Em todo o país eventos
estão previstos para esse mês com a temática do aniversário de 50
anos do golpe militar de 64. A sangrenta ditadura brasileira que, até
a transição lenta, gradual e progressiva (ou seja, sua alteração
superficial), durou 21 anos será objeto de seminários, debates
públicos, manifestações – seja para louvá-la, por vezes
cinicamente no comentário “era isso ou os comunas!”, ou para dar
continuidade às vozes que se levantaram contra a barbárie friamente
planejada e executada em nosso país contra as classes populares.
Muito material novo (o que não foi “desaparecido”) sobre a
ditadura e sua resistência tem alimentado essa onda que a coloca nos
temas centrais brasileiros hoje. Também o aumento da repressão
política desde o ano passado com o início das manifestações por
estar fazendo com que uma nova geração veja a cara do monstro que
só tinham visto nos livros de história, aprendendo assim que a
história pode se repetir.
O papel tardio e ainda
fraco da comissão de verdade, síntese de uma longa luta dos
anistiados, em grande parte é responsável por esse retorno, que tem
enfurecido os generais, clubes e torturadores militares de plantão.
Mas não nos assustemos com as aparência do campo político e
ideológico (divergência e disputa entre ex-guerrilheiros hoje no
governo contra a crosta mais reacionária da elite militar,
empresarial e midiática do país). O golpe não pode ser visto como
um estado de exceção que foi batido pela nova constituição e pela
“democratização”. Primeiro porque os resquícios jurídicos e
práticos de suma importância resistiram à transição, e o que é
mais preocupante, continuam a se desenvolver sobre novas formas e
elevar seu nível de atuação. Segundo porque ambos os regimes estão
ligados à reprodução capitalista em nosso país, em dois momentos
diferentes internacionais e nacionais, de correlação de forças
diversas, mas que tem ainda como estratégia central o
desmantelamento das classes dominadas e organização das classes
dominantes, sob a fachada da “nação”. E no caso brasileiro, a
manutenção de sua posição oprimida no sistema imperialista,
também sob a fachado de seguir os interesses da “nação”.
Esse panorama mais
profundo muda por completo a leitura do golpe e da situação atual e
suas aparentes divergências. É óbvio que o nível de repressão, e
o formato institucional de boa parte do Estado brasileiro hoje não é
igual ao da ditadura, marcada por um estado de exceção e de
suspensão do jogo democrático muito mais explícito. No entanto, em
aspectos muitos concretos, há uma continuidade: o legado de 64 ainda
não acabou, sobrevive, mesmo o executivo não estando ocupado por
militares. Aliás uma idiotice esperar que esses regimes voltarão
hoje (como estão voltando pelo mundo) do mesmo formato! E a disputa
democracia x ditadura, tão denunciada pelos revolucionários
marxistas como uma falsa questão, um engodo, é uma disputa interna
do campo do capital.
Dentro dessa retomada
do tema da ditadura, um livro importante publicado pela Boitempo em
2010 merece destaque. O que resta da ditadura, organizado por Edson
Teles e Vladimir Safatle traz artigos de estudiosos e especialistas
do tema com o propósito de, ao analisar aspectos jurídicos,
políticos, ideológicos etc., demonstrar a pertinência de ainda se
lutar contra a ditadura. Apesar de ainda ficar preso no legalismo,
caindo por isso na lama da democracia burguesa como redentora e única
possível de remover as velhas vestes de exceção (e os lutadores
pelo fim do regime sabem que não foram das leis que surgiram as
mudanças, mas sim longuíssimas lutas e a força popular), o livro
demarca vários fatos e realidades hoje naturalizadas que nada mais
são que filhotes do regime militar agindo em plena luz do dia na
“constituição cidadã” e nos “governos democráticos
populares”.
Um dos pontos centrais
do livro é a questão da militarização das polícias brasileiras e
sua simbiose com as forças armadas, e concomitantemente a autonomia
destas. As atuais criminalizações dos movimentos sociais, as
aberrações jurídicas que denotam amplo abuso de poder das
instituições repressivas, o imaginário ainda presente de igualar
ação política de ação criminosa são alguns dos efeitos desse
grande poder das forças militares inclusive constitucionalmente
garantido – a muito mais praticamente pelas classes dominantes
daqui e de fora. A vagueza do artigo 142, comenta Zaverucha em seu
artigo, coloca as forças armadas como detentoras em última
instância da ordem constitucional, pública, política, social e
econômica, de garantir o funcionamento do executivo, legislativo e
judiciário (p. 48 e 49). Aspecto típico de regimes não-liberais. A
tese marxista de que a violência é o núcleo duro do Estado se
torna clara como água em nossas terras. Como diz Marx no 18
brumário, na constituição burguesa sua universalidade vem sempre
acompanhada de casos de exceção – logicamente exceção para os
que não detém o poder.
O “legado
autoritário” como diz o artigo de Zaverucha é real, presente, e
com uma potencialidade de se aprofundar assustadora. A transição
democrática se fez hegemonizada pelas classes dominantes nacionais,
sob o signo de posição dominada a nível internacional, e a partir
de uma frágil reorganização das classes dominadas tanto no país
quanto na luta de classes mundial (vitória do lado ocidental na
guerra fria, o grande motivo concreto dos golpes latino-americanos:
impedir o avanço das conquistas proletárias pelo mundo). Assim o
modelo adotado pelo estado brasileiro hoje carrega as experiências
fundamentais das classes dominantes de décadas, experiências essas
que conseguiram impedir, tardar, reprimir, cooptar e se necessário
aniquilar fisicamente a vanguarda, os lutadores e apoiadores das
classes dominantes. A orfandade de um partido do proletariado no
Brasil nas últimas décadas é a prova cabal disso.
O peso e
sistematicidade da repressão na história contemporânea (para não
cair no inferno de terror e suplício que foi o período colonial)
por essas bandas do sul do equador tiveram fortes traços fascistas –
até mesmo materialmente, como é possível ver na era vargas e
muller, com presença e apoio de agentes dos regimes nazi-fascistas,
e a continuidade do aparato repressivo até a ditadura militar, e seu
não desmantelamento até hoje. Essa é a forma que as classes
dominantes precisam assumir para manter massas gigantescas sob o mais
alto nível de exploração e ausência de direitos. Ditadura para a
grande massa, democracia para a minoria: tese de Lenin mais atual que
nunca.
Em artigo de Paulo
Arantes no livro, de início, é perguntado o que resta afinal da
ditadura. E seguindo a resposta de Tales AbSáber, simplesmente tudo
– menos a ditadura, é claro (p. 206).
Por tudo isso, é dever
de todo lutador não deixar essa marca de sangue para o povo
brasileiro em nossa história que foi a ditadura se apagar. A sede de
justiça não acabou, nem pelo passado, nem pelo presente. Além de
rebater as teses que denunciam um suposto revanchismo, e tentam
igualar a violência do regime à sua resistência (uma sessão de
tortura não soma a brutalidade de todas as justas ações de
resistência da luta armada), é preciso denunciar os partidos
reformistas de esquerda que querem trazer a ditadura só como algo
nostálgico, mas que na prática tem aprofundado a repressão e o
Estado de exceção para o povo com a desculpa da segurança dos
megaeventos. A utilização das forças aramadas na Copa, o
funcionamento dos serviços de inteligência, a construção de leis
de exceção e a utilização de antigas contra manifestantes, a
carta branca que os policiais tem para reprimir e se necessário
matar está na ordem do dia, e não falamos de 68. Isso demonstra
como a diferença de regimes é superficial e não altera a
centralidade do estado capitalista: é a luta de classes que define
os contornos políticos historicamente existentes.
O capital continua
aqui, e mais grave, em crise. Por isso a ditadura burguesa e seu
terrorismo de estado continua, mais aqui ou ali, crescendo e se
alimentando, e o passado se faz presente: sob novas formas, mas com a
velha brutal violência. Diferente da cantoria imbecilizante da Globo
de final de ano, o passado já começou.
A todos que tombaram na
luta pelas classes trabalhadoras e contra o regime de exceção de 64
uma vida de luta e não lágrimas! Crescer a mobilização pela
punição dos crimes da ditadura! Dar continuidade à resistência na
opressão presente!
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