domingo, 30 de dezembro de 2012

Um comentário sobre o lugar do político na teoria marxista da história - Armando Boito Jr.

Publicamos aqui mais um interessante e objetivo artigo de Armando Boito Jr. que complementa nossos esforços de diferenciação da teoria marxista frente ao hegelianismo. Embasando-se nos textos tardios de Marx e nas pesquisas do grupo althusseriano, o autor demonstra a oposição entre o desenvolvimento histórico segundo a problemática de Hegel, ainda presente em vários escritos "marxistas" iniciais (evolucionismo, "supra/meta-história", primazia das forças produtivas etc.), e a nova abordagem do marxismo mais consolidado através do avanço histórico da luta de classes e do socialismo. E nesse quadro coloca o papel central do político nos períodos de transição dos modos de produção, e não apenas o mero "desajuste" das relações de produção caducas diante das forças produtivas avançadas. Texto principalmente indicado para os "marxistas" apocalípticos que jogam todas as suas fichas na crença de uma "crise final" que nunca chega...

Artigo se encontra no seguinte link:

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Ficção e História em A Revolução dos Bichos, de Valdirene Leite

Reproduzimos aqui um interessante artigo da estudante de Letras Valdirene Leite sobre o famigerado "A Revolução dos Bichos" de George Orwell, esse ídolo dos liberais e libertários. Publicado originalmente no blog República Socialista (http://republicasocialista.blogspot.com.br/2012/12/ficcao-e-historia-em-revolucao-dos.html).


FICÇÃO E HISTÓRIA EM A REVOLUÇÃO DOS BICHOS 
 Valdirene Leite[1]

RESUMO
Nesse texto buscamos um outro olhar não-convencional, sobre o texto A Revolução dos Bichos. Partimos do pressuposto de que George Orwell não apresenta uma narrativa objetiva sobre a União Soviética ao utilizar essa narrativa histórica como base para sua fábula. Nossa hipótese é que a fábula é trotsquista e anticomunista. E assim ela foi utilizada durante a Guerra Fria. Apesar disso, mesmo a esquerda continua a prestigiar o texto e não o aborda em termos mais críticos. Ao analisar que narrativa histórica é essa que Revolução dos Bichos aborda, notamos que é preciso repensar o seu uso em sala de aula, utilizando uma bibliografia a respeito da União Soviética e buscando ser mais objetivo, em especial sobre as dicotomias pobres entre Trotsky e Stálin que o texto A Revolução dos Bichos traz.

Palavras-chave: Orwell, Revolução dos Bichos, história, União Soviética, ficção, fábula


1 INTRODUÇÃO


            O livro A Revolução dos Bichos, de autoria de Eric Arthur Blair (mais conhecido pelo pseudônimo de George Orwell) (1903-1950), apresenta, através de uma fábula onde os animais falam, uma crítica política totalizante a respeito da revolução russa, supomos, desde 1917 até 1943. O texto, publicado em 1945 no Reino Unido sob o nome de Animal Farm, foca principalmente o governo de Stálin, adotando a hipótese (de origem trotsquista) de que foi durante esse governo que a revolução se perverteu e se burocratizou.

            Nossa hipótese é que a fábula de Orwell apresenta as posições antissoviéticas de Trotsky de forma ilustrada (e vai mais além). Por exemplo: a coletivização de 1933-34 é representa pela situação do moinho de vento. O entusiamo de Bola de Neve pela construção do moinho de vento e a oposição de Napoleão representaria a situação e a discussão na União Soviética na altura de 1926, quando os trotsquistas propuseram a coletivização e ela foi rejeitada.

            Assim, esse artigo buscará lançar um outro olhar sobre a obra de Orwell, considerando que o objetivo de Revolução dos Bichos, de George Orwell, foi traçar paralelos entre o governo do porco Napoleão e o de Stálin, na União Soviética. O objetivo aqui será entender e criticar esses paralelos, assim como entender quais eram, historicamente, as posições de Trotsky e de Stálin, representadas, na fábula, por Bola de Neve e Napoleão, respectivamente. A contraposição entre os dois será objeto de debate nesse artigo. O livro não é isento: tende a defender Bola de Neve, que era Trotsky. Pesquisando sobre história e ligando aos acontecimentos do livro, pode-se dizer que Bola de Neve é Trotsky, Napoleão é Stálin, o animalismo é o comunismo.


2 Ficção e história em A Revolução dos Bichos
A hipótese a ser articulada nesse artigo é de que Revolução dos Bichos não é uma alegoria neutra do autoritarismo e sim uma ficção carrega de uma ideologia partidária, ou seja, o narrador onisciente toma partido deliberadamente das explicações históricas de Trotsky sobre a revolução russa. Atualmente, essas explicações históricas são totalmente hegemônicas no Ocidente e formam o chamado paradigma histórico da Guerra Fria. Somente agora, nos anos 2000, esse paradigma está sendo questionado por historiadores norte-americanos como John Arch Getty, Mark Tauger e Grover Furr, e outros russos como Yuri Zhukov, assim como ingleses, como Harpal Brar, dentre outros. Como o artigo é sobre literatura, nos concentramos em recontar a história sem citar exaustivamente esses historiadores e autores, cujas obras estão disponíveis na bibliografia (BAR, 1998, p. 12).

Essa pesquisa permite articular história e literatura e fazer uma leitura, sob um novo olhar, da narrativa de Orwell, uma vez que ela está profundamente atrelada a uma determinada versão da história. Optou-se, nesse trabalho, por lançar um outro olhar, vendo essa narrativa de acordo com outra hipótese sobre a história: a hipótese da vertente maoísta do marxismo-leninismo. Segundo essa vertente, a negação do marxismo-leninismo não ocorreu em 1929 (ou seja, não ocorreu com Stálin) e sim em 1956 (ao tempo de Kruschev). A comparação entre as figuras históricas e os personagens foi a seguinte, segundo Olgário Vogt:


O animalismo O socialismo ou o comunismo

O Solar dos Bichos União Soviética

O canto Bichos da Inglaterra A Internacional Socialista

Os porcos A burocracia soviética

Os homens A burguesia

Os animais O proletariado

Sr. Jones O Czar Nicolau II

O Velho Major Marx10

Napoleão Stálin

Bola de Neve (Snowball) Trotsky

As ovelhas A massa alienada

Os cachorros A polícia política (KGB)

Sansão (Boxer) O trabalhador iludido

O corvo Moisés A Igreja Ortodoxa

O porco Garganta (Squealer) A propaganda

A bandeira verde com o chifre e o

casco

A bandeira soviética com a foice

e o martelo (VOGT, 2007, p. 4).


Em Revolução dos Bichos, a narrativa histórica de Trotsky sobre os acontecimentos é uma constante em todo o livro. O processo opera do seguinte modo: a coletivização, por exemplo, é apresentada como sendo a passagem que se refere ao moinho de vento na Fazenda Animal. A divergência entre Bola de Neve e Napoleão representa a forma como a coletivização foi motivo de polêmica entre o grupo de Trotsky e o de Stálin. Tal passagem é comentada nos seguintes termos em A Revolução dos Bichos:


Bola de Neve estudara atentamente alguns números atrasados da revista O Agricultor e o Criador de Gado, encontrados na casa grande, e andava com a cabeça cheia de planos de invenções e melhoramentos (...). Napoleão não fazia projetos próprios, apenas dizia com toda calma que os de Bola de Neve não dariam em nada e parecia aguardar sua vez. De todas as divergências, nenhuma foi tão grave quanto a do moinho de vento (ORWELL, 2007, p. 43).


A narrativa histórica aqui visada é a coletivização da agricultura russa nos anos 30. O problema era o seguinte: embora depois da revolução russa houvesse o fim do latifúndio, continuaram existindo uma classe de fazendeiros ricos (os kulaks) e pequenos proprietários empobrecidos. A solução sugerida por Lênin era a criação de fazendas de produção coletiva. A partir da recusa dos kulaks em vender grãos ao governo soviético, a coletivização começou, em 1926, ainda incipiente.

No entanto, de forma inconseqüente os trotsquistas sugeriram que a coletivização fosse adotada rapidamente. O verdadeiro objetivo da oposição de esquerda era infringir uma derrota ao poder soviético; a coletivização naquelas circunstâncias, quando ainda estava apenas em seu início, provocaria novos e mais violentos boicotes por parte dos kulaks e poderia ser derrotada por eles, pois provocaria desabastecimento e fome. A idéia foi recusada, mas entre 1933-34, depois de uma grande fome na Ucrânia, quando a coletivização já estava adiantada, ela foi posta em prática. Os fazendeiros ricos foram, então, derrotados. A forma como a história aparece em A Revolução dos Bichos dá a entender que Stálin (“Napoleão”) era uma criatura maldosa que apenas roubou as ideias de Trotsky (“Bola de Neve”). As seguintes palavras serviram para finalizar a questão do moinho de vento (que refigura o fato histórico da coletivização):


Garganta explicou aos outros bichos, em particular, que Napoleão nunca fora contra a construção do moinho de vento (...). Aí estava a esperteza do camarada Napoleão (...). Ele fingira ser contra o moinho de vento, apenas como manobra para livrar-se de Bola de Neve, que era um péssimo caráter e uma influência perniciosa (ORWELL, 2007, p. 51).


            Assim, uma versão histórica do livro de Orwell que oculta que os trotsquistas, em 1926, quiseram colocar, prematuramente, o poder soviético contra os kulaks, o que causaria sua derrota. A conclusão que se tira é exatamente a contrária: a coletivização foi uma idéia de Trotsky roubada por Stálin. Outro indício da tomada de partido é como a polêmica entre a revolução permanente (Trotsky) e a revolução em um só país (Lênin e Stálin) é apresentada:
 

Além da disputa sobre o moinho de vento, havia o problema da defesa da granja. Eles bem que sabiam que (...) segundo Napoleão, o que os animais deveriam fazer era conseguir armas de fogo e instruir-se em seu emprego. Bola de Neve achava que deveriam enviar mais e mais pombos e provocar a rebelião entre os bichos das outras granjas (ORWELL, 2007, p. 45).


Acima, a controvérsia entre a revolução permanente e a revolução em um só país é apenas esboçada de forma pouco compreensível. A revolução em um só país foi teorizada por Lênin como conseqüência do próprio capitalismo (a chamada lei do desenvolvimento desigual), afirmando que dificilmente o socialismo venceria em vários países ao mesmo tempo e que era necessário construir o socialismo assim mesmo, mas sem deixar de ajudar a desenvolver o socialismo nas demais nações. Já Trotsky retomava, a propósito da revolução permanente, idéias que ele já apresentara em 1906, quando estava no partido menchevique em oposição a Lênin e aos bolcheviques. Ele condicionava a vitória da revolução na Rússia à vitória da revolução na Europa.

Pode-se dizer que o dilema proposto por Trotsky era aventuras militares ou derrotismo: a Rússia deveria mandar tropas para a Alemanha, ou seja, exportar a revolução ou retornar ao que havia antes de outubro de 1917, entregando o país a um regime burguês. Essa visão foi chamada de bonapartista em seu tempo e rejeitada pela maioria do partido. Não obstante, Trotsky passou a chamar Stálin e seu grupo de bonapartista e fazer uma campanha cada vez mais furiosa contra o poder soviético, culminando em sua expulsão do partido e do país em 1929.

E assim a narrativa prossegue: o papel de Bola de Neve na batalha do Estábulo é a discussão sobre o papel de Trotsky na revolução russa (Krupskaia e Stálin acreditavam que John Reed, autor de Dez Dias que Abalaram o Mundo, exagerou ao dar um papel preponderante a Trotsky). Trotsky aceitou a revolução russa de outubro como condição de que ela fosse o estopim da revolução européia.

            O episódio da fome na Granja dos Bichos é outro exemplo de apresentação da história da revolução russa, e, em especial do período de Stálin, sob a mesma luz. Possivelmente o episódio simboliza a grande fome na Ucrânia entre os anos 1932-33, causada por fatores climáticos naturais e que tornou necessária a coletivização, privilegiando os camponeses pobres em detrimento dos kulaks. Esse episódio da fome é descrito nos seguintes termos na fábula de moral antisstalinista:


Napoleão bem sabia dos maus resultados que poderiam advir, caso a verdadeira situação alimentar da granja fosse conhecida, e resolveu utilizar o Sr. Whymper para divulgar uma impressão contrária (ORWELL, 2007, p. 64).


            O que ocorreu não foi uma tentativa do governo da URSS de esconder o fato da fome e sim a ampla divulgação da fome por nazistas alemães e reacionários da Polônia e da própria Ucrânia como sendo causada intencionalmente pelo governo da União Soviética como forma de exterminar o povo ucraniano, o chamado “holodomor” (em ucraniano, morte por fome). O pesquisador e historiador Mark Tauger, de West Virginia, estudou recentemente a questão e concluiu que a fome não foi causada pelo governo e sim por fatores naturais. Antes da coletivização, sucediam-se ondas de fome em razão das más colheitas na Ucrânia. Tal fato, no entanto, foi abundantemente usado para fazer propaganda antissoviética. Mais adiante, surge, na Revolução dos Bichos, uma passagem que se referem às conspirações zinovievistas-trotsquistas:


Subitamente, descobriu-se um fato alarmante. Bola de Neve estava freqüentando a granja à noite, em segredo ! (...). Napoleão decretou uma ampla investigação sobre as atividades de Bola de Neve. Com seus cachorros na atitude de alerta, saiu e fez uma cuidadosa inspeção nos galpões da fazenda, com os outros animais a segui-lo a uma distância respeitosa. (...). Bola de Neve vendeu-se a Frederick, da Granja Pinch Field, que neste mesmo instante está planejando atacar-nos e tomar nossa granja! (...) Foi o tempo todo, agente de Jones! (ORWELL, 2007, p. 69).

O texto acima só pode ser corretamente entendido se for apresentada a narrativa histórica do período do governo de Stálin ao qual essa passagem se refere: embora Trotsky tivesse se exilado do País, ainda tinha grupos fiéis a ele na União Soviética, assim como, desde 1932, ele havia formado um bloco junto com Zinoviev, Kamenev e Bukharin. Começaram a acontecer inúmeros atentados e sabotagens pelo país, causando muitas mortes, entre as quais a do prefeito de Leningrado, segundo na hierarquia soviética. A partir de um esforço de investigação, chegou-se ao grupo de Trotsky, Zinoviev e Bukharin, que ainda tinha muitos integrantes em altos escalões do Estado. Os acusados foram processados nos famosos Julgamentos de Moscou, julgamentos abertos à imprensa internacional e muitos, como Bukharin, foram fuzilados, outros, como Radek, foram condenados à prisão.

De acordo com o historiador norte-americano John Arch Getty, os expurgos que produziram os famosos Julgamentos de Moscou foram mais para poder organizar um sistema de poder que era caótico do que um exemplo de totalitarismo, de acordo com textos como Origens dos Grandes Expurgos (livro inédito em português), do historiador norte-americano Arch Getty. De acordo com esse historiador, até essa época, se alguém era expulso do partido, bastava uma autocrítica verbal para poder voltar. Não foram apresentados, até hoje, documentos comprovando a tortura dos acusados e as falsificações dos chamados Julgamentos de Moscou. E existem, pelo contrário, evidências demonstrando que os julgamentos foram justos. Comentou o historiador Grover Furr (também inédito em português), de Montclair State University (New Jersey) a respeito desse assunto:

Durante a última década, muita evidência documental emergiu dos arquivos formais soviéticos para contradizer o ponto de vista canônico desde o tempo de Kruschev de que os réus, nos Processos de Moscou e na conspiração militar do “Caso Tukachevsky”, foram vítimas inocentes forçadas a fazer confissões falsas. Nós publicamos e escrevemos um grande número de trabalhos ou, ao pesquisar para publicar, podemos dizer que agora temos forte evidência de que as confissões não eram falsas e que os réus dos Processos de Moscou pareciam ter sido verdadeiros em confessar as conspirações contra o governo soviético (FURR, 2010, p. 7).


Portanto, a narrativa histórica que Revolução dos Bichos supõe não é a mesma que todos os historiadores registram, ou não é neutra como muitos imaginam. Dentre as revelações nos julgamentos, ficou esclarecido que desde 1925 já existiam contatos entre Trotsky e Von Seekt (representante do estado maior da Alemanha); os contatos prosseguiraam e se tornavam mais intensos quando da subida do nazismo ao poder. Hitler às claras anunciou seu ódio ao bolchevismo e a necessidade que o povo alemão tinha de invadir a Ucrânia para conquistar “espaço vital”.

            Jamais foi dito, portanto, que o papel de Trotsky foi negado. Ele foi é objeto de denúncias e revelações. As conspirações, em A Revolução dos Bichos, são tidas como falsas, ou seja, são mostradas como provocações criadas por Napoleão para que ele pudesse conquistar o poder através do terror. Tal constatação pode ser lida no fragmento a seguir:
 
--Alerto a todos os animais desta fazenda para que mantenham os olhos bem abertos. Temos motivos para pensar que alguns agentes secretos de Bola de Neve estão ocultos entre nós neste momento (ORWELL, 2000, p. 71).
 
            A partir daí são descritas imagens de execuções que seriam, no entanto, imotivadas e sem nenhum sentido a não ser perverterem os ideais e a utopia, reforçando a autoridade tirânica de Napoleão (“Stálin”). Pela natureza da relação entre os porcos e Napoleão, pode-se dizer que eles representam Bukharin, Zinoviev e Kamenev:


[Os animais]eram os mesmos que haviam protestado quando Napoleão abolira as reuniões dominicais. Sem mais demora, confessaram ter realizado contatos secretos com Bola-de-Neve desde o dia de sua expulsão e haver colaborado com ele na destruição do moinho de vento (...). Ao fim da confissão, os cachorros estraçalharam-lhes as gargantas e Napoleão, com voz terrível, perguntou se algum outro animal tinha qualquer coisa a confessar. As três galinhas que haviam liderado a tentativa de reação sobre os ovos aproximaram-se e declararam que Bola-de-Neve lhes aparecera em sonho, instigando-as a desobedecer às ordens de Napoleão. Também foram degoladas (...). E assim prosseguiu a sesão de confissões e execuções, até haver um montão de cadáveres aos pés de Napoleão e um pesado cheiro de sangue no ar, coisa que não sucedia desde a expulsão de Jones (ORWELL, 2007, p. 73).
Assim, reforça-se a tese de que o marxismo-leninismo é idealismo ingênuo e que, quando praticado, leva a uma terrível tirania. Acima, pode-se notar a leitura dos expurgos dos anos 30 e dos Julgamentos de Moscou como o fuzilamento dos verdadeiros revolucionários.

            A teoria que Orwell apresenta, resumidamente ao final do texto, é que as teses stalinistas destruíram as idéias de Marx. Essa mensagem é comentada quando a narrativa trata das distorções nos pensamentos do personagem Major. O cavalo Sansão, por exemplo, pode ser associado ao Bukhárin, ou seja, era um velho companheiro de Stálin. Por fim, o fato final é a Conferência de Teerã, onde debatiam Roosevelt, Churchill e Stálin. A narrativa de Orwell iguala soviéticos e as potências capitalistas nessa conferência. No entanto, nessa época o nazismo ainda não tinha sido vencido. Parece-nos, inclusive, que mesmo que o nazismo esteja representado nessa fábula por Frederik, da Granja Pich Field, pode-se dizer que faltou a Orwell uma melhor compreensão da ameaça que representava o nazismo, em sua pressa de criticar a União Soviética.

            Na Inglaterra atual, assim como no Brasil, é muito comum a presença da obra de George Orwell nas escolas, onde ele é elogiado como um gênio literário, assim como é celebrado como um escritor na linhagem de Swift e outros. A fábula costuma ser lida como sobre “o totalitarismo em geral”.

No entanto, estudos como os de Stephen Spender e Jodi Bar analisam que aquilo que é de fato avaliado em provas (quando o livro é cobrado na Inglaterra) é a habilidade de regurgitar clichês da Guerra Fria. Para que a narrativa de A Revolução dos Bichos funcione, é preciso concordar com a assertiva de que, embora os governantes de hoje sejam ruins, expulse-os e teremos uma nova tirania ainda pior. Esse é, de fato, o pressuposto desse texto. Embora hoje seja tido como crítica ao totalitarismo em geral, o texto de fato tem sido utilizado como propaganda contra Stálin e a União Soviética. Um leitor, ao ler Revolução dos Bichos, passa a pontificar a respeito da história da União Soviética, embora na prática não esteja tendo acesso a uma versão preocupada com a realidade objetiva. Na prática, está apenas repetindo a versão de Trotsky dos acontecimentos da revolução de outubro e do período de Stálin (mas sem saber que a narrativa é partidária). E a versão de Trotsky é a adotada, em geral com ainda mais exageros negativos, pelo chamado paradigma histórico da Guerra Fria, ou seja, o paradigma adotado pelas universidades norte-americanas nos anos 40 e 50, tendo em vista combater ideologicamente os seus inimigos no campo das democracias populares e socialistas.

            E porque o texto seria ainda tão popular e tão recomendado, se a Guerra Fria, na qual ele foi largamente incentivado, tendo sido até objeto de uma adaptação para desenho animado patrocinada pela CIA, terminou em 1989? O fato é que o comunismo ainda é uma ameaça para a sociedade burguesa, com ou sem Guerra Fria. É preciso refutar as calúnias nos livros de Orwell e orientar a juventude a buscar uma visão mais objetiva, distante dos clichês da Guerra Fria, a respeito do que se passou na União Soviética.

3 REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO DOS BICHOS

            Os textos que foi possível encontrar na bibliografia brasileira respeito de A Revolução dos Bichos (Teoria e suas implicações: compreensão da utilização doAnimalismo na Revolução dos Bichos e do marxismo na URSS de Stálin, de autoria de Felipe Fontana, Olgário Vogt) não buscam questionar o paradigma histórico da Guerra Fria, pelo contrário, o confirmam e o acentuam. Em geral, o tom de celebração em torno de Orwell, o mito, é geral. Fontana se baseia em Marilena Chauí, Simone Weil e José Paulo Netto (Chauí e Netto tendem bastante ao trotsquismo) para concluir que o marxismo, no Leste Europeu, tornou-se uma ideologia (no sentido de produzir falsa consciência). Tanto Fontana quanto Vogt não buscam novas pesquisas históricas nem suspeitam da mensagem claramente partidária que é transmitida em Revolução dos Bichos.

Olgário Vogt vai no mesmo sentido, supondo que Orwell está criticando “o totalitarismo em geral”. Mais precavido do que Fontana, diante das evidências do uso da obra de Orwell na Guerra Fria, Olgário insiste em afirma que Orwell era um esquerdista e o defende, afirmando que ele desejava um socialismo “independente”.

Orwell é apresentado, nos livros didáticos ingleses, como um “herói”, um jornalista “independente”, “objetivo”, “imparcial”, assim como é visto como exemplo de intelectual engajado em causas sociais. Nos últimos anos, no entanto, têm sido fortes os questionamentos acadêmicos a respeito do antissemitismo, homofobia e racismo presentes em seu texto. Como escreve a respeito Alberto Escusa:

 
De todos os traços que tinha Orwell, teria que acrescentar alguns que não se comentam e que tiveram grande peso em suas atitudes políticas, como sua fobia contra os homossexuais, seu extremo conservadorismo e seu racismo escondido. Toda a combinação de experiências vividas e concepções sociais nebulosas e abstratas, junto de suas fobias, foram levando rapidamente Orwell a posições marcadamente direitistas, ainda que seguisse formalmente sendo um escritor esquerdista. Um dos traços mais desconhecidos do escritor foram suas manias de perseguição. Segundo Isaac Deutscher, que o conheceu pessoalmente, Orwell vivia em um estado de angústia (...). Essa atitude, junto de sua capacidade de perceber a maneira científica e realista das questões sociais e políticas, o empurraram a converter-se em um colaborador direto do imperialismo inglês. Até o final de sua vida, em 1949, decidiu colaborar com pleno conhecimento de causa com os serviços britânicos de inteligência, o Foreign Office, ou concretamente com o departamento de investigação de informação (IRD) ao qual lhe entregou uma lista de 135 pessoas suspeitas de serem simpatizantes ou companheiros de viagem dos comunistas. Nesta lista, ao lado de nome anotou os principais defeitos de cada um, revelando a natureza racista e homofóbica de Orwell, que tinha interesse em mostrar traços pessoais dos acusados (ESCUSA, 2012, p. 22).

O antiimperialismo de Orwell, que sempre os comentadores afirmam que teria advindo de suas experiências como policial na Birmânia, também tem sido posto em questão. Outros elementos de sua trajetória têm sido desmistificados: de origem na classe média alta, Orwell tinha uma arrogância típica das classes superiores inglesas; rejeitava o socialismo realmente existente, mas propondo em seu lugar um “socialismo” vago, que se confundia com desapego cristão. Ele também pregava contra os “marxistas dogmáticos”, no sentido de valorizar a classe média e considerá-la parte dos proletários, assim como propunha o resgate do heroísmo físico, o cavalheirismo, dentre outros valores que ele julgava que estavam sendo esquecidos pelos intelectuais (e que também se aproximam dos valores da classe média inglesa de onde ele se originou). Para escrever seus livros, passou algum tempo, embora bastante rápido, entre os pobres em Paris e Londres, assim como foi, de passagem, às regiões do Norte da Inglaterra. Sobre os pobres tirava conclusões dizendo que sua grande diferença era o “odor”.

Orwell foi à Espanha como jornalista e participante do pequeno grupo de linha trotsquista POUM. No entanto, seu conhecimento da situação política na Espanha era pequeno e seu principal foco era fazer um livro. Orwell colaborou, com o livro Homenagem à Catalunha, para fortalecer a versão dos anarquistas e dos trotsquistas de que a União Soviética e a Frente Popular foram os responsáveis pela derrota da República na guerra civil. O título do livro celebra um levante de anarquistas e trotsquistas contra a frente popular que, na época, foi considerado uma punhalada pelas costas que favoreceu a Franco e a Hitler.

Assim como em A Revolução dos Bichos, Orwell tomou partido pelo trotsquismo Acontece que o trotsquismo é a base de boa parte do anticomunismo ocidental e dos ataques feitos à URSS durante a Guerra Fria.

            Outro ponto que tem sido ressaltado são os conteúdos anticomunistas presentes na obra, principalmente em seus últimos anos de vida, em plena Guerra Fria. Surgiu a denúncia de que Orwell trabalhou, durante a II Guerra, como informante do estado inglês, fazendo listas de artistas que simpatizavam e militavam a favor do comunismo. O ensinamento que fica ao final da leitura de A Revolução dos Bichos é que os homens não são melhores do que os animais. A “natureza humana” decide tudo.

Os valores afirmados em um texto devem ser buscados a partir dos valores afirmados ao seu final. Deve-se, então, analisar a cena final, que se refere à conferência de Teerã, representa o momento em que se reuniram Roosevelt, Churchill e Stálin:


Se vossas senhorias têm problemas com vossos animais inferiores, nós os temos com as nossas classes inferiores (...). Doze vozes gritavam, cheia de ódio, e eram todas iguais. Não havia dúvidas, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco (ORWELL, 2007, p. 118).


            Orwell age como se estivesse criticando uma esquerda oficial apoiada pela União Soviética e que, junto aos capitalistas e igual a eles, estivesse repartindo o mundo. No entanto, qual era o contexto histórico no ano de 1943 em que Orwell terminou Revolução dos Bichos e tentou publicar esse escrito antissoviético? Os nazistas haviam invadido a União Soviética e matado milhões de russos, arrasando o país. Já havia acontecido a maior batalha da guerra, Stalingrado, mas não se sabia quem venceria o conflito, se a Alemanha nazista ou os soviéticos. Mas o que queria Orwell com seu Revolução dos Bichos? Ele ambicionava acabar com o “mito” da União Soviética como Estado socialista. Mas a quem beneficiava, em 1943, essa postura de Orwell? É curioso como se esquece tão facilmente no Ocidente como a vitória foi obtida com enormes sacrifícios pelo povo soviético e pelo exército vermelho.

            Se em 1943 ainda havia atitudes reticentes quanto à posição de Orwell, a ofensiva contra o socialismo em 1945 as desfez e o mundo ocidental passou a ter uma postura favorável com relação a ele, chegando até ao ponto de mistificá-lo. Os espiões de guerra nazistas foram aproveitados por serviços de guerra norte-americanos, como por exemplo, o general alemão das SS Reinhard Genhlen, cuja rede de espionagem passou inteiramente aos norte-americanos e passou a agir no Leste da Europa. Essa rede foi uma das responsáveis pela rebelião antissoviética em Berlim em 1953 e na Hungria em 1956.

            Em A Revolução dos Bichos, o porco Napoleão é caracterizado como grande, feio, com expressão agressiva e descrito como tirânico, rude, hipócrita, vaidoso, ou seja, (“Stálin”). Bola de Neve é mostrado como jovem, bonito, com expressão inteligente e os seguintes atributos: articulado, inovador, brihante, estrategista, modernizador, idealista (“Trotsky”). Não seria a hora de questionar esse tipo de dicotomia pobre que termina sendo passado como aula de literatura e história? Não chegou a hora de quebrar com esse corporativismo trotsquista que tem protegido Orwell de ser criticado nesses últimos cinqüenta anos?

            Nossa hipótese, portanto, foi de que A Revolução dos Bichos é libelo antissoviético e trotsquista, utilizado largamente como propaganda anticomunista, ao ponto mesmo de servir de base para desenhos animados patrocinados pela CIA. George Orwell, ao escrevê-lo em 1948, estava claramente obcecado por seus escritos antissoviéticos.
 
CONCLUSÃO

            Embora seja muito estudada e lida em sala de aula e na escola, A Revolução dos Bichos é um livro que ainda pede uma releitura crítica. A narrativa histórica na qual ele se baseia é uma narrativa fortemente partidária do anticomunismo, baseada principalmente em Trotsky, embora ele não se apresente assim. Ele é lido como narrativa neutra que é capaz de engajar e de politizar a juventude. Isso precisa ser questionado e uma visão mais objetiva, que não repita, meramente, os clichês da Guerra Fria sobre o período Stálin precisa ser abordada em sala de aula. No Brasil, os trabalhos disponíveis sobre Revolução dos Bichos, com os textos de Felipe Fontana e Olgário Vogt, fixam-se totalmente no mito Orwell, celebrando sem maiores críticas o “clássico”, repetindo elogios a respeito de sua biografia e vida, mas sem aprofundar-se em sua obra. No entanto, na Inglaterra novos estudos sobre Orwell o fazem aparecer sob uma outra luz: antissemita, homofóbico, anticomunista que chegou a trabalhar como informante do Estado em plena Guerra Fria e delatar outros escritores. Igualmente, historiadores como Grover Furr, Arch Getty, Yuri Zhukov e outros estão repensando a narrativa do tempo da Guerra Fria. Como a narrativa sobre a coletização russa dos anos 30 está sendo repensada, é importante verificar como ela foi apresentada em A Revolução dos Bichos. E ela foi apresentada do ponto de vista trotsquista e antissoviética. O texto constrói uma dicotomia pobre entre Stálin (“Napoleão”) e Trotsky (“Bola de Neve”). Não há dúvidas de que o texto tomou claro partido por Trotsky e o anticomunismo. No entanto, os estudiosos brasileiros nunca mostram isso, pelo contrário, dão a essa hipótese o caráter de verdade inquestionável. Nesse trabalho, adotamos a hipótese maoísta, de que o abandono do marxismo-leninismo pela União Soviética aconteceu em 1956.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAR, Jodi. George Orwell, Anti-communist Propagandist, Champion of Trotskyism and State Informer. February 1998. Stalin Society. Disponível em: <http://www.stalinsociety.org.uk/ publications.html>. Acesso em 16 de outubro de 2012.
ESCUSA, Alberto. Quien fué realmente George Orwell? ¿Quién fue realmente George Orwell? Los mitos orwellianos: de la Guerra Civil española al holocausto soviético. Disponível em: <Comunidadestalin.blogspot.com>. Acesso em 13 de outubro de 2012.
FONTANA, Felipe. A Revolução dos Bichos (Teoria e suas implicações: compreensão da utilização doAnimalismo na Revolução dos Bichos e do marxismo na URSS de Stálin. Revista Urutágua, n. 21, mai./jun/jul./ag. de 2010.
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[1] Aluna do Curso de Letras, da UNISA, polo Luz/MG.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Por uma nova teoria da ideologia: crítica à noção de conscientização e à “política racionalista” de esquerda


[Augusto Machado]

Cena do filme Matrix: pode a esquerda manter-se na tensão "conscientização x alienação"?

Para renovar o marxismo em nosso país, num período de tanta confusão e derrotas, é preciso avaliar os elementos que formaram nossa tradição e seus respectivos efeitos políticos.

Desde a segunda metade do século XX em nosso país se formou e continua a vigorar, de maneira muito significativa, para não dizer majoritária, uma certa tradição de pensamento e prática política que pretende se relacionar com o marxismo. Chamaremos aqui essa tradição de “crítica”, que é marcada por um paradigma peculiar, que analisaremos mais a seguir. Entendemos que boa parte dos descaminhos da esquerda (ver mais sobre: http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/12/breve-reflexao-sobre-os-descaminhos.html) estão embasados nessa tradição.

Essa teoria e política “crítica” pode ser analisada por diversos ângulos e não é um objeto tão homogêneo. Porém, é comum ao falarmos tal palavra nos círculos de esquerda, na academia, na imprensa, uma certa “imagem” vir a cabeça. Ela se opõe ao tradicional, ao conservador, ao positivismo, ao reacionário e outras tantas coisas. Tentaremos aqui traçar essa identidade.

Essa tradição crítica, segundo alguns pensadores como Safatle (ver palestra: http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/09/ascensao-conservadora-no-brasil.html), foi hegemônico culturalmente durante um longo período nas últimas décadas em nosso país. A geração atual teria crescido nela: faz parte realmente do nosso imaginário, e também dos jovens, ideias como alienação, totalidade, “crítica social”, conscientização – aliás, boa parte da esquerda só consegue pensar e agir nesse terreno. E essa hegemonia (se tornando modismo vazio, muitas vezes), que no fundo, era uma hegemonia do pensamento “de esquerda”, tendo o marxismo como importante elemento, vem perdendo força e lugar para uma ofensiva conservadora/reacionária que cada vez mais avança no terreno cultural, tendo como um dos agentes principais a (“nova”) classe média.

Por essa linha estar falhando e abrindo espaço para a reação, devemos entendê-la mais ainda, a fim de superá-la. Aqui até se encaixa o ditado já debatido por nós (aqui: http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/05/o-que-nao-avanca-retrocede.html): o que não avança, retrocede, pois foi das falhas internas e por “perder o momento” de conduzir o trem da história que esse modelo de “esquerda” contribuiu abrir espaço para o inimigo (re)tomar terreno.


Limites do criticismo: ou uma esquerda afogada no liberalismo

O criticismo (tradição crítica), qualquer que seja ela, apela para a consciência dotada de autonomia, de possibilidade de avaliação e escolha objetiva, para o indivíduo constituído de luzes e há muito afastado das trevas do obscurantismo, do dogmatismo e se encontra sob a égide da razão e da maturidade do homem.

No caso da esquerda “crítica”, obviamente, esta razão está do lado oposto do capitalismo, da direita etc., então viria diretamente da conscientização a emancipação dos trabalhadores e a superação do capitalismo. A função da vanguarda é servir de consciência do sujeito da história (exemplo Lukács), ou, mediar conjuntamente a construção dessa consciência (exemplo, Freire, no Brasil). No fundo, o problema da luta de classes é quase moral: a tomada de consciência de indivíduos comprometidos com uma ação ética no mundo segundo máximas abstratas. Aqui se firma uma visão idealista da luta de classes como corrida das classes pela luz do conhecimento da totalidade da realidade e o comunismo como, dizia Althusser em "Marxismo como teoria finita", uma "imagem paradisíaca" de total transparência para os indivíduos, total esclarecimento, de sujeitos de consciência totais.

É visível que esse modelo é muito mais uma radicalização do humanismo-iluminismo-racionalismo (ideologia puramente burguesa, de tipo liberal) do que marxismo. O marxismo rompe com as correntes socialistas pré-modernas (muitas anarquistas) e modernas. Aquelas são reacionárias ou idílicas por seu caráter não-progressista. Enquanto as últimas se firmam a partir de uma radicalização da política burguesa, formando um excesso aparentemente antagônico. Eis a farsa que vem depois da tragédia, anunciada por Marx.

A modernidade capitalista toma o processo de esclarecimento (crítica) e domínio sobre a natureza como centrais em sua ideologia. Deles depende todo o arcabouço moral, ético, político, econômico etc. do liberalismo. Se, à época das revoluções burguesas, a burguesia precisava deste viés para derrubar os ranços feudais, e por isso, foi em grande parte progressista, hoje o status quo se fundamenta desses elementos ideológicos.

Sendo assim, o proletariado e as massas trabalhadoras e progressistas, na luta de classes, combatem, a favor do socialismo, o ideário burguês moderno. Para superar o modo de produção capitalista, precisam se livrar do arcabouço liberal (ideológico) que o fundamenta: noções de indivíduo, consciência, razão, liberdade etc.

Esse é um ponto polêmico. Não se quer defender um ponto de vista genealógico e totalmente contingente de que não há continuidades na história (entre os fenômenos revolução burguesa e revolução proletária, por exemplo). Mas se quer frisar de que não é dialética a visão de que o proletariado vem “realizar” os ideias do renascimento e do iluminismo, “corrompidos” pela burguesia. Seria não compreender a relação entre ideologia, classes sociais e luta de classes na história e abraçar uma “razão/finalidade” histórica abstrata, da qual, rejeitamos por completo.

Várias correntes marxistas, sobretudo as ocidentais (Lukacs, frankfurtianos, mais destacados) se fundamentam em pressupostos modernos e visam a radicalização da modernidade, denunciando a irracionalidade capitalista e da racionalidade instrumental e apelando para a “consciência/razão crítica”, cada um com suas formas. Podemos encontrar também no marxismo mais tradicional tal tendência. Mas acreditamos que neste último se justifica muito mais como discurso político, didático e de agitação do que um paradigma mais profundamente arraigado.

O apelo à razão e à consciência dessa tradição crítica, que podemos chamar de política racionalista[1], é uma política que não vê classes no processo produtivo: mas sujeitos históricos a cumprir uma escatologia; não leva em consideração fatores que não sejam “racionais”; vê o primado das ideias e das motivações dos indivíduos empíricos; busca uma consciência “total” da realidade etc.

O que impediria, segundo a visão crítica, o sujeito “saber” de sua função histórica é a ideologia, a falsa consciência (advinda do fetichismo da mercadoria, no caso do capitalismo), pois esta  impede de “ver” a totalidade[2]. Logo, a ideologia é o não saber, a ignorância, a passividade, ou a distorção do real não acessível, a parte ainda obscura das ideias que a crítica/esclarecimento deve irromper em razão e luz. Só esclarecida essa sombra, estaria resolvido o enigma da história: o Espírito enfim termina sua trajetória, pois toma por completo consciência de si e age sobre o mundo – este a sua imagem e semelhança.

A fragilidade desse paradigma é nítida nos tempos de hoje. A crença de que ao “esclarecer”, pelas ideias, num jogo de demonstração de justificativas e argumentos (desalienar/esclarecer) é o suficiente para a quebra do encanto ideológico e a ação sobre o mundo, é cada vez mais ingênua, e a esquerda que ainda apela a essas modelo tende a se isolar, ser caricaturada e acabar culpando as massas por serem “alienadas”.

Que fazer? Há alternativas desse modelo?

Elementos para a superação: por uma nova teoria da ideologia

A renovação da teoria da ideologia no seio do marxismo que escape do paradigma “crítico”, ou seja, da ideologia burguesa, faz-se necessário e já encontra em andamento há muito. Aqui usaremos as contribuições de Althusser (AIE) e algumas das sistematizações de Safatle. Os dois de alguma forma se utilizando da psicanálise.

Para Althusser, em linhas gerais, é uma total incompreensão da luta de classes achar que um sujeito precisa ser “iluminado” (tomar consciência, no caso, de classe) para que este se integre ativamente em uma classe e lute (“faça” a história), como quer o liberalismo travestido de marxismo. A luta de classes é anterior a qualquer forma mais organizada e esclarecida de classe, ela acontece em formas das mais simples e escondidas. As classes pressupõem uma luta (processo objetivo de relações de produção), e não o contrário - classes (aqui, sujeitos) são uma possibilidade de luta.

Se, para a teoria crítica, a ideologia é o oposto da realidade (sua inversão ou fragmentação), aquilo que corrompe a consciência da totalidade e por isso merece ser "varrida", em Althusser encontramos a ideologia como transhistórica (ver também: http://www.cchla.ufrn.br/alipiosousa/index_arquivos/ARTIGOS%20ACADEMICOS/ARTIGOS_PDF/Ideologia%20e%20transgressao.pdf). Nesse sentido, sendo a ideologia um modo de sujeição/subjetivação numa formação social, some-se o risco de uma política que busca total clareza dos indivíduos empíricos envolvidos, no esclarecimento como fator central, e o comunismo como realização da razão.

Outro diferencial em Althusser é também a tese de que a ideologia se firma a partir de práticas, dentro de aparelhos/instituições, muito anteriores ao convencimento/alienação de ordem mental nos indivíduos. Repetindo Pascal: "Ajoelhai-vos, orai e acrediteis". A base principal da ideologia é a das práticas, em “instituições”, em rituais, em disciplina corporal, e não as ideias/consciência num espaço intersubjetivo, argumentativo.

A renovação da teoria da ideologia de Althusser chegou de maneira variada nos dias de hoje. Safatle, em sua forma peculiar, é um autor contemporâneo que tenta sistematizar contribuições de várias tradições para os desafios atuais. Mesmo se alinhando com muitos autores do paradigma “racionalista”, ele ataca duramente a efetividade da corrente lukacsiana, com sua noção de reificação, falsa consciência etc., para hoje.

Usando a teoria psicanalítica, sobretudo o que diz respeito à personalidade perversa e ao fetichismo, Safatle (Fetichismo, Civilização Brasileira, 2010) tenta construir a possibilidade de compreender uma consciência no capitalismo não tão simplista como a racionalista. Ou seja, uma subjetividade cuja ação não provém da pura tomada de consciência da totalidade fragmentada pelas práticas sociais alienadas, pois este saber seria “inútil” frente a uma crença mais arraigada. Se referindo a limitação lukacsiana e de seu erro na interpretação d’O Capital, Safatle tenta compreender exatamente o sentido do fetichismo da mercadoria em Marx e seus efeitos ideológicos:

[...] a partir de um certo ponto, talvez haja algo no conceito de fetichismo em Marx que a temática da reificação não consegue apreender. Esse ponto de ruptura refere-se ao modo de articulação entre crença e saber no interior do fetichismo. Em alguns momentos importante de seu texto, Marx indica situações nas quais o saber da consciência é estruturalmente distinto da crença que suporta o seu agir; situações em que o saber é, de uma certa forma, impotente diante da crença. Nesses momentos, ele parece procurar, através do fetichismo, descrever o mecanismo de uma certa “ilusão vivenciada como necessária” que não passa pela incapacidade da consciência de apreender a totalidade. Como se compreender modos de alienação determinados pelo fetichismo só fosse possível à condição de entendermos como sujeitos agem a despeito daquilo que, de certa forma, sabem.

A seguir Safatle cita um trecho d’o Capital onde Marx demonstra que a descoberta científica da teoria do valor em nada muda névoa ideológica das práticas sociais. Novamente, não é o esclarecimento ou um estado mental que é o determinante.

Esse quadro caberia como luva para a nova forma de agir da ideologia, que Safatle chama junto com Sloterdijk de reflexiva, falsa consciência esclarecida, ou cínica[3], típica do "fim da história" proclamado hoje[4]. Haveria uma falência da crítica, desse apelo racionalista, por estar inaugurada a era do cinismo e pelo fato de o saber (razão/consciência) fosse insuficiência para quebra da magia da ideologia. Logo também insuficiente para uma prática política revolucionária. Podemos arriscar aqui que a primazia da prática e a materialidade da ideologia, teses de Althusser, são justificativas complementares a essa visão, já que desloca-se, na teoria da ideologia, do sujeito racional e voluntário, mais ou menos "inconsciente", e começa a perceber práticas anteriores, mais fortes e independentes do estado mental dos sujeitos. A crença está do lado da prática, assim como o saber da consciência. E no caso das práticas sociais, dentre elas a política, a crença é o mais relevante já que possui um solo material e objetivo e diz mais respeito a situação da luta de classes numa formação social. Interesse resumo de Ramos (Consumismo e Gozo, revista Psicologia USP) que também cabe aqui: “a ideologia [hoje] perde a razão (mente/ideia) e alcança o corpo (matéria)”. A existência material da ideologia é cada vez mais profunda e importante, e sua visão meramente mental e racional, ingênua.

Se o marxismo supera a tradição crítica e seu ideário de racionalista e liberal de alienação/conscientização, pois substitui os sujeitos de uma teleologia por processos produtivos e de luta de classes, então devemos rechaçar a limitada visão que a esquerda hoje tem da ideologia. Devemos hoje em muitos casos atualizar o “eles não sabem, mas o fazem” de Marx, que é interpretado pela crítica como ausência de esclarecimento, para “eles sabem, mesmo assim/por isso mesmo o fazem”, já que a configuração ideológica e a luta de classes é mais complexa do que as bases teóricas do liberalismo podem abrangem, cujo fator principal não é o esclarecimento de uma suposta tarefa transcendental ou não.

A construção de uma política não-racionalista no fundo é livrar-se de vícios reformistas ("o povo está alienado ainda") e esquerdistas ("somos a consciência histórica") que ela gera. A compreensão de que a luta de classe está aqui/já, acontece, em todos os cantos e momentos, e são nas práticas (materiais) ideológicas que as subjetividades são construídas, possibilita uma militância que perceba a importância de construir práticas contra-hegemônicas menos embasadas na "conscientização" e mais na sistematização de uma nova cultura popular e revolucionária a partir de/nos aparatos ideológicos e não tanto na "consciência/razão" individual. Não tenhamos o medo fetichizado de "alienar" os sujeitos, esperar sua autonomia no sentido individual, mental e abstrato, pois assim estaremos anos-luz do inimigo. Na política não vence aquele que está do lado da razão, mas sim da força.



[1] Nos referimos à modalidade de política racionalista em nosso ensaio sobre o anarquismo (aqui: http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/03/o-caminho-do-inferno-e-pavimentado-de.html), tomando emprestado a caracterização da posição de Trotski após os julgamentos de Moscou, dada por Merleau-Ponty, em Humanismo e Terror - ensaio sobre o problema comunista (Tempo Brasileiro, 1968). Para o autor, o apelo desesperado de Trostki, após ter sido cortado do partido, da URSS, e por conseguinte da história, toma contornos ridículos que contradiz o próprio revolucionário na época anterior a Stalin. Se antes, Trotski era um dos mais impiedosos defensores de um socialismo de viés militarista (vide polêmicas com Lenin, sobre sindicato etc.), não tendo medo de defender a violência revolucionária e as faces muitas vezes arbitrária da história, este, depois de que ele próprio foi vitimado pela sua arma, tende a se firmar como um político racionalista, que não vê a história em sua situação concreta, dada, mas especular (“consciência revolucionária abstrata”), em seus inúmeros denuncismos, possibilidades e escolhas irreais no momento – a teoria da revolução permanente é um dos exemplos mais claros de seu lunático (idealista) racionalismo. Ou seja, basear-se na razão, contra a ambiguidade da história e dos homens presentes que conspiraram contra ele, e firmar-se como posição certa (por estar do lado da razão). Trotski, em seus piores textos, afirma Ponty, não quer ver os caminhos da revolução como um movimento objetivo, mas feita pela vontade de homens.

Ponty afirma nas páginas 96 a 100 de seu livro:

"Mas se as circunstâncias eram tais que a oposição desorganiza a produção, se o prazo concebido à URSS para construir a sua indústria era curto demais para que ela possa fazê-lo sem coação? Se no contexto da obra empreendida a política “humana” era impraticável e o terror somente possível? Se o dilema Zinoviev e Kamenev – obedecer ou comandar, - exprimia as exigências da fase presente? Se a terceira solução de Trotski estava em princípio excluída pela situação? Ela o foi de fato e Trotski foi banido. Nesse momento ele cessa de pensar “em situação”. Vê-se predominar nele um elemento de racionalismo e de moralidade kantiana que se exprime literalmente numa frase da Oposição: “Brincar de esconde-esconde com a revolução, astuciar com as classes sociais, fazer diplomacia com a história é absurdo e criminoso... Zinoviev e Kamenev tombam por não ter observado a única regra válida: “faças o que deves, aconteça o que acontecer””.  [...] essa visão imediata do futuro ou esse afrontamento da morte que são o equivalente existencial do racionalismo. [...] Não censuramos, pois, Trotski de ter em seu tempo usado de violência, mas de esquecê-la, e de retomar, contra uma ditadura que ele sofre, os argumentos do humanismo formal que lhe pareceram falsos quando dirigidos à ditadura que ele exercia."

[2] "Ao se relacionar a consciência com a totalidade da sociedade, torna-se possível reconhecer os pensamentos e os sentimentos que os homens teriam tido numa determinada situação da vida, se tivessem sido capazes de compreender perfeitamente essa situação e os interesses dela decorrentes, tanto em relação à ação imediata quanto em relação à estrutura de toda a sociedade conforme esses interesses." Lukacs citado por Safatle (Fetichismo. Civilização Brasileira, 2010, p. 128). Um economista liberal ou clássico poderia muito bem ter falado isso, ao se referir ao comportamento humano no mercado! Percebemos a ausência das classes sociais, das massas, do modo de produção etc., para ver surgir o indivíduo, a consciência, o saber/ignorância, como bases para a ação, logo bases da prática social.

[3] "A “razão cínica” como concepção da ideologia contemporânea pressupõe que a ideologia perdeu seu componente de falsidade, havendo “consciência” da falsa consciência e uma adesão que, por esse princípio, pode-se entender como “voluntária” e, por isso mesmo, cínica." (CONRADO RAMOS, Consumismo e Gozo, Psicologia USP, 2008, p. 203). Seria o "eu sei que o sistema é injusto, mas fazer o que?" A própria ideologia já expõe a realidade e suas contradições, mas desarma o sujeito com a ausência de alternativa histórica e o afoga num hedonismo narcísico de "realizar o seu potencial" e esquecer transformações estruturais.

[4] “[...] não se trata de uma compreensão pragmática pautada pela “razão cínica”, pela qual o indivíduo “sabe” da ideologia e a vive mesmo assim, assumidamente, como se diante da inverdade que ela implica não houvesse mais o que fazer a não ser gozar, como for possível, de sua falsidade. Trata-se de compreender esse cinismo como a própria ideologia, ou seja, o problema da razão cínica não é “saber” que “tudo é ideologia”, mas achar que não há outra realidade possível. A razão cínica não é uma saída para a ideologia, apontando para um mundo “pós-ideológico”, mas é a expressão mais exemplar da ideologia contemporânea.” (CONRADO RAMOS, Consumismo e Gozo, Psicologia USP, 2008, p. 202)