quarta-feira, 12 de março de 2014

O passado já começou: 50 anos do golpe e do início da ditadura (que continua)




Em todo o país eventos estão previstos para esse mês com a temática do aniversário de 50 anos do golpe militar de 64. A sangrenta ditadura brasileira que, até a transição lenta, gradual e progressiva (ou seja, sua alteração superficial), durou 21 anos será objeto de seminários, debates públicos, manifestações – seja para louvá-la, por vezes cinicamente no comentário “era isso ou os comunas!”, ou para dar continuidade às vozes que se levantaram contra a barbárie friamente planejada e executada em nosso país contra as classes populares. Muito material novo (o que não foi “desaparecido”) sobre a ditadura e sua resistência tem alimentado essa onda que a coloca nos temas centrais brasileiros hoje. Também o aumento da repressão política desde o ano passado com o início das manifestações por estar fazendo com que uma nova geração veja a cara do monstro que só tinham visto nos livros de história, aprendendo assim que a história pode se repetir.

O papel tardio e ainda fraco da comissão de verdade, síntese de uma longa luta dos anistiados, em grande parte é responsável por esse retorno, que tem enfurecido os generais, clubes e torturadores militares de plantão. Mas não nos assustemos com as aparência do campo político e ideológico (divergência e disputa entre ex-guerrilheiros hoje no governo contra a crosta mais reacionária da elite militar, empresarial e midiática do país). O golpe não pode ser visto como um estado de exceção que foi batido pela nova constituição e pela “democratização”. Primeiro porque os resquícios jurídicos e práticos de suma importância resistiram à transição, e o que é mais preocupante, continuam a se desenvolver sobre novas formas e elevar seu nível de atuação. Segundo porque ambos os regimes estão ligados à reprodução capitalista em nosso país, em dois momentos diferentes internacionais e nacionais, de correlação de forças diversas, mas que tem ainda como estratégia central o desmantelamento das classes dominadas e organização das classes dominantes, sob a fachada da “nação”. E no caso brasileiro, a manutenção de sua posição oprimida no sistema imperialista, também sob a fachado de seguir os interesses da “nação”.

Esse panorama mais profundo muda por completo a leitura do golpe e da situação atual e suas aparentes divergências. É óbvio que o nível de repressão, e o formato institucional de boa parte do Estado brasileiro hoje não é igual ao da ditadura, marcada por um estado de exceção e de suspensão do jogo democrático muito mais explícito. No entanto, em aspectos muitos concretos, há uma continuidade: o legado de 64 ainda não acabou, sobrevive, mesmo o executivo não estando ocupado por militares. Aliás uma idiotice esperar que esses regimes voltarão hoje (como estão voltando pelo mundo) do mesmo formato! E a disputa democracia x ditadura, tão denunciada pelos revolucionários marxistas como uma falsa questão, um engodo, é uma disputa interna do campo do capital.

Dentro dessa retomada do tema da ditadura, um livro importante publicado pela Boitempo em 2010 merece destaque. O que resta da ditadura, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle traz artigos de estudiosos e especialistas do tema com o propósito de, ao analisar aspectos jurídicos, políticos, ideológicos etc., demonstrar a pertinência de ainda se lutar contra a ditadura. Apesar de ainda ficar preso no legalismo, caindo por isso na lama da democracia burguesa como redentora e única possível de remover as velhas vestes de exceção (e os lutadores pelo fim do regime sabem que não foram das leis que surgiram as mudanças, mas sim longuíssimas lutas e a força popular), o livro demarca vários fatos e realidades hoje naturalizadas que nada mais são que filhotes do regime militar agindo em plena luz do dia na “constituição cidadã” e nos “governos democráticos populares”.

Um dos pontos centrais do livro é a questão da militarização das polícias brasileiras e sua simbiose com as forças armadas, e concomitantemente a autonomia destas. As atuais criminalizações dos movimentos sociais, as aberrações jurídicas que denotam amplo abuso de poder das instituições repressivas, o imaginário ainda presente de igualar ação política de ação criminosa são alguns dos efeitos desse grande poder das forças militares inclusive constitucionalmente garantido – a muito mais praticamente pelas classes dominantes daqui e de fora. A vagueza do artigo 142, comenta Zaverucha em seu artigo, coloca as forças armadas como detentoras em última instância da ordem constitucional, pública, política, social e econômica, de garantir o funcionamento do executivo, legislativo e judiciário (p. 48 e 49). Aspecto típico de regimes não-liberais. A tese marxista de que a violência é o núcleo duro do Estado se torna clara como água em nossas terras. Como diz Marx no 18 brumário, na constituição burguesa sua universalidade vem sempre acompanhada de casos de exceção – logicamente exceção para os que não detém o poder.

O “legado autoritário” como diz o artigo de Zaverucha é real, presente, e com uma potencialidade de se aprofundar assustadora. A transição democrática se fez hegemonizada pelas classes dominantes nacionais, sob o signo de posição dominada a nível internacional, e a partir de uma frágil reorganização das classes dominadas tanto no país quanto na luta de classes mundial (vitória do lado ocidental na guerra fria, o grande motivo concreto dos golpes latino-americanos: impedir o avanço das conquistas proletárias pelo mundo). Assim o modelo adotado pelo estado brasileiro hoje carrega as experiências fundamentais das classes dominantes de décadas, experiências essas que conseguiram impedir, tardar, reprimir, cooptar e se necessário aniquilar fisicamente a vanguarda, os lutadores e apoiadores das classes dominantes. A orfandade de um partido do proletariado no Brasil nas últimas décadas é a prova cabal disso.

O peso e sistematicidade da repressão na história contemporânea (para não cair no inferno de terror e suplício que foi o período colonial) por essas bandas do sul do equador tiveram fortes traços fascistas – até mesmo materialmente, como é possível ver na era vargas e muller, com presença e apoio de agentes dos regimes nazi-fascistas, e a continuidade do aparato repressivo até a ditadura militar, e seu não desmantelamento até hoje. Essa é a forma que as classes dominantes precisam assumir para manter massas gigantescas sob o mais alto nível de exploração e ausência de direitos. Ditadura para a grande massa, democracia para a minoria: tese de Lenin mais atual que nunca.

Em artigo de Paulo Arantes no livro, de início, é perguntado o que resta afinal da ditadura. E seguindo a resposta de Tales AbSáber, simplesmente tudo – menos a ditadura, é claro (p. 206).

Por tudo isso, é dever de todo lutador não deixar essa marca de sangue para o povo brasileiro em nossa história que foi a ditadura se apagar. A sede de justiça não acabou, nem pelo passado, nem pelo presente. Além de rebater as teses que denunciam um suposto revanchismo, e tentam igualar a violência do regime à sua resistência (uma sessão de tortura não soma a brutalidade de todas as justas ações de resistência da luta armada), é preciso denunciar os partidos reformistas de esquerda que querem trazer a ditadura só como algo nostálgico, mas que na prática tem aprofundado a repressão e o Estado de exceção para o povo com a desculpa da segurança dos megaeventos. A utilização das forças aramadas na Copa, o funcionamento dos serviços de inteligência, a construção de leis de exceção e a utilização de antigas contra manifestantes, a carta branca que os policiais tem para reprimir e se necessário matar está na ordem do dia, e não falamos de 68. Isso demonstra como a diferença de regimes é superficial e não altera a centralidade do estado capitalista: é a luta de classes que define os contornos políticos historicamente existentes.

O capital continua aqui, e mais grave, em crise. Por isso a ditadura burguesa e seu terrorismo de estado continua, mais aqui ou ali, crescendo e se alimentando, e o passado se faz presente: sob novas formas, mas com a velha brutal violência. Diferente da cantoria imbecilizante da Globo de final de ano, o passado já começou.

A todos que tombaram na luta pelas classes trabalhadoras e contra o regime de exceção de 64 uma vida de luta e não lágrimas! Crescer a mobilização pela punição dos crimes da ditadura! Dar continuidade à resistência na opressão presente!

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