Reproduzimos aqui um interessante artigo da estudante de Letras Valdirene
Leite sobre o famigerado "A Revolução dos Bichos" de George Orwell, esse ídolo dos liberais e libertários. Publicado originalmente no blog República Socialista (http://republicasocialista.blogspot.com.br/2012/12/ficcao-e-historia-em-revolucao-dos.html).
FICÇÃO E HISTÓRIA EM A REVOLUÇÃO DOS BICHOS
Valdirene Leite[1]
RESUMO
Nesse
texto buscamos um outro olhar não-convencional, sobre o texto A Revolução dos
Bichos. Partimos do pressuposto de que George Orwell não apresenta uma
narrativa objetiva sobre a União Soviética ao utilizar essa narrativa histórica
como base para sua fábula. Nossa hipótese é que a fábula é trotsquista e
anticomunista. E assim ela foi utilizada durante a Guerra Fria. Apesar disso,
mesmo a esquerda continua a prestigiar o texto e não o aborda em termos mais
críticos. Ao analisar que narrativa histórica é essa que Revolução dos Bichos
aborda, notamos que é preciso repensar o seu uso em sala de aula, utilizando
uma bibliografia a respeito da União Soviética e buscando ser mais objetivo, em
especial sobre as dicotomias pobres entre Trotsky e Stálin que o texto A Revolução dos Bichos traz.
Palavras-chave:
Orwell, Revolução dos Bichos, história, União Soviética, ficção, fábula
1 INTRODUÇÃO
O livro A Revolução dos Bichos, de autoria de Eric Arthur Blair (mais
conhecido pelo pseudônimo de George Orwell)
(1903-1950), apresenta, através de uma fábula onde os animais falam, uma
crítica política totalizante a respeito da revolução russa, supomos, desde 1917
até 1943. O texto, publicado em 1945 no Reino Unido sob o nome de Animal Farm, foca principalmente o
governo de Stálin, adotando a hipótese (de origem trotsquista) de que foi
durante esse governo que a revolução se perverteu e se burocratizou.
Nossa hipótese é que a fábula de
Orwell apresenta as posições antissoviéticas de Trotsky de forma ilustrada (e
vai mais além). Por exemplo: a coletivização de 1933-34 é representa pela
situação do moinho de vento. O entusiamo de Bola de Neve pela construção do
moinho de vento e a oposição de Napoleão representaria a situação e a discussão
na União Soviética na altura de 1926, quando os trotsquistas propuseram a
coletivização e ela foi rejeitada.
Assim, esse artigo buscará lançar um
outro olhar sobre a obra de Orwell, considerando que o objetivo de Revolução dos Bichos, de George Orwell,
foi traçar paralelos entre o governo do porco Napoleão e o de Stálin, na União
Soviética. O objetivo aqui será entender e criticar esses paralelos, assim como
entender quais eram, historicamente, as posições de Trotsky e de Stálin,
representadas, na fábula, por Bola de Neve e Napoleão, respectivamente. A
contraposição entre os dois será objeto de debate nesse artigo. O livro não é
isento: tende a defender Bola de Neve, que era Trotsky. Pesquisando sobre
história e ligando aos acontecimentos do livro, pode-se dizer que Bola de Neve
é Trotsky, Napoleão é Stálin, o animalismo é o comunismo.
2 Ficção e história em A
Revolução dos
Bichos
A hipótese a ser articulada nesse artigo é de que Revolução dos Bichos não é uma alegoria neutra do autoritarismo e
sim uma ficção carrega de uma ideologia partidária, ou seja, o narrador
onisciente toma partido deliberadamente das explicações históricas de Trotsky
sobre a revolução russa. Atualmente, essas explicações históricas são totalmente
hegemônicas no Ocidente e formam o chamado paradigma histórico da Guerra Fria.
Somente agora, nos anos 2000, esse paradigma está sendo questionado por
historiadores norte-americanos como John Arch Getty, Mark Tauger e Grover Furr,
e outros russos como Yuri Zhukov, assim como ingleses, como Harpal Brar, dentre
outros. Como o artigo é sobre literatura, nos concentramos em recontar a
história sem citar exaustivamente esses historiadores e autores, cujas obras estão
disponíveis na bibliografia (BAR, 1998, p. 12).
Essa pesquisa permite articular história e literatura e fazer uma
leitura, sob um novo olhar, da narrativa de Orwell, uma vez que ela está
profundamente atrelada a uma determinada versão da história. Optou-se, nesse
trabalho, por lançar um outro olhar, vendo essa narrativa de acordo com outra
hipótese sobre a história: a hipótese da vertente maoísta do marxismo-leninismo.
Segundo essa vertente, a negação do marxismo-leninismo não ocorreu em 1929 (ou
seja, não ocorreu com Stálin) e sim em 1956 (ao tempo de Kruschev). A
comparação entre as figuras históricas e os personagens foi a seguinte, segundo
Olgário Vogt:
O animalismo O socialismo ou o comunismo
O Solar dos Bichos União Soviética
O canto Bichos da Inglaterra A Internacional
Socialista
Os porcos A burocracia soviética
Os homens A burguesia
Os animais O proletariado
Sr. Jones O Czar Nicolau II
O Velho Major Marx10
Napoleão Stálin
Bola de Neve (Snowball) Trotsky
As ovelhas A massa alienada
Os cachorros A polícia política (KGB)
Sansão (Boxer) O trabalhador iludido
O corvo Moisés A Igreja Ortodoxa
O porco Garganta (Squealer) A propaganda
A bandeira verde com o chifre e o
casco
A bandeira soviética com a foice
e o martelo (VOGT,
2007, p. 4).
Em Revolução dos Bichos, a
narrativa histórica de Trotsky sobre os acontecimentos é uma constante em todo
o livro. O processo opera do seguinte modo: a coletivização, por exemplo, é
apresentada como sendo a passagem que se refere ao moinho de vento na Fazenda Animal. A divergência entre Bola
de Neve e Napoleão representa a forma como a coletivização foi motivo de
polêmica entre o grupo de Trotsky e o de Stálin. Tal passagem é comentada nos
seguintes termos em A Revolução dos Bichos:
Bola de Neve estudara atentamente alguns números
atrasados da revista O Agricultor e o Criador
de Gado, encontrados na casa grande, e andava com a cabeça cheia de planos
de invenções e melhoramentos (...). Napoleão não fazia projetos próprios,
apenas dizia com toda calma que os de Bola de Neve não dariam em nada e parecia
aguardar sua vez. De todas as divergências, nenhuma foi tão grave quanto a do
moinho de vento (ORWELL, 2007, p. 43).
A narrativa histórica aqui visada é a coletivização da agricultura russa
nos anos 30. O problema era o seguinte: embora depois da revolução russa
houvesse o fim do latifúndio, continuaram existindo uma classe de fazendeiros
ricos (os kulaks) e pequenos proprietários
empobrecidos. A solução sugerida por Lênin era a criação de fazendas de
produção coletiva. A partir da recusa dos
kulaks em vender grãos ao governo soviético, a coletivização começou, em
1926, ainda incipiente.
No entanto, de forma inconseqüente os trotsquistas sugeriram que a
coletivização fosse adotada rapidamente. O verdadeiro objetivo da oposição de
esquerda era infringir uma derrota ao poder soviético; a coletivização naquelas
circunstâncias, quando ainda estava apenas em seu início, provocaria novos e
mais violentos boicotes por parte dos kulaks
e poderia ser derrotada por eles, pois provocaria desabastecimento e fome. A
idéia foi recusada, mas entre 1933-34, depois de uma grande fome na Ucrânia,
quando a coletivização já estava adiantada, ela foi posta em prática. Os
fazendeiros ricos foram, então, derrotados. A forma como a história aparece em A
Revolução dos
Bichos dá a entender que Stálin (“Napoleão”) era uma criatura maldosa que
apenas roubou as ideias de Trotsky (“Bola de Neve”). As seguintes palavras
serviram para finalizar a questão do moinho de vento (que refigura o fato
histórico da coletivização):
Garganta explicou aos outros bichos, em particular,
que Napoleão nunca fora contra a construção do moinho de vento (...). Aí estava
a esperteza do camarada Napoleão (...). Ele fingira ser contra o moinho de
vento, apenas como manobra para livrar-se de Bola de Neve, que era um péssimo
caráter e uma influência perniciosa (ORWELL, 2007, p. 51).
Assim, uma versão histórica do livro
de Orwell que oculta que os trotsquistas, em 1926, quiseram colocar,
prematuramente, o poder soviético contra os kulaks,
o que causaria sua derrota. A conclusão que se tira é exatamente a contrária: a
coletivização foi uma idéia de Trotsky roubada por Stálin. Outro indício da
tomada de partido é como a polêmica entre a revolução permanente (Trotsky) e a revolução
em um só país (Lênin e Stálin) é apresentada:
Além da disputa sobre o moinho de vento, havia o
problema da defesa da granja. Eles bem que sabiam que (...) segundo Napoleão, o
que os animais deveriam fazer era conseguir armas de fogo e instruir-se em seu
emprego. Bola de Neve achava que deveriam enviar mais e mais pombos e provocar
a rebelião entre os bichos das outras granjas (ORWELL, 2007, p. 45).
Acima, a controvérsia entre a revolução permanente e a revolução em um só
país é apenas esboçada de forma pouco compreensível. A revolução em um só país
foi teorizada por Lênin como conseqüência do próprio capitalismo (a chamada lei
do desenvolvimento desigual), afirmando que dificilmente o socialismo venceria
em vários países ao mesmo tempo e que era necessário construir o socialismo
assim mesmo, mas sem deixar de ajudar a desenvolver o socialismo nas demais
nações. Já Trotsky retomava, a propósito da revolução permanente, idéias que
ele já apresentara em 1906, quando estava no partido menchevique em oposição a
Lênin e aos bolcheviques. Ele condicionava a vitória da revolução na Rússia à
vitória da revolução na Europa.
Pode-se dizer que o dilema proposto por Trotsky era aventuras militares
ou derrotismo: a Rússia deveria mandar tropas para a Alemanha, ou seja,
exportar a revolução ou retornar ao que havia antes de outubro de 1917,
entregando o país a um regime burguês. Essa visão foi chamada de bonapartista
em seu tempo e rejeitada pela maioria do partido. Não obstante, Trotsky passou
a chamar Stálin e seu grupo de bonapartista e fazer uma campanha cada vez mais
furiosa contra o poder soviético, culminando em sua expulsão do partido e do
país em 1929.
E assim a narrativa prossegue: o papel de Bola de Neve na batalha do
Estábulo é a discussão sobre o papel de Trotsky na revolução russa (Krupskaia e
Stálin acreditavam que John Reed, autor de Dez
Dias que Abalaram o Mundo, exagerou ao dar um papel preponderante a
Trotsky). Trotsky aceitou a revolução russa de outubro como condição de que ela
fosse o estopim da revolução européia.
O episódio da fome na Granja dos
Bichos é outro exemplo de apresentação da história da revolução russa, e, em
especial do período de Stálin, sob a mesma luz. Possivelmente o episódio
simboliza a grande fome na Ucrânia entre os anos 1932-33, causada por fatores
climáticos naturais e que tornou necessária a coletivização, privilegiando os
camponeses pobres em detrimento dos kulaks. Esse episódio da fome é descrito
nos seguintes termos na fábula de moral antisstalinista:
Napoleão bem sabia dos maus resultados que poderiam
advir, caso a verdadeira situação alimentar da granja fosse conhecida, e
resolveu utilizar o Sr. Whymper para divulgar uma impressão contrária
(ORWELL, 2007, p. 64).
O que ocorreu não foi uma tentativa
do governo da URSS de esconder o fato da fome e sim a ampla divulgação da fome
por nazistas alemães e reacionários da Polônia e da própria Ucrânia como sendo
causada intencionalmente pelo governo da União Soviética como forma de
exterminar o povo ucraniano, o chamado “holodomor” (em ucraniano, morte por
fome). O pesquisador e historiador Mark Tauger, de West Virginia, estudou
recentemente a questão e concluiu que a fome não foi causada pelo governo e sim
por fatores naturais. Antes da coletivização, sucediam-se ondas de fome em
razão das más colheitas na Ucrânia. Tal fato, no entanto, foi abundantemente
usado para fazer propaganda antissoviética. Mais adiante, surge, na Revolução
dos Bichos, uma passagem que se referem às conspirações
zinovievistas-trotsquistas:
Subitamente, descobriu-se um fato alarmante. Bola de
Neve estava freqüentando a granja à noite, em segredo ! (...). Napoleão
decretou uma ampla investigação sobre as atividades de Bola de Neve. Com seus
cachorros na atitude de alerta, saiu e fez uma cuidadosa inspeção nos galpões
da fazenda, com os outros animais a segui-lo a uma distância respeitosa. (...).
Bola de Neve vendeu-se a Frederick, da Granja Pinch Field, que neste mesmo
instante está planejando atacar-nos e tomar nossa granja! (...) Foi o tempo
todo, agente de Jones! (ORWELL, 2007, p. 69).
O texto acima só pode ser corretamente entendido se for apresentada a
narrativa histórica do período do governo de Stálin ao qual essa passagem se
refere: embora Trotsky tivesse se exilado do País, ainda tinha grupos fiéis a
ele na União Soviética, assim como, desde 1932, ele havia formado um bloco
junto com Zinoviev, Kamenev e Bukharin. Começaram a acontecer inúmeros
atentados e sabotagens pelo país, causando muitas mortes, entre as quais a do
prefeito de Leningrado, segundo na hierarquia soviética. A partir de um esforço
de investigação, chegou-se ao grupo de Trotsky, Zinoviev e Bukharin, que ainda
tinha muitos integrantes em altos escalões do Estado. Os acusados foram
processados nos famosos Julgamentos de Moscou, julgamentos abertos à imprensa
internacional e muitos, como Bukharin, foram fuzilados, outros, como Radek,
foram condenados à prisão.
De acordo com o historiador norte-americano John Arch Getty, os expurgos
que produziram os famosos Julgamentos de Moscou foram mais para poder organizar
um sistema de poder que era caótico do que um exemplo de totalitarismo, de
acordo com textos como Origens dos
Grandes Expurgos (livro inédito em português), do historiador
norte-americano Arch Getty. De acordo com esse historiador, até essa época, se
alguém era expulso do partido, bastava uma autocrítica verbal para poder
voltar. Não foram apresentados, até hoje, documentos comprovando a tortura dos
acusados e as falsificações dos chamados Julgamentos de Moscou. E existem, pelo
contrário, evidências demonstrando que os julgamentos foram justos. Comentou o
historiador Grover Furr (também inédito em português), de Montclair State University (New Jersey) a respeito desse assunto:
Durante a última década, muita evidência documental
emergiu dos arquivos formais soviéticos para contradizer o ponto de vista
canônico desde o tempo de Kruschev de que os réus, nos Processos de Moscou e na
conspiração militar do “Caso Tukachevsky”, foram vítimas inocentes forçadas a
fazer confissões falsas. Nós publicamos e escrevemos um grande número de
trabalhos ou, ao pesquisar para publicar, podemos dizer que agora temos forte
evidência de que as confissões não eram falsas e que os réus dos Processos de
Moscou pareciam ter sido verdadeiros em confessar as conspirações contra o
governo soviético (FURR, 2010, p. 7).
Portanto, a narrativa histórica que Revolução
dos Bichos supõe não é a mesma que todos os historiadores registram, ou não
é neutra como muitos imaginam. Dentre as revelações nos julgamentos, ficou
esclarecido que desde 1925 já existiam contatos entre Trotsky e Von Seekt
(representante do estado maior da Alemanha); os contatos prosseguiraam e se
tornavam mais intensos quando da subida do nazismo ao poder. Hitler às claras
anunciou seu ódio ao bolchevismo e a necessidade que o povo alemão tinha de
invadir a Ucrânia para conquistar “espaço vital”.
Jamais foi dito, portanto, que o
papel de Trotsky foi negado. Ele foi é objeto de denúncias e revelações. As
conspirações, em A
Revolução dos Bichos, são tidas como falsas, ou seja, são
mostradas como provocações criadas por Napoleão para que ele pudesse conquistar
o poder através do terror. Tal constatação pode ser lida no fragmento a seguir:
--Alerto a todos os animais desta fazenda para que
mantenham os olhos bem abertos. Temos motivos para pensar que alguns agentes
secretos de Bola de Neve estão ocultos entre nós neste momento (ORWELL, 2000, p. 71).
A partir daí são descritas imagens
de execuções que seriam, no entanto, imotivadas e sem nenhum sentido a não ser
perverterem os ideais e a utopia, reforçando a autoridade tirânica de Napoleão
(“Stálin”). Pela natureza da relação entre os porcos e Napoleão, pode-se dizer
que eles representam Bukharin, Zinoviev e Kamenev:
[Os animais]eram os mesmos que haviam protestado
quando Napoleão abolira as reuniões dominicais. Sem mais demora, confessaram
ter realizado contatos secretos com Bola-de-Neve desde o dia de sua expulsão e
haver colaborado com ele na destruição do moinho de vento (...). Ao fim da
confissão, os cachorros estraçalharam-lhes as gargantas e Napoleão, com voz
terrível, perguntou se algum outro animal tinha qualquer coisa a confessar. As
três galinhas que haviam liderado a tentativa de reação sobre os ovos
aproximaram-se e declararam que Bola-de-Neve lhes aparecera em sonho,
instigando-as a desobedecer às ordens de Napoleão. Também foram degoladas
(...). E assim prosseguiu a sesão de confissões e execuções, até haver um
montão de cadáveres aos pés de Napoleão e um pesado cheiro de sangue no ar,
coisa que não sucedia desde a expulsão de Jones (ORWELL, 2007, p. 73).
Assim, reforça-se a tese de que o marxismo-leninismo é idealismo ingênuo
e que, quando praticado, leva a uma terrível tirania. Acima, pode-se notar a
leitura dos expurgos dos anos 30 e dos Julgamentos de Moscou como o fuzilamento
dos verdadeiros revolucionários.
A teoria que Orwell apresenta,
resumidamente ao final do texto, é que as teses stalinistas destruíram as
idéias de Marx. Essa mensagem é comentada quando a narrativa trata das
distorções nos pensamentos do personagem Major. O cavalo Sansão, por exemplo, pode
ser associado ao Bukhárin, ou seja, era um velho companheiro de Stálin. Por
fim, o fato final é a Conferência de Teerã, onde debatiam Roosevelt, Churchill
e Stálin. A narrativa de Orwell iguala soviéticos e as potências capitalistas
nessa conferência. No entanto, nessa época o nazismo ainda não tinha sido
vencido. Parece-nos, inclusive, que mesmo que o nazismo esteja representado
nessa fábula por Frederik, da Granja Pich Field, pode-se dizer que faltou a
Orwell uma melhor compreensão da ameaça que representava o nazismo, em sua
pressa de criticar a União Soviética.
Na Inglaterra atual, assim como no
Brasil, é muito comum a presença da obra de George Orwell nas escolas, onde ele
é elogiado como um gênio literário, assim como é celebrado como um escritor na
linhagem de Swift e outros. A fábula costuma ser lida como sobre “o
totalitarismo em geral”.
No entanto, estudos como os de Stephen Spender e Jodi Bar analisam que
aquilo que é de fato avaliado em provas (quando o livro é cobrado na
Inglaterra) é a habilidade de regurgitar clichês da Guerra Fria. Para que a
narrativa de A Revolução dos Bichos funcione, é preciso concordar com a assertiva
de que, embora os governantes de hoje sejam ruins, expulse-os e teremos uma
nova tirania ainda pior. Esse é, de fato, o pressuposto desse texto. Embora
hoje seja tido como crítica ao totalitarismo em geral, o texto de fato tem sido
utilizado como propaganda contra Stálin e a União Soviética. Um leitor, ao ler
Revolução dos Bichos, passa a pontificar a respeito da história da União
Soviética, embora na prática não esteja tendo acesso a uma versão preocupada
com a realidade objetiva. Na prática, está apenas repetindo a versão de Trotsky
dos acontecimentos da revolução de outubro e do período de Stálin (mas sem
saber que a narrativa é partidária). E a versão de Trotsky é a adotada, em
geral com ainda mais exageros negativos, pelo chamado paradigma histórico da
Guerra Fria, ou seja, o paradigma adotado pelas universidades norte-americanas
nos anos 40 e 50, tendo em vista combater ideologicamente os seus inimigos no
campo das democracias populares e socialistas.
E porque o texto seria ainda tão
popular e tão recomendado, se a Guerra Fria, na qual ele foi largamente
incentivado, tendo sido até objeto de uma adaptação para desenho animado
patrocinada pela CIA, terminou em 1989? O fato é que o comunismo ainda é uma
ameaça para a sociedade burguesa, com ou sem Guerra Fria. É preciso refutar as
calúnias nos livros de Orwell e orientar a juventude a buscar uma visão mais
objetiva, distante dos clichês da Guerra Fria, a respeito do que se passou na
União Soviética.
3 REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO DOS BICHOS
Os textos que foi possível encontrar
na bibliografia brasileira respeito de A Revolução
dos Bichos (Teoria e suas
implicações: compreensão da utilização doAnimalismo na Revolução dos Bichos e
do marxismo na URSS de Stálin, de autoria de Felipe Fontana, Olgário Vogt)
não buscam questionar o paradigma histórico da Guerra Fria, pelo contrário, o
confirmam e o acentuam. Em geral, o tom de celebração em torno de Orwell, o
mito, é geral. Fontana se baseia em Marilena Chauí, Simone Weil e José Paulo Netto
(Chauí e Netto tendem bastante ao trotsquismo) para concluir que o marxismo, no
Leste Europeu, tornou-se uma ideologia (no sentido de produzir falsa
consciência). Tanto Fontana quanto Vogt não buscam novas pesquisas históricas
nem suspeitam da mensagem claramente partidária que é transmitida em Revolução dos Bichos.
Olgário Vogt vai no mesmo sentido, supondo que Orwell está criticando “o
totalitarismo em geral”. Mais precavido do que Fontana, diante das evidências
do uso da obra de Orwell na Guerra Fria, Olgário insiste em afirma que Orwell
era um esquerdista e o defende, afirmando que ele desejava um socialismo
“independente”.
Orwell é apresentado, nos livros didáticos ingleses, como um “herói”, um
jornalista “independente”, “objetivo”, “imparcial”, assim como é visto como
exemplo de intelectual engajado em causas sociais. Nos últimos anos, no
entanto, têm sido fortes os questionamentos acadêmicos a respeito do
antissemitismo, homofobia e racismo presentes em seu texto. Como escreve a
respeito Alberto Escusa:
De todos os traços que tinha Orwell, teria que
acrescentar alguns que não se comentam e que tiveram grande peso em suas
atitudes políticas, como sua fobia contra os homossexuais, seu extremo
conservadorismo e seu racismo escondido. Toda a combinação de experiências
vividas e concepções sociais nebulosas e abstratas, junto de suas fobias, foram
levando rapidamente Orwell a posições marcadamente direitistas, ainda que
seguisse formalmente sendo um escritor esquerdista. Um dos traços mais
desconhecidos do escritor foram suas manias de perseguição. Segundo Isaac
Deutscher, que o conheceu pessoalmente, Orwell vivia em um estado de angústia (...).
Essa atitude, junto de sua capacidade de perceber a maneira científica e
realista das questões sociais e políticas, o empurraram a converter-se em um
colaborador direto do imperialismo inglês. Até o final de sua vida, em 1949,
decidiu colaborar com pleno conhecimento de causa com os serviços britânicos de
inteligência, o Foreign Office, ou concretamente com o departamento de
investigação de informação (IRD) ao qual lhe entregou uma lista de 135 pessoas
suspeitas de serem simpatizantes ou companheiros de viagem dos comunistas.
Nesta lista, ao lado de nome anotou os principais defeitos de cada um,
revelando a natureza racista e homofóbica de Orwell, que tinha interesse em
mostrar traços pessoais dos acusados
(ESCUSA, 2012, p. 22).
O antiimperialismo de Orwell, que sempre os comentadores afirmam que
teria advindo de suas experiências como policial na Birmânia, também tem sido
posto em questão.
Outros elementos de sua trajetória têm sido desmistificados:
de origem na classe média alta, Orwell tinha uma arrogância típica das classes
superiores inglesas; rejeitava o socialismo realmente existente, mas propondo
em seu lugar um “socialismo” vago, que se confundia com desapego cristão. Ele
também pregava contra os “marxistas dogmáticos”, no sentido de valorizar a
classe média e considerá-la parte dos proletários, assim como propunha o
resgate do heroísmo físico, o cavalheirismo, dentre outros valores que ele
julgava que estavam sendo esquecidos pelos intelectuais (e que também se
aproximam dos valores da classe média inglesa de onde ele se originou). Para
escrever seus livros, passou algum tempo, embora bastante rápido, entre os
pobres em Paris e Londres, assim como foi, de passagem, às regiões do Norte da
Inglaterra. Sobre os pobres tirava conclusões dizendo que sua grande diferença
era o “odor”.
Orwell foi à Espanha como jornalista e participante do pequeno grupo de
linha trotsquista POUM. No entanto, seu conhecimento da situação política na
Espanha era pequeno e seu principal foco era fazer um livro. Orwell colaborou,
com o livro Homenagem à Catalunha, para
fortalecer a versão dos anarquistas e dos trotsquistas de que a União Soviética
e a Frente Popular foram os responsáveis pela derrota da República na guerra
civil. O título do livro celebra um levante de anarquistas e trotsquistas
contra a frente popular que, na época, foi considerado uma punhalada pelas
costas que favoreceu a Franco e a Hitler.
Assim como em A Revolução dos Bichos, Orwell tomou partido pelo
trotsquismo Acontece que o trotsquismo é a base de boa parte do anticomunismo
ocidental e dos ataques feitos à URSS durante a Guerra Fria.
Outro ponto que tem sido ressaltado
são os conteúdos anticomunistas presentes na obra, principalmente em seus
últimos anos de vida, em plena Guerra Fria.
Surgiu a denúncia de que Orwell trabalhou, durante a II Guerra, como informante
do estado inglês, fazendo listas de artistas que simpatizavam e militavam a
favor do comunismo. O ensinamento que fica ao final da leitura de A Revolução dos Bichos é que os homens
não são melhores do que os animais. A “natureza humana” decide tudo.
Os valores afirmados em um texto devem ser buscados a partir dos valores
afirmados ao seu final. Deve-se, então, analisar a cena final, que se refere à
conferência de Teerã, representa o momento em que se reuniram Roosevelt,
Churchill e Stálin:
Se vossas senhorias têm problemas com vossos animais
inferiores, nós os temos com as nossas classes inferiores (...). Doze vozes
gritavam, cheia de ódio, e eram todas iguais. Não havia dúvidas, agora, quanto
ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um
porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem
outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco
(ORWELL, 2007, p. 118).
Orwell age como se estivesse
criticando uma esquerda oficial apoiada pela União Soviética e que, junto aos
capitalistas e igual a eles, estivesse repartindo o mundo. No entanto, qual era
o contexto histórico no ano de 1943 em que Orwell terminou Revolução dos Bichos e tentou publicar esse escrito antissoviético?
Os nazistas haviam invadido a União Soviética e matado milhões de russos,
arrasando o país. Já havia acontecido a maior batalha da guerra, Stalingrado,
mas não se sabia quem venceria o conflito, se a Alemanha nazista ou os
soviéticos. Mas o que queria Orwell com seu Revolução
dos Bichos? Ele ambicionava acabar com o “mito” da União Soviética como Estado
socialista. Mas a quem beneficiava, em 1943, essa postura de Orwell? É curioso
como se esquece tão facilmente no Ocidente como a vitória foi obtida com
enormes sacrifícios pelo povo soviético e pelo exército vermelho.
Se em 1943 ainda havia atitudes
reticentes quanto à posição de Orwell, a ofensiva contra o socialismo em 1945
as desfez e o mundo ocidental passou a ter uma postura favorável com relação a
ele, chegando até ao ponto de mistificá-lo. Os espiões de guerra nazistas foram
aproveitados por serviços de guerra norte-americanos, como por exemplo, o
general alemão das SS Reinhard Genhlen, cuja rede de espionagem passou
inteiramente aos norte-americanos e passou a agir no Leste da Europa. Essa rede
foi uma das responsáveis pela rebelião antissoviética em Berlim em 1953 e na
Hungria em 1956.
Em A Revolução dos Bichos, o porco Napoleão é
caracterizado como grande, feio, com expressão agressiva e descrito como
tirânico, rude, hipócrita, vaidoso, ou seja, (“Stálin”). Bola de Neve é
mostrado como jovem, bonito, com expressão inteligente e os seguintes
atributos: articulado, inovador, brihante, estrategista, modernizador,
idealista (“Trotsky”). Não seria a hora de questionar esse tipo de dicotomia
pobre que termina sendo passado como aula de literatura e história? Não chegou
a hora de quebrar com esse corporativismo trotsquista que tem protegido Orwell
de ser criticado nesses últimos cinqüenta anos?
Nossa hipótese, portanto, foi de que
A Revolução dos Bichos é libelo
antissoviético e trotsquista, utilizado largamente como propaganda
anticomunista, ao ponto mesmo de servir de base para desenhos animados
patrocinados pela CIA. George Orwell, ao escrevê-lo em 1948, estava claramente
obcecado por seus escritos antissoviéticos.
CONCLUSÃO
Embora seja muito estudada e lida em
sala de aula e na escola, A Revolução dos
Bichos é um livro que ainda pede uma releitura crítica. A narrativa
histórica na qual ele se baseia é uma narrativa fortemente partidária do
anticomunismo, baseada principalmente em Trotsky, embora ele não se apresente
assim. Ele é lido como narrativa neutra que é capaz de engajar e de politizar a
juventude. Isso precisa ser questionado e uma visão mais objetiva, que não
repita, meramente, os clichês da Guerra Fria sobre o período Stálin precisa ser
abordada em sala de aula. No Brasil, os trabalhos disponíveis sobre Revolução dos Bichos, com os textos de
Felipe Fontana e Olgário Vogt, fixam-se totalmente no mito Orwell, celebrando
sem maiores críticas o “clássico”, repetindo elogios a respeito de sua
biografia e vida, mas sem aprofundar-se em sua obra. No entanto, na Inglaterra
novos estudos sobre Orwell o fazem aparecer sob uma outra luz: antissemita,
homofóbico, anticomunista que chegou a trabalhar como informante do Estado em plena Guerra Fria
e delatar outros escritores. Igualmente, historiadores como Grover Furr, Arch
Getty, Yuri Zhukov e outros estão repensando a narrativa do tempo da Guerra
Fria. Como a narrativa sobre a coletização russa dos anos 30 está sendo
repensada, é importante verificar como ela foi apresentada em A
Revolução dos
Bichos. E ela foi apresentada do ponto de vista trotsquista e antissoviética.
O texto constrói uma dicotomia pobre entre Stálin (“Napoleão”) e Trotsky (“Bola
de Neve”). Não há dúvidas de que o texto tomou claro partido por Trotsky e o
anticomunismo. No entanto, os estudiosos brasileiros nunca mostram isso, pelo
contrário, dão a essa hipótese o caráter de verdade inquestionável. Nesse
trabalho, adotamos a hipótese maoísta, de que o abandono do marxismo-leninismo
pela União Soviética aconteceu em 1956.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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da Revolução dos Bichos. Revista Ágora,
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[1] Aluna do Curso de Letras, da UNISA, polo Luz/MG.
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