terça-feira, 4 de março de 2014

Opinião pública como elemento de dominação do Estado capitalista


A luta de classe nos momentos de crise se transparece de uma forma cada vez mais explícita no campo cultural (e por outro lado, cada vez mais velada também, veremos). Quando o risco se instaura, vemos até mesmo o crítico ou indiferente se tornar apologético, e os meios culturais antes mais autônomos são forçados a assumirem posições.
Daí se coloca novamente o problema da construção da chamada opinião pública: a linguagem mais clara, as opiniões dos grandes veículos mais diretos, acirram a luta de classe nesse campo.
Na própria visão estratégica do Estado, em sua ânsia de contrarrastrear crises nacionais, está presente as noções de frente comunicacional, guerra psicológica, que nada mais são do que sistematização de práticas defensivas frente aos seus inimigos (movimentos sociais, partidos etc.) a partir do apoio público. A busca de legitimação é peça chave em qualquer forma de dominação, pois é historicamente comprovado, que somente através da violência (das forças armadas, de grupos para militares, policiais, judiciais etc.) não é viável a longo prazo a estabilidade de um regime e da manutenção de um grupo de classes no poder de estado. Em nossa época, o verniz "democrático" é fundamental, mesmo se tornando na prática apenas uma palavra vazia.
O desenvolvimento nas últimas décadas de um sistema comunicacional de alta velocidade, armazenagem e acessibilidade (internacionalmente articulado e monopolizado por grandes empresas e potências imperiais), talvez seja o elemento mais importante para se pensar as dinâmicas de formação de opinião/consenso, ideologização, identidade e demais fatores culturais necessários à dominação política das grandes massas. Grande parte de nosso contato com as manifestações dessa crise, inclusive, são mediadas por aparelhos como a grande mídia: esta se torna assim o veículo que produz as imagens, sentimentos e argumentos que para além de interpretar os fatos, dão uma linguagem específica para eles, uma lente com a qual vemos o mundo. Nisso estudiosos, e profissionais da própria mídia já tem apontado há tempos, ora com tom apocalíptico, ora com tom otimista.
Vale a pena pensar esse problema de uma forma mais concreta usando um exemplo da conjuntura nacional. A operação orquestrada (e também em certo sentido espontânea, pois condiz com a visão de mundo, posição e função política última desses setores) de espetacularização da morte do cinegrafista da Band e do caça-as-bruxas dos supostos envolvidos trazem todos os elementos necessários para apreender a estrutura da formação de consentimento via "opinião pública" essencial ao Estado capitalista.
Mao Tse Tung falava que a morte daquele que serve o povo tem o peso de uma montanha, e aquele que morre servindo às classes dominantes não pesam sequer uma pena. Como a lei da luta de classes às vezes é de uma lógica rigorosa, podemos dizer que o peso dado a morte do cinegrafista foi, para a grande mídia, a de uma montanha, e aqueles manifestantes mortos, feridos, presos e perseguidos desde 2013, sobretudo a juventude do Rio e São Paulo, tem o peso de uma pena. O deslocamento valorativo, obviamente tendo como fundo os interesses objetivos das classes dominantes, ou seja, do Estado capitalista, é o primeiro e talvez mais cabal índice do modus operandi desses setores. Assim como o efeito de isolamento de outros aspectos da situação em questão é patente: o ato se torna um ato entre dois átomos, duas personas jurídicas (no caso, tragicamente três), sem contexto: nada se fala dos antecedentes de violência policial brutal nos protestos (ainda sem investigação ou punição consequente), ou daquele protesto específico, a necessidade dos manifestantes de radicalizarem seus métodos de resistência para ao menos poderem ir às ruas e serem ouvidos etc. (afinal, cada um que foi à rua o ano passado, e continua pegando ônibus todo dia, deve se perguntar: o que mudou? Cadê as reformas prometidas?). A realidade é modelada de acordo com um interesse específico, as provas condizentes são coletadas e a força de impor tal visão garantirá o sucesso ou não via apoiadores. E com preferência acionar os mais remotos e irracionais sentimentos de vingança e insegurança nas pessoas, o desejo de fundo religioso (como demonstrou Durkheim) de destruir aquele que ameaça uma ordem social - o mal ilimitado presente nos estereótipos "terrorista", "subversivo" etc. Inclusive se necessário, reduzindo a zero a maioridade penal para os não-cidadãos de bem! (a zero não, pois o pensamento conservador tende a ver, como diz Caetano, "espírito no feto e nenhum no marginal").
E poderíamos esperar algo diferente desses órgãos que se mantém desde a ditadura sem muita alteração? A crítica e uso desses abusos para minar a confiança popular nesses meios não deve cair numa tola esperança de "democratização dos meios de comunicação". Eles apenas cumprem o seu papel, assim como a polícia (cada vez mais "preparada" para lidar com atos: inviabilizando-os em algumas horas, como aconteceu no último ato contra a copa em SP, graças aos investimentos bilionários com "segurança").
Continuemos. Em seguida encontramos outro mecanismo importante: o deslocamento não pode se mostrar enquanto tal ("somos contra sim os protestos, queremos que a paz sem voz volte às cidades", apesar de comentaristas dos grandes jornais de fato falarem isso). Ele precisa se mostrar técnico e científico. Por isso é tão atraente os comentários de psiquiatras, analistas políticos, cargos burocráticos, e demais "especialistas" junto aos âncoras de jornais: a ideologia, a política, precisam se passar como razão, contrapondo o objeto de crítica que permanece no nível da utopia ou da loucura (individual ou coletiva). Eles são o contrapeso necessário para mostrar que a politização da notícia não passa de intriga da oposição. Afinal são profissionais ali, e não políticos.
O Estado capitalista e os aparelhos que o defendem precisa constantemente se mostrar representante de toda a nação, espaço neutro e aberto de disputa e sua ação de dominação só se justifica se for contra uma anomalia - é um problema técnico, não político - às vezes, pedagógicos, como uma professora da USP à época da desocupação da reitoria comentou no Globo News "são jovens que não tem limites em casa, mimados, é preciso que o Estado imponha limites...".
O eclipse do posicionamento político pelo racional, o sumiço do espaço público, ou seu sequestro, é constituinte do Estado capitalista, é um dos centros de sua ideologia. Apesar de na ditadura e no fascismo isso se aguçar, é perfeitamente viável no estado liberal isso acontecer, exemplos não faltam. Com isso alcança-se o famoso efeito naturalizador da ideologia: todo status quo é tido como eterno, necessário, positivo etc. Sem perceber que o time campeão jogue, anos atrás estava na segunda divisão.
Como bem mostra Poulantzas (Poder Políticos e classes sociais, p. 212): "A opinião pública, fator necessário ao funcionamento do Estado capitalista e forma moderna do consentimento político - do consenso -, só pode, de fato, funcionar na medida em que consegue apresentar-se - e ser aceita - à maneira do técnico científico "racional", na medida em que constitui, nos seus princípios, contra o que designa, atribuindo-lhe um lugar, como utopia".
Vale a pena lembrar das pesquisas de opinião. As estatísticas (também fruto de perguntas isoladas, capciosamente formuladas) parecem ser o momento mais puro e científico: as tabelas são fruto de cálculos, empiricamente constatados, falam por si só. O data folha realiza enfim a prometida democratização e deixa o povo falar - o povo escolhido por eles, na hora deles, da forma deles. Vimos nos últimos meses que as pesquisas de opinião normalmente veem como a coruja de minerva, a fim de colocar os pingos nos is e, caso casem com a intenção estatal, redobram suas possibilidades de ação e lhe dá carta branca. A voz do 51% é a voz de Deus, que volte a bala de borracha.
É quando o espaço político ameaça os limites estruturais de um regime ou estado, ao modificar as relações de força em prol das classes dominadas, e por isso é obliterado pela força ou desqualificado como "inconsequente" e de impossível "governabilidade", que se deve reforçar que a utopia e o idealismo estão do lado deles, ao tentarem continuar por mais décadas seu teatro dos horrores. Reforçar os meios de comunicação populares se aponta como tarefa urgente, com suas próprias "lentes", cuja internet tem se mostrado uma grande potencialidade para isso.

As capas das revistas e websites tentam cristalizar a história, mas ela é mais forte e fez ruir até mesmo o império romano. Que a luta continue.

Nenhum comentário:

Postar um comentário