pequeno burguesa desiludida. Duas faces da mesma moeda, dois desvios com origem em comum e final semelhantes.

Críticas exageradas?

De fato é difícil imaginar, em meio a uma correnteza tão forte do hegemônico, uma nova forma de cultura, que não guiadas pelas imagens de ações individuais, mistificadas ou não. Ainda é um caminho longo a ser percorrido, impossível sem mudança das bases sociais. De fato, as homenagens encerram um certo progressismo, é inegável. Um progressismo possível, dentro dessa realidade concreta. Porém, não sem contradições a serem superadas, como tentamos demonstrar aqui.

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[1] http://itaucinemas.com.br/filme/marighella
[2] http://www.youtube.com/watch?v=AOwddBi7u-o
[3] http://www.youtube.com/watch?v=G-OFK14m6s0
[4] http://www.youtube.com/watch?v=otiZAYPP200
[5]http://www.faccamp.br/letramento/2012/1sem/oficina4/consuelo_dieguez_conciliaCAo_de_novo_piaui64.pdf / ou http://www.anovademocracia.com.br/no-96/4259-comissao-da-meia-verdade-se-arrasta-
[6] http://www.youtube.com/watch?v=EVgP4398kdY