quarta-feira, 12 de março de 2014

Livros iluminam pontos nebulosos do Brasil sob a ditadura militar (reportagem Zero Hora)

Retiramos reportagem do link: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-lazer/segundo-caderno/noticia/2014/03/livros-iluminam-pontos-nebulosos-do-brasil-sob-a-ditadura-militar-4440772.html


Pelo menos uma dezena de lançamentos tratam dos anos de chumbo


Marcelo Gonzatto
Uma série de livros recém-lançados ou em vias de chegar às prateleiras promete lançar novas luzes sobre um período da história brasileira ainda repleto de sombras.

A proximidade do aniversário de 50 anos do golpe militar que implantou a ditadura no Brasil, na virada do mês, motivou a publicação de pelo menos uma dezena de títulos que pretendem não só recontar a destituição do presidente João Goulart. Visam também fornecer novas análises sobre os desdobramentos dessa ação e revelar passagens ainda pouco conhecidas de como o país perdeu sua liberdade.

Um dos principais lançamentos, 1964 – O Golpe, do jornalista gaúcho Flávio Tavares, começa a ser distribuído hoje às livrarias trazendo transcrições integrais de documentos do governo americano que revelam como os EUA tiveram participação decisiva na conjuração que expulsou Jango do Palácio do Planalto.

– O golpe nasceu nos Estados Unidos – afirma Tavares.

O autor se baseia em informações de primeira mão, a exemplo do diálogo do então presidente americano John Kennedy com o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, para demonstrar em detalhes como a Casa Branca concordou com a infiltração de agentes no Exército brasileiro e a injeção de dinheiro a fim de contribuir com o golpe. Além disso, permitiu o deslocamento de navios para um eventual apoio armado.

– Eu tinha esses documentos porque fui citado em um deles, mas não havia analisado todo o material. Há pouco tempo descobri o que havia ali. Por sorte, as conversas na Casa Branca começaram a ser gravadas no dia em que Kennedy recebeu o embaixador – diz Tavares, que mistura referências documentais com sua própria experiência em Brasília na época do golpe como jornalista político.

O historiador da USP Marcos Napolitano assina outra obra recém-lançada sobre o assunto para discutir um ponto igualmente pouco explorado na historiografia tradicional do regime de exceção. No livro 1964: História do Regime Militar, ele se debruça sobre questões como o apoio de boa parte da sociedade civil à tomada do poder pelos militares. Esse mesmo viés é adotado na obra Ditadura e Democracia no Brasil, de Daniel Aarão Reis, para quem a ditadura não foi simplesmente “imposta de cima para baixo”.

O aniversário do golpe, para Napolitano, permite que essa série de publicações corrija o rumo de algumas avaliações tradicionais sobre o período de chumbo:

– Há muitas conclusões apressadas sobre o apoio e a participação dos civis nesse episódio, e é possível avançar muito em áreas como essa.

Napolitano sustenta que também restam muitos pontos obscuros sobre como funcionava o aparato da repressão – principalmente sobre as guerrilhas. Esses cantos da história, porém, ainda exigirão mais tempo para serem iluminados.

O passado já começou: 50 anos do golpe e do início da ditadura (que continua)




Em todo o país eventos estão previstos para esse mês com a temática do aniversário de 50 anos do golpe militar de 64. A sangrenta ditadura brasileira que, até a transição lenta, gradual e progressiva (ou seja, sua alteração superficial), durou 21 anos será objeto de seminários, debates públicos, manifestações – seja para louvá-la, por vezes cinicamente no comentário “era isso ou os comunas!”, ou para dar continuidade às vozes que se levantaram contra a barbárie friamente planejada e executada em nosso país contra as classes populares. Muito material novo (o que não foi “desaparecido”) sobre a ditadura e sua resistência tem alimentado essa onda que a coloca nos temas centrais brasileiros hoje. Também o aumento da repressão política desde o ano passado com o início das manifestações por estar fazendo com que uma nova geração veja a cara do monstro que só tinham visto nos livros de história, aprendendo assim que a história pode se repetir.

O papel tardio e ainda fraco da comissão de verdade, síntese de uma longa luta dos anistiados, em grande parte é responsável por esse retorno, que tem enfurecido os generais, clubes e torturadores militares de plantão. Mas não nos assustemos com as aparência do campo político e ideológico (divergência e disputa entre ex-guerrilheiros hoje no governo contra a crosta mais reacionária da elite militar, empresarial e midiática do país). O golpe não pode ser visto como um estado de exceção que foi batido pela nova constituição e pela “democratização”. Primeiro porque os resquícios jurídicos e práticos de suma importância resistiram à transição, e o que é mais preocupante, continuam a se desenvolver sobre novas formas e elevar seu nível de atuação. Segundo porque ambos os regimes estão ligados à reprodução capitalista em nosso país, em dois momentos diferentes internacionais e nacionais, de correlação de forças diversas, mas que tem ainda como estratégia central o desmantelamento das classes dominadas e organização das classes dominantes, sob a fachada da “nação”. E no caso brasileiro, a manutenção de sua posição oprimida no sistema imperialista, também sob a fachado de seguir os interesses da “nação”.

Esse panorama mais profundo muda por completo a leitura do golpe e da situação atual e suas aparentes divergências. É óbvio que o nível de repressão, e o formato institucional de boa parte do Estado brasileiro hoje não é igual ao da ditadura, marcada por um estado de exceção e de suspensão do jogo democrático muito mais explícito. No entanto, em aspectos muitos concretos, há uma continuidade: o legado de 64 ainda não acabou, sobrevive, mesmo o executivo não estando ocupado por militares. Aliás uma idiotice esperar que esses regimes voltarão hoje (como estão voltando pelo mundo) do mesmo formato! E a disputa democracia x ditadura, tão denunciada pelos revolucionários marxistas como uma falsa questão, um engodo, é uma disputa interna do campo do capital.

Dentro dessa retomada do tema da ditadura, um livro importante publicado pela Boitempo em 2010 merece destaque. O que resta da ditadura, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle traz artigos de estudiosos e especialistas do tema com o propósito de, ao analisar aspectos jurídicos, políticos, ideológicos etc., demonstrar a pertinência de ainda se lutar contra a ditadura. Apesar de ainda ficar preso no legalismo, caindo por isso na lama da democracia burguesa como redentora e única possível de remover as velhas vestes de exceção (e os lutadores pelo fim do regime sabem que não foram das leis que surgiram as mudanças, mas sim longuíssimas lutas e a força popular), o livro demarca vários fatos e realidades hoje naturalizadas que nada mais são que filhotes do regime militar agindo em plena luz do dia na “constituição cidadã” e nos “governos democráticos populares”.

Um dos pontos centrais do livro é a questão da militarização das polícias brasileiras e sua simbiose com as forças armadas, e concomitantemente a autonomia destas. As atuais criminalizações dos movimentos sociais, as aberrações jurídicas que denotam amplo abuso de poder das instituições repressivas, o imaginário ainda presente de igualar ação política de ação criminosa são alguns dos efeitos desse grande poder das forças militares inclusive constitucionalmente garantido – a muito mais praticamente pelas classes dominantes daqui e de fora. A vagueza do artigo 142, comenta Zaverucha em seu artigo, coloca as forças armadas como detentoras em última instância da ordem constitucional, pública, política, social e econômica, de garantir o funcionamento do executivo, legislativo e judiciário (p. 48 e 49). Aspecto típico de regimes não-liberais. A tese marxista de que a violência é o núcleo duro do Estado se torna clara como água em nossas terras. Como diz Marx no 18 brumário, na constituição burguesa sua universalidade vem sempre acompanhada de casos de exceção – logicamente exceção para os que não detém o poder.

O “legado autoritário” como diz o artigo de Zaverucha é real, presente, e com uma potencialidade de se aprofundar assustadora. A transição democrática se fez hegemonizada pelas classes dominantes nacionais, sob o signo de posição dominada a nível internacional, e a partir de uma frágil reorganização das classes dominadas tanto no país quanto na luta de classes mundial (vitória do lado ocidental na guerra fria, o grande motivo concreto dos golpes latino-americanos: impedir o avanço das conquistas proletárias pelo mundo). Assim o modelo adotado pelo estado brasileiro hoje carrega as experiências fundamentais das classes dominantes de décadas, experiências essas que conseguiram impedir, tardar, reprimir, cooptar e se necessário aniquilar fisicamente a vanguarda, os lutadores e apoiadores das classes dominantes. A orfandade de um partido do proletariado no Brasil nas últimas décadas é a prova cabal disso.

O peso e sistematicidade da repressão na história contemporânea (para não cair no inferno de terror e suplício que foi o período colonial) por essas bandas do sul do equador tiveram fortes traços fascistas – até mesmo materialmente, como é possível ver na era vargas e muller, com presença e apoio de agentes dos regimes nazi-fascistas, e a continuidade do aparato repressivo até a ditadura militar, e seu não desmantelamento até hoje. Essa é a forma que as classes dominantes precisam assumir para manter massas gigantescas sob o mais alto nível de exploração e ausência de direitos. Ditadura para a grande massa, democracia para a minoria: tese de Lenin mais atual que nunca.

Em artigo de Paulo Arantes no livro, de início, é perguntado o que resta afinal da ditadura. E seguindo a resposta de Tales AbSáber, simplesmente tudo – menos a ditadura, é claro (p. 206).

Por tudo isso, é dever de todo lutador não deixar essa marca de sangue para o povo brasileiro em nossa história que foi a ditadura se apagar. A sede de justiça não acabou, nem pelo passado, nem pelo presente. Além de rebater as teses que denunciam um suposto revanchismo, e tentam igualar a violência do regime à sua resistência (uma sessão de tortura não soma a brutalidade de todas as justas ações de resistência da luta armada), é preciso denunciar os partidos reformistas de esquerda que querem trazer a ditadura só como algo nostálgico, mas que na prática tem aprofundado a repressão e o Estado de exceção para o povo com a desculpa da segurança dos megaeventos. A utilização das forças aramadas na Copa, o funcionamento dos serviços de inteligência, a construção de leis de exceção e a utilização de antigas contra manifestantes, a carta branca que os policiais tem para reprimir e se necessário matar está na ordem do dia, e não falamos de 68. Isso demonstra como a diferença de regimes é superficial e não altera a centralidade do estado capitalista: é a luta de classes que define os contornos políticos historicamente existentes.

O capital continua aqui, e mais grave, em crise. Por isso a ditadura burguesa e seu terrorismo de estado continua, mais aqui ou ali, crescendo e se alimentando, e o passado se faz presente: sob novas formas, mas com a velha brutal violência. Diferente da cantoria imbecilizante da Globo de final de ano, o passado já começou.

A todos que tombaram na luta pelas classes trabalhadoras e contra o regime de exceção de 64 uma vida de luta e não lágrimas! Crescer a mobilização pela punição dos crimes da ditadura! Dar continuidade à resistência na opressão presente!

terça-feira, 4 de março de 2014

Opinião pública como elemento de dominação do Estado capitalista


A luta de classe nos momentos de crise se transparece de uma forma cada vez mais explícita no campo cultural (e por outro lado, cada vez mais velada também, veremos). Quando o risco se instaura, vemos até mesmo o crítico ou indiferente se tornar apologético, e os meios culturais antes mais autônomos são forçados a assumirem posições.
Daí se coloca novamente o problema da construção da chamada opinião pública: a linguagem mais clara, as opiniões dos grandes veículos mais diretos, acirram a luta de classe nesse campo.
Na própria visão estratégica do Estado, em sua ânsia de contrarrastrear crises nacionais, está presente as noções de frente comunicacional, guerra psicológica, que nada mais são do que sistematização de práticas defensivas frente aos seus inimigos (movimentos sociais, partidos etc.) a partir do apoio público. A busca de legitimação é peça chave em qualquer forma de dominação, pois é historicamente comprovado, que somente através da violência (das forças armadas, de grupos para militares, policiais, judiciais etc.) não é viável a longo prazo a estabilidade de um regime e da manutenção de um grupo de classes no poder de estado. Em nossa época, o verniz "democrático" é fundamental, mesmo se tornando na prática apenas uma palavra vazia.
O desenvolvimento nas últimas décadas de um sistema comunicacional de alta velocidade, armazenagem e acessibilidade (internacionalmente articulado e monopolizado por grandes empresas e potências imperiais), talvez seja o elemento mais importante para se pensar as dinâmicas de formação de opinião/consenso, ideologização, identidade e demais fatores culturais necessários à dominação política das grandes massas. Grande parte de nosso contato com as manifestações dessa crise, inclusive, são mediadas por aparelhos como a grande mídia: esta se torna assim o veículo que produz as imagens, sentimentos e argumentos que para além de interpretar os fatos, dão uma linguagem específica para eles, uma lente com a qual vemos o mundo. Nisso estudiosos, e profissionais da própria mídia já tem apontado há tempos, ora com tom apocalíptico, ora com tom otimista.
Vale a pena pensar esse problema de uma forma mais concreta usando um exemplo da conjuntura nacional. A operação orquestrada (e também em certo sentido espontânea, pois condiz com a visão de mundo, posição e função política última desses setores) de espetacularização da morte do cinegrafista da Band e do caça-as-bruxas dos supostos envolvidos trazem todos os elementos necessários para apreender a estrutura da formação de consentimento via "opinião pública" essencial ao Estado capitalista.
Mao Tse Tung falava que a morte daquele que serve o povo tem o peso de uma montanha, e aquele que morre servindo às classes dominantes não pesam sequer uma pena. Como a lei da luta de classes às vezes é de uma lógica rigorosa, podemos dizer que o peso dado a morte do cinegrafista foi, para a grande mídia, a de uma montanha, e aqueles manifestantes mortos, feridos, presos e perseguidos desde 2013, sobretudo a juventude do Rio e São Paulo, tem o peso de uma pena. O deslocamento valorativo, obviamente tendo como fundo os interesses objetivos das classes dominantes, ou seja, do Estado capitalista, é o primeiro e talvez mais cabal índice do modus operandi desses setores. Assim como o efeito de isolamento de outros aspectos da situação em questão é patente: o ato se torna um ato entre dois átomos, duas personas jurídicas (no caso, tragicamente três), sem contexto: nada se fala dos antecedentes de violência policial brutal nos protestos (ainda sem investigação ou punição consequente), ou daquele protesto específico, a necessidade dos manifestantes de radicalizarem seus métodos de resistência para ao menos poderem ir às ruas e serem ouvidos etc. (afinal, cada um que foi à rua o ano passado, e continua pegando ônibus todo dia, deve se perguntar: o que mudou? Cadê as reformas prometidas?). A realidade é modelada de acordo com um interesse específico, as provas condizentes são coletadas e a força de impor tal visão garantirá o sucesso ou não via apoiadores. E com preferência acionar os mais remotos e irracionais sentimentos de vingança e insegurança nas pessoas, o desejo de fundo religioso (como demonstrou Durkheim) de destruir aquele que ameaça uma ordem social - o mal ilimitado presente nos estereótipos "terrorista", "subversivo" etc. Inclusive se necessário, reduzindo a zero a maioridade penal para os não-cidadãos de bem! (a zero não, pois o pensamento conservador tende a ver, como diz Caetano, "espírito no feto e nenhum no marginal").
E poderíamos esperar algo diferente desses órgãos que se mantém desde a ditadura sem muita alteração? A crítica e uso desses abusos para minar a confiança popular nesses meios não deve cair numa tola esperança de "democratização dos meios de comunicação". Eles apenas cumprem o seu papel, assim como a polícia (cada vez mais "preparada" para lidar com atos: inviabilizando-os em algumas horas, como aconteceu no último ato contra a copa em SP, graças aos investimentos bilionários com "segurança").
Continuemos. Em seguida encontramos outro mecanismo importante: o deslocamento não pode se mostrar enquanto tal ("somos contra sim os protestos, queremos que a paz sem voz volte às cidades", apesar de comentaristas dos grandes jornais de fato falarem isso). Ele precisa se mostrar técnico e científico. Por isso é tão atraente os comentários de psiquiatras, analistas políticos, cargos burocráticos, e demais "especialistas" junto aos âncoras de jornais: a ideologia, a política, precisam se passar como razão, contrapondo o objeto de crítica que permanece no nível da utopia ou da loucura (individual ou coletiva). Eles são o contrapeso necessário para mostrar que a politização da notícia não passa de intriga da oposição. Afinal são profissionais ali, e não políticos.
O Estado capitalista e os aparelhos que o defendem precisa constantemente se mostrar representante de toda a nação, espaço neutro e aberto de disputa e sua ação de dominação só se justifica se for contra uma anomalia - é um problema técnico, não político - às vezes, pedagógicos, como uma professora da USP à época da desocupação da reitoria comentou no Globo News "são jovens que não tem limites em casa, mimados, é preciso que o Estado imponha limites...".
O eclipse do posicionamento político pelo racional, o sumiço do espaço público, ou seu sequestro, é constituinte do Estado capitalista, é um dos centros de sua ideologia. Apesar de na ditadura e no fascismo isso se aguçar, é perfeitamente viável no estado liberal isso acontecer, exemplos não faltam. Com isso alcança-se o famoso efeito naturalizador da ideologia: todo status quo é tido como eterno, necessário, positivo etc. Sem perceber que o time campeão jogue, anos atrás estava na segunda divisão.
Como bem mostra Poulantzas (Poder Políticos e classes sociais, p. 212): "A opinião pública, fator necessário ao funcionamento do Estado capitalista e forma moderna do consentimento político - do consenso -, só pode, de fato, funcionar na medida em que consegue apresentar-se - e ser aceita - à maneira do técnico científico "racional", na medida em que constitui, nos seus princípios, contra o que designa, atribuindo-lhe um lugar, como utopia".
Vale a pena lembrar das pesquisas de opinião. As estatísticas (também fruto de perguntas isoladas, capciosamente formuladas) parecem ser o momento mais puro e científico: as tabelas são fruto de cálculos, empiricamente constatados, falam por si só. O data folha realiza enfim a prometida democratização e deixa o povo falar - o povo escolhido por eles, na hora deles, da forma deles. Vimos nos últimos meses que as pesquisas de opinião normalmente veem como a coruja de minerva, a fim de colocar os pingos nos is e, caso casem com a intenção estatal, redobram suas possibilidades de ação e lhe dá carta branca. A voz do 51% é a voz de Deus, que volte a bala de borracha.
É quando o espaço político ameaça os limites estruturais de um regime ou estado, ao modificar as relações de força em prol das classes dominadas, e por isso é obliterado pela força ou desqualificado como "inconsequente" e de impossível "governabilidade", que se deve reforçar que a utopia e o idealismo estão do lado deles, ao tentarem continuar por mais décadas seu teatro dos horrores. Reforçar os meios de comunicação populares se aponta como tarefa urgente, com suas próprias "lentes", cuja internet tem se mostrado uma grande potencialidade para isso.

As capas das revistas e websites tentam cristalizar a história, mas ela é mais forte e fez ruir até mesmo o império romano. Que a luta continue.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Quem está mais podre: o governo ou sua oposição de esquerda?

As correntes progressistas em nosso país denunciam, desde o início do ano, a instauração em nosso país de um estado de exceção (oficializado e mais generalizado), via criminalização das lutas e lutadores populares, guerra psicológica e comunicacional, desarticulação cada vez mais violenta das mobilizações e organizações que se desenvolveram no ano passado. Tudo isso dentro do quadro institucional "democrático" e sob a "gestão" do PT e seus aliados.

A morte do jornalista da Band na manifestação do Rio, supostamente por manifestantes, levou a conjuntura para um outro patamar, mais decisivo onde as forças políticas mostram sua real face e odor. Independente de que haja forças políticas, ou até o Estado, por trás do fato, ou tenha sido uma mera fatalidade, para todos os lutadores sinceros, que precisarão se preparar para o que irá acontecer na Copa e depois dela, sob um novo rearranjo das classes em luta, torna-se primordial tirar lições desse momento.

Lição 1 - O limite estrutural do Estado capitalista, como Estado das classes dominantes, foi/está sendo acionado, e ele independente da cor do regime ou do partido no governo. Os acessórios ideológicos e jurídicos são substituíveis, de acordo com a situação política da luta de classes, e não são princípios intocáveis e garantias eternas.

Lição 2 - A função principal deste Estado se mostra/vem se mostrando mais explícita: dar continuidade à reprodução do capital e dominação das classes populares, recorrendo inclusive, ao terror sistemático.

Lição 3 - Com isso, mais uma vez, a máscara do reformismo/revisionismo cai/tende a cair e sua podridão, de seu discurso e prática, é visível.

Até mesmo a alternativa de "esquerda" diante dos últimos fatos vem recuando para posições mais recuadas e típicas da reação. Atolados na lógica eleitoral, da legalidade e da democracia burguesa, o agravamento da situação faz todo seu discurso "revolucionário" cair por terra, e ídolos de boca virarem poodles inofensivos. Nega a resistência desorganizada para negar qualquer resistência. A forma de crítica dessas organizações retira até mesmo a rede de solidariedade frente a esses jovens e defende implicitamente que "a justiça seja feita". Ou seja, que o Estado puna os culpados.  O PSOL, junto com a Veja, elegem o jornalista da Band como mártir da democracia.

The dream is over, e isso é uma boa notícia: é mais forte aquele que não possui ilusões.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Sobre a ideologia e seu papel - comentários e notas teóricas e práticas

A tese de Marx de que as massas tomam consciência de sua "situação" (de exploração, de dominação) no terreno ideológico trouxe muita confusão à ciência marxista. Este blog inclusive busca fundamentar suas análises culturais e políticas sob o prisma dessa tese. Mas, como precisá-la, e como ela vem sendo usada historicamente? Marx quis dizer com ela que a "primeira tarefa" seria conscientizar a si (quebrar o encanto alienante e fetichista da ideologia) e aos seu semelhantes? 

Ora, a ciência que leva a prática revolucionária, nesse caso, seria reduzida a uma filosofia, que não passa de uma concepção de mundo de um setor social - uma  ideologia que enfim se reencontra com a Verdade. A história se tornaria história de homens que tomam consciência de si e do mundo, como está presente nas análises de Gramsci, por exemplo, desde seus primeiros escritos[1]. O marxismo seria um Hegel que trocaria o Estado prussiano pelos sovietes. 

Há algum tempo, e com todas as limitações, nos esforçamos a quebrar o encanto ideológico que encobre precisamente o conceito de ideologia, tentando-o vincular mais com a prática que com a ideia, mais à estrutura que à consciência, menos à irracionalidade e mais a sua profunda "funcionalidade". Sem essa reformulação a prática política está comprometida do dia-a-dia: ou por um ceticismo em relação ao nível de "ignorância" das massas - que leva ao vanguardismo, à contra cultura e "impaciente"; ou seu oposto mesclado ao eleitoralismo-democratismo ("se todos tivessem o mesmo tempo no horário eleitoral, ou de fala no carro de som da manifestação!... Levaríamos o estado revolucionário latente das massas à prática, pela consciência e pela lógica!).

Coloquemos a ideologia onde ela merece estar: na superestrutura que também exerce seus efeitos estruturantes (por isso sua profundidade e permanência), e vamos dar a ela seu papel importante, que é muito importante mas não central, e envolvido com outros aspectos da luta pelo poder.

Para Mao a cultura (terreno ideológico) "prepara o terreno" e continua importante durante a revolução, sendo um dos componentes da "frente" de ação de uma classe ou conjunto de classes. Não fetichiza o saber, o conhecimento ou a "escolaridade" (formal) - que é uma flecha, uma arma para a ação: é preciso saber aprender, aprender o "certo", para acertar o alvo (revolução). Sem essa fusão, a consciência se perde, com tiros a toa. A cultura é um "pequeno parafuso" que precisa ser integrado na "máquina geral da revolução", de autonomia relativa, pois a arte, por exemplo, possui tanto um critério político quanto um critério estético, ambos essenciais para sua efetividade. A separação da teoria e prática assim é superada pela primazia de uma prática de massas. A consciência imediata não ganha ares de fundamento da ação, mas sim se torna possível o termo "combater é aprender".

Para isso e para continuar com o debate, colocamos um trecho com nossos comentários em negrito e parenteses do livro "ideologia, estrutura e comunicação" de Eliseo Veron (tradução de Amélia Cohn, 1977):

"Dizer que a informação ideológica opera por conotação (associação "cultural") e não por denotação (associação literal e precisa) implica em afirmar que a ideologia não é um corpo de proposição (mensagens) e não reside no conteúdo do manifesto das proposições, mas reside no sistema de regras semânticas que o emissor aplica para construir as mensagens. A ideologia é um sistema de codificação da realidade, e não um conjunto determinado de mensagens codificado com esse sistema. Assim sendo, explicar o sistema de codificação que um ator social ou uma certa classe de atores sociais se utiliza para organizar significativamente a realidade equivale a descrever, do ponto de posta da comunicação, as condições que definem a relação desses atores com o seu mundo social. A ideologia se torna autônoma relativamente à consciência ou à intenção de seus portadores (ela é a própria razão "prático-social" que opera nos indivíduos, e não algo exterior a uma razão universal): esses podem ser conscientes de seus pontos de vista sobre o social, mas não das condições semânticos (regras e categorias de codificação) que tornam possíveis tais pontos de vista. Esta perspectiva coincide, ao meu ver, com a formulação de Althusser sobre a ideologia, expressa sem dúvida em termos muito diferentes:

"Costuma-se dizer que a ideologia pertence à região 'consciência'. É preciso não se enganar a respeito desta denominação que permanece contaminada pela problemática idealista anterior a Marx. Na realidade, a ideologia muito pouco tem a ver  com 'consciência', supondo-se que esse termo possua um sentido unívoco. A ideologia é profundamente 'inconsciente' mesmo quando se apresenta (como na filosofia pré-marxista) sob uma forma reflexiva [saber inútil frente a uma crença]. A ideologia é um sistema de representações: mas essas representações na maioria dos casos nada tem a ver com 'consciência': na maioria dos casos são imagens, às vezes conceitos, mas é sobretudo como estruturas que impõem à imensa maioria dos homens, sem passar por sua consciência (nossa língua e valores e suas estrutura são impostos antes mesmo de, do ponto de vista da maturação biológica, tenhamos autonomia cognitiva e moral, na escola, família etc.)" Louis Althusser, Pour Marx.

Há, sem dúvida, neste parágrafo uma certa vagueza terminológica que talvez revele inconsistências teóricas não resolvidas: se as ideologias são estruturas (no sentido em que o estruturalismo utiliza essa expressão) então não são imagens nem conceitos (vale dizer, não são conteúdos) mas sim corpos de tehtas que determinam a organização e funcionamento de imagens e conceitos.

Pouco depois, diz: "A ideologia concerne à relação vivida dos homens com o mundo." Em seguida, Althusser precisa o pensamento, de forma que impede qualquer assimilação do seu ponto de vista a uma formulação consciencialista ou fenomenológica: "Esta relação, que é 'consciente' apenas sob a condição de ser inconsciente parece, da mesma maneira, ser simples apenas sob a condição de ser complexa, parece não ser uma relação simples. Mas uma relação de relações, uma relação de segundo grau. Na ideologia, os homens com efeito expressam, não as relações com as condições de existência, mas o modo em que vivem as relações com suas condições de existência"

Esta caracterização da ideologia como uma "relação de segundo grau", a meu ver, refere-se confusamente à distinção entre um sistema de codificação e conteúdos codificados e introduz, no contexto do pensamento marxista, a ideia fundamental de uma mediação. Em certa interpretação elementar do marxismo, ocorre como se houvesse dois termos, um objetivo e o outro subjetivo, as condições de existência, que são objetivas e materiais - a infraestrutura - por um lado, e por outro lado a ideologia. A descrição objetiva das condições materiais está a cargo da ciência e coincide, naturalmente, com a descrição que fazem os marxistas. A ideologia fica reduzida a um reflexo deformante, uma "excrescência" insubstancial das condições de existência. Pois, bem, este caráter de puro reflexo ("falsa consciência" Lukacs) talvez possa ser atribuído aos conteúdos explícitos das normas institucionalizadas em uma sociedade. Mas a ideologia corresponde a um nível mais básico: no plano dos sistemas de codificação da realidade, que explicam os conteúdos dessas mensagens que circulam em uma sociedade e que são suas normas manifestas. Estes sistemas de codificação não são meras excrescências das condições materiais, mas o seu extremo oposto: constituem uma dimensão central das próprias condições materiais, visto que determinam a significação das condutas sociais, e as condições materiais não são outra coisa que relações sociais (anti-materialismo mecânico)

A concepção de Althusser institucionaliza uma reformulação central do pensamento marxista que - como ele próprio se encarrega de demonstrar - não faz mais que reencontrar os fundamentos teórico-metodológicos do Capital. Esta reformulação, naquilo que aqui nos interessa, elimina o primado da oposição objetivo/subjetivo, proveniente dos textos do "jovem Marx" (problemática da teoria/filosofia moderna). As condições materiais não são algo "objetivo" por oposição à subjetividade deformante da superestrutura ideológica. A distinção infra-estrutura/superestrutura não coincide de modo algum com a oposição objetivo/subjetivo, nem corresponde a ela em grau algum. A significação está presente em todos os níveis de organização das relações sociais em uma sociedade; mas o ponto central é este: a significação não é nada subjetivo.

Há, pois, um parentesco necessário entre a noção de praxis que aparece nos escritos de juventude de Marx, definida a partir da subjetividade do autor; a concepção de infra-estrutura como algo puramente "material" e "Objetivo", alheio à significação; a ideia de que a ideologia não passa de uma "falsa consciência", e, finalmente, a descrição da situação básica do homem na sociedade capitalista com base no conceito de "alienação". Todos esses conceitos são tributários de uma teoria subjetiva do sentido. É no campo teórico desses conceitos que a noção de praxis aparece como muito próxima à noção habitual de "ação social", tal como foi definida a partir de Weber: com efeito, o modelo do operário relacionado com o objetivo de seu trabalho é perfeitamente assimilável ao modelo da ação subjetivamente orientada. Como resultado, as características gerais de certo tipo de sociedade - a saber, a sociedade industrial capitalista - se reduzem a aventuras da consciência de um ator alienado, perspectiva retomada com entusiasmo por certas orientações teóricas marxistas e mesmo antimarxistas.

Longe de ser um "subproduto" que determina a "falsa consciência" social, a ideologia é então o "modo natural de existência" da dimensão significativa dos sistemas de relações sociais. "As sociedades humanas segregam a ideologia como o elemento e a atmosfera indispensável para a sua respiração, para sua vida histórica. Só uma concepção ideológica do mundo pode imaginar sociedade sem ideologias e admitir a ideia utópica de um mundo no qual a ideologia (e não tal ou qual formas históricas destas) desapareceria sem deixar rastros para ser substituída pela ciência. (...) E, para não evitar a questão mais cadente: o materialismo histórico não pode conceber sequer que uma sociedade comunista possa alguma vez carecer de ideologia (...) a ideoligia é uma estrutura essencial para a vida histórica das sociedades". Desta perspectiva, o estudo da ideologia não é outra coisa que o estudo dos campos semânticos que definem a matriz dos sistemas de relações sociais, quando esses sistemas são analisados em relação ao funcionamento da sociedade global em suas diversas áreas de atividade.

Assim sendo, esta concepção da ideologia é necessariamente complementar de uma concepção da ciência que coloca os problemas daquilo que por comodidade continuamos chamando de "objetividade científica" no campo da pragmática. Porque também aqui é preciso eliminar a oposição objetivo/subjetivo. A objetividade da ciência não consiste em neutralizar a subjetividade do homem de ciência. Na área daquilo que chamamos de pragmática, Althusser localiza o objeto do materialismo dialético:

"O objeto do materialismo histórico é constituído pelos modos  de produção, sua constituição, seu funcionamento e suas transformações. O objetivo do materialismo dialético constitui-se por aquilo que Engels chama 'a história do pensamento' ou que Lenin denomina 'a história da passagem da ignorância ao conhecimento'. Podemos designar este objeto com maior precisão como a história da produção dos conhecimentos enquanto conhecimentos, definição que abrange ou resume outras definições possíveis: a diferença história entre a ciência e a ideologia, a teoria da história da cientificidade, etc."
"Todos esses problemas ocupam em conjunto o domínio chamado na filosofia clássica 'teoria do conhecimento'. Mas o objeto do materialismo dialético é algo completamente diverso de uma 'teoria do conhecimento'. Por uma parte, a nova teoria não pode ser, como o era a teoria clássica do conhecimento, uma teoria das condições formais, intemporais, do conhecimento, uma teoria do 'cogito' (Descartes, Hursserl), uma teoria das formas a priori do espírito humano (Kant) ou uma teoria do Saber Absoluto (Hegel). A nova teoria somente pode ser uma teoria da história da produção dos conhecimentos, ou seja, uma teoria das condições reais (materiais e sociais por uma parte, internas à prática científica, por outra) do processo de produção. Ademais, a nova teoria muda completamente a pergunta tradicional da 'teoria do conhecimento': ao invés de propor a questão das garantias do conhecimento, pergunta-se pelo mecanismo da produção dos conhecimentos enquanto conhecimentos".

Nas ciências empíricas, as condições reais da produção de seus conhecimentos definem antes de mais nada o campo conceitual e técnico em que se desenvolve a atividade científica, no interior do qual se movem as operações de construção da linguagem científica. Neste contexto, a objetividade aparece simultaneamente como um ideal legítimo e como uma realidade aproximativa, associada, em um momento dado, a certas dimensões ideológicas. Supor que isto relativiza a noção de objetividade ou de verdade é, outra vez, confundir a lógica da pragmática da ciência. A história humana demonstra que o progresso do conhecimento da realidade esteve determinado, sem exceções, pela tensão entre um ideal formal (definido, em consequência, sem levar em conta as condições empíricas de sua realização) e sua aplicação, sempre imperfeita, no plano dos sistemas concretos da atividade social. Entre distância que separa esse ideal de seu cumprimento efetivo, tem lugar a dialética que define a ciência (e suas interpenetrações com as ideologias e as classes sociais em luta).





[1] Ver o texto juvenil "socialismo e cultura", onde Gramsci expõe sua visão de elevação do espírito na história, e depois comparar com as famosas teses dos cadernos (proletariado alemão é o herdeiro do idealismo alemão, objetivo ao subjetivo, necessidade à liberdade; sujeito e objeto, particular e universal etc.): as permanências são impressionantes. A ambiguidade de Gramsci está no fato de, ao mesmo tempo que contribui para uma visão mais ampla e complexa da dominação de classe e das revoluções, colocando relevância ao aspecto cultural-ideológico e suas estruturas e organizações mais ou menos autônomas, desconsideradas constantemente pelo economicismo, continua a fundar esse terreno cultural sobre o paradigma da consciência e da ação moral dos homens sobre a história. Em "revolução contra o capital", por exemplo, chega ao absurdo de propor o proletariado russo como sujeito consciente realizando sua liberdade/razão frente ao mecanicismo do mundo objetivo e alienante (representado pelo Capital), defendendo o subjetivo humano da superestrutura contra a infra-estrutura. Etc etc.

Discurso de Luiz Ruffato na abertura da Feira do Livro de Frankfurt

http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,leia-a-integra-do-discurso-de-luiz-ruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463,0.htm

Impactante discurso (porque verdadeiro e honesto) de um escritor brasileiro da nova geração "pós-democratização". Que o engajamento entre o artitas continue e se aprofunde nesses momentos decisivos que vivemos da luta popular.



"O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro --é a alteridade que nos confere o sentido de existir--, o outro é também aquele que pode nos aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas - ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas, escritores.
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania --moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade--, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém...
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios --o semelhante torna-se o inimigo. 
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados. 
Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. 
E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais --ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples. 
A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.
Mas, temos avançado.
A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia - são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.
Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país paradoxal.
Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo --amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos...
Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro --seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual-- como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora."