A luta de classe nos momentos de crise se transparece de uma
forma cada vez mais explícita no campo cultural (e por outro lado, cada vez
mais velada também, veremos). Quando o risco se instaura, vemos até mesmo o
crítico ou indiferente se tornar apologético, e os meios culturais antes mais
autônomos são forçados a assumirem posições.
Daí se coloca novamente o problema da construção da chamada
opinião pública: a linguagem mais clara, as opiniões dos grandes veículos mais
diretos, acirram a luta de classe nesse campo.
Na própria visão estratégica do Estado, em sua ânsia de
contrarrastrear crises nacionais, está presente as noções de frente
comunicacional, guerra psicológica, que nada mais são do que sistematização de
práticas defensivas frente aos seus inimigos (movimentos sociais, partidos
etc.) a partir do apoio público. A busca de legitimação é peça chave em
qualquer forma de dominação, pois é historicamente comprovado, que somente
através da violência (das forças armadas, de grupos para militares, policiais,
judiciais etc.) não é viável a longo prazo a estabilidade de um regime e da
manutenção de um grupo de classes no poder de estado. Em nossa época, o verniz
"democrático" é fundamental, mesmo se tornando na prática apenas uma
palavra vazia.
O desenvolvimento nas últimas décadas de um sistema
comunicacional de alta velocidade, armazenagem e acessibilidade
(internacionalmente articulado e monopolizado por grandes empresas e potências
imperiais), talvez seja o elemento mais importante para se pensar as dinâmicas
de formação de opinião/consenso, ideologização, identidade e demais fatores
culturais necessários à dominação política das grandes massas. Grande parte de
nosso contato com as manifestações dessa crise, inclusive, são mediadas por
aparelhos como a grande mídia: esta se torna assim o veículo que produz as
imagens, sentimentos e argumentos que para além de interpretar os fatos, dão
uma linguagem específica para eles, uma lente com a qual vemos o mundo. Nisso
estudiosos, e profissionais da própria mídia já tem apontado há tempos, ora com
tom apocalíptico, ora com tom otimista.
Vale a pena pensar esse problema de uma forma mais concreta
usando um exemplo da conjuntura nacional. A operação orquestrada (e também em
certo sentido espontânea, pois condiz com a visão de mundo, posição e função
política última desses setores) de espetacularização da morte do cinegrafista
da Band e do caça-as-bruxas dos supostos envolvidos trazem todos os elementos
necessários para apreender a estrutura da formação de consentimento via
"opinião pública" essencial ao Estado capitalista.
Mao Tse Tung falava que a morte daquele que serve o povo tem
o peso de uma montanha, e aquele que morre servindo às classes dominantes não
pesam sequer uma pena. Como a lei da luta de classes às vezes é de uma lógica
rigorosa, podemos dizer que o peso dado a morte do cinegrafista foi, para a
grande mídia, a de uma montanha, e aqueles manifestantes mortos, feridos,
presos e perseguidos desde 2013, sobretudo a juventude do Rio e São Paulo, tem
o peso de uma pena. O deslocamento valorativo, obviamente tendo como fundo os
interesses objetivos das classes dominantes, ou seja, do Estado capitalista, é
o primeiro e talvez mais cabal índice do modus operandi desses setores. Assim
como o efeito de isolamento de outros aspectos da situação em questão é
patente: o ato se torna um ato entre dois átomos, duas personas jurídicas (no
caso, tragicamente três), sem contexto: nada se fala dos antecedentes de
violência policial brutal nos protestos (ainda sem investigação ou punição
consequente), ou daquele protesto específico, a necessidade dos manifestantes
de radicalizarem seus métodos de resistência para ao menos poderem ir às ruas e
serem ouvidos etc. (afinal, cada um que foi à rua o ano passado, e continua
pegando ônibus todo dia, deve se perguntar: o que mudou? Cadê as reformas
prometidas?). A realidade é modelada de acordo com um interesse específico, as
provas condizentes são coletadas e a força de impor tal visão garantirá o
sucesso ou não via apoiadores. E com preferência acionar os mais remotos e
irracionais sentimentos de vingança e insegurança nas pessoas, o desejo de
fundo religioso (como demonstrou Durkheim) de destruir aquele que ameaça uma
ordem social - o mal ilimitado presente nos estereótipos
"terrorista", "subversivo" etc. Inclusive se necessário,
reduzindo a zero a maioridade penal para os não-cidadãos de bem! (a zero não,
pois o pensamento conservador tende a ver, como diz Caetano, "espírito no
feto e nenhum no marginal").
E poderíamos esperar algo diferente desses órgãos que se
mantém desde a ditadura sem muita alteração? A crítica e uso desses abusos para
minar a confiança popular nesses meios não deve cair numa tola esperança de
"democratização dos meios de comunicação". Eles apenas cumprem o seu
papel, assim como a polícia (cada vez mais "preparada" para lidar com
atos: inviabilizando-os em algumas horas, como aconteceu no último ato contra a
copa em SP, graças aos investimentos bilionários com "segurança").
Continuemos. Em seguida encontramos outro mecanismo
importante: o deslocamento não pode se mostrar enquanto tal ("somos contra
sim os protestos, queremos que a paz sem voz volte às cidades", apesar de
comentaristas dos grandes jornais de fato falarem isso). Ele precisa se mostrar
técnico e científico. Por isso é tão atraente os comentários de psiquiatras,
analistas políticos, cargos burocráticos, e demais "especialistas"
junto aos âncoras de jornais: a ideologia, a política, precisam se passar como
razão, contrapondo o objeto de crítica que permanece no nível da utopia ou da
loucura (individual ou coletiva). Eles são o contrapeso necessário para mostrar
que a politização da notícia não passa de intriga da oposição. Afinal são profissionais
ali, e não políticos.
O Estado capitalista e os aparelhos que o defendem precisa
constantemente se mostrar representante de toda a nação, espaço neutro e aberto
de disputa e sua ação de dominação só se justifica se for contra uma anomalia -
é um problema técnico, não político - às vezes, pedagógicos, como uma
professora da USP à época da desocupação da reitoria comentou no Globo News
"são jovens que não tem limites em casa, mimados, é preciso que o Estado
imponha limites...".
O eclipse do posicionamento político pelo racional, o sumiço
do espaço público, ou seu sequestro, é constituinte do Estado capitalista, é um
dos centros de sua ideologia. Apesar de na ditadura e no fascismo isso se
aguçar, é perfeitamente viável no estado liberal isso acontecer, exemplos não
faltam. Com isso alcança-se o famoso efeito naturalizador da ideologia: todo
status quo é tido como eterno, necessário, positivo etc. Sem perceber que o
time campeão jogue, anos atrás estava na segunda divisão.
Como bem mostra Poulantzas (Poder Políticos e classes
sociais, p. 212): "A opinião pública, fator necessário ao funcionamento do
Estado capitalista e forma moderna do consentimento político - do consenso -,
só pode, de fato, funcionar na medida em que consegue apresentar-se - e ser
aceita - à maneira do técnico científico "racional", na medida em que
constitui, nos seus princípios, contra o que designa, atribuindo-lhe um lugar,
como utopia".
Vale a pena lembrar das pesquisas de opinião. As
estatísticas (também fruto de perguntas isoladas, capciosamente formuladas)
parecem ser o momento mais puro e científico: as tabelas são fruto de cálculos,
empiricamente constatados, falam por si só. O data folha realiza enfim a
prometida democratização e deixa o povo falar - o povo escolhido por eles, na
hora deles, da forma deles. Vimos nos últimos meses que as pesquisas de opinião
normalmente veem como a coruja de minerva, a fim de colocar os pingos nos is e,
caso casem com a intenção estatal, redobram suas possibilidades de ação e lhe
dá carta branca. A voz do 51% é a voz de Deus, que volte a bala de borracha.
É quando o espaço político ameaça os limites estruturais de
um regime ou estado, ao modificar as relações de força em prol das classes
dominadas, e por isso é obliterado pela força ou desqualificado como
"inconsequente" e de impossível "governabilidade", que se
deve reforçar que a utopia e o idealismo estão do lado deles, ao tentarem
continuar por mais décadas seu teatro dos horrores. Reforçar os meios de
comunicação populares se aponta como tarefa urgente, com suas próprias
"lentes", cuja internet tem se mostrado uma grande potencialidade
para isso.
As capas das revistas e websites tentam cristalizar a
história, mas ela é mais forte e fez ruir até mesmo o império romano. Que a
luta continue.
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