terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Entre o sonho e a realidade objetiva: a flânerie de Ezio Flavio Bazzo.


[Konstantinov]*
*Colaborador da revista “Brado!”, historiador.

Ilustração 1: Ezio Flavio Bazzo



Ao observar a figura do flâneur se abre a uma colocação teórica que apreende e interpela a cidade. Quem ou que é flâneur? Flâneur é um conceito vazio. A existência em si deste aventureiro que se joga ao percalço de Paris não é o aporte nuclear para entender a questão iniciadora e labiríntica: “É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?”1. A interseção entre a sincronia e diacronia temporal é esta mesma da “flanagem”, movimento que evidencia a fragilidade e fragmentação do espaço urbano. A urbe assim não é em si mesma, não é ontológica, mas pode ser analisada à luz de diversas temporalidades nela incrustadas pelo descolamento que o corte longitudinal torna possível. É neste marco, neste par-ordenado no eixo cartesiano situado nas coordenadas (0,0), onde está o flâneur: referencial vazio que auxilia a articulação da “flanagem”.
Tal articulação teórica ainda não explica ou dá resposta à questão iniciadora. Porém, ela virá aqui a seu tempo tendo claro que este artigo possibilita um encontro com a figura literária de Ezio Flavio Bazzo, literato marginal de Brasília. Se deixa claro aqui a “figura literária” visto que há dois Ezios. Este já mencionado, o da fabulação literária, o flâneur propriamente dito, e o escritor marginal que detêm a narrativa das obras diversas por ele publicadas.
Valeria observar levemente a “flanagem” realizada por Bazzo que esteve a realizar uma rapsódia Samuel Rawet2, ou vadiando na China3, ou perambulando nos subterrâneos do Conic4 “nauseabundo” como ele mesmo dizia, ou perscrutando os mortos em Paris como se obssesivamente os perseguisse em seu “roteiro turístico de cemitérios”5. Bazzo aqui é o flâneur por excelência digerindo por entre uma blasfêmia e outra uma colocação bem memorada e outra o rancor e as neuroses típicas do pequeno-burguês citatino contemporâneo. A cenografia ganha assim um ar marginal dentro das reflexões constantes da urbe. A questão do trabalho perpassa por um dos seus relatos:
“É imensamente revoltante passar pelos fundos das construções, ali na Asa Norte, lá pelas três horas da tarde, na hora em que o sol derrete o cérebro, e ver a dedicação e o martírio desses homens que dão suas vidas em troca de uns grãos de arroz e da promessa falsa de que o trabalho dignifica e empurra para a cidadania. (...)
(...) As calças suadas no traseiro, 120.00 reais, olheiras de abatimento, uma falsa seneridade na fala enquanto lá na calçada, um carro forte espera, para transportar ao banco os lucros do dia... Nos Ministérios, o tédio e a solidão tornam a jornada de oito horas ainda mais vil. O relógio, o calendário, a folha de ponto, a cumplicidade com governos que, de tão tenebrosos, nem sequer permanecem na história, tudo isso se chama trabalho. (...)
E é impressionante observar que praticamente todas as sociedades, tanto as primitivas como as ditas modernas, padecem deste mal! Do mal de trabalhar e de fazer-trabalhar! (...) Para isto, lógico, existem os sociólogos, os psicólogos, os administradores, os psiquiatras e os vigias que o condicionamento e a ordem, para que o teatro produtivo não se degenere em “vagabundagem”. No lugar da paixão, a produção!”6
De modo a cotejar com as devidas proporções todo este desprezo ora aristocrático, ora pequeno-burguês ao mundo do trabalho pode-se muito bem se encaixar na mesma dialética que Rouanet aponta sobre o fetichismo da mercadoria. Bazzo, assim como o flâneur, se depara com uma realidade objetiva indesejável onde o fetichismo da mercadoria ganha um tom aviltante e onde o esteticismo burguês de Ezio sublima a imagem do “operário-escravo”, do servo da honra pelo trabalho e pelo sacrifício, como uma antítese se si mesmo: o passante hedonista que a tudo denuncia e aponta, uma metralhadora verborrágica giratória por assim dizer. Este movimento dialético existe no sentido de a reafirmar a si mesmo, afirmar um eu. Este eu é o bazzo-flâuneur, investido de sonhos de grandeza e megalomania que podem ser compreendidos à luz do sonho da cidade que o habita. Visto por este prisma a pergunta iniciadora pode ser refeita: “ É a cidade que habita Bazzo ou é ele que mora nela?”.
Para Rounet a resposta seria no sentido, como foi exposto acima, de verificar que esta esteticização de Ezio sobre a paisagem do Conic, dos trabalhadores e da cidade ao seu redor são parte dos sonhos que habitam a consciência do bazzo-flâneur que estabelecem um relação expressiva com o corpo real da cidade. O sono repleto de sonhos de Bazzo caminhariam na utopia de suas realizações e nos os mitos da temporalidade do eternamente idêntico, das “fantasmagorias”.
A figura do bazzo-flâneur seria o agente privilegiado da enunciação e que realiza as fantasias aprisionadas na sua temporalidade real. A lascívia sexual irrealizada na uma vida de acadêmico frustado e esquecido despontam no sono povoado de sonhos:
Ilustração 2: Capa de "Lenin nos subterrâneos do Conic."

(...) A conheci no caixa eletrônico do Conjunto Nacional. Por acaso, sem nenhuma intenção. Estávamos na fila, nos olhamos, trememos dos pés à cabeça. Incrível. Ela bem mais jovem do que eu, uns vinte e cinco, no máximo. Aquele tipo de menina que você sabe de antemão o que leva por debaixo das roupas. Ali mesmo beijei-lhe as costas nuas. (...)
(...) Ela mordia minhas mãos minhas mãos e depois as levava para o meio de suas pernas. Abria com meus dedos a porta de seu tesouro para que eu sorvesse suas riquezas ... Dizia frases perdidas, apaixonadas e desconexas... Ah, e foi naquele momento que descobri que as mãos não foram, em hipótese nenhuma, feitas para o trabalho...”7
Logo reaparece o desprezo pelo mundo vil do trabalho presente na realidade objetiva onde as mãos cumpririam outro papel que não expresso no sono do bazzo-flâneur, o da produção material.O mundo material finca seus pés no Ezio real que projeta suas falastranices, seus ataques verbais e seu apetite sexual na utopia de seus sonhos.
A pergunta que não cala: seria inteligível este sonho? Tais indícios seriam passíveis de compreensão? Segundo o debate travado por Rouanet8 os sonhos são passíveis de interpretação e é exatamente onde o materialista histórico centra seu objetivo: o despertar do sono. Por entre os desejos utópicos de prazer do bazzo-flâneur o mito sempre deforma, falsifica e dissimula a realidade malquista. A seqüência das obras refletem um eterno escapismo das horas numa brutal fuga da realidade objetiva e a conseqüência permanência do mesmo:
- Ei, ei Bazzo você que contesta toda essa merda burguesa-intelectualóide, mas que ao mesmo tempo vive uma vida idêntica a de todos esses idiotas, no coração da
pocilga, me diga: você te esperança em algo e como proceder diante de toda essa palhaçada?(...)
-Você está certo de estar falando com um idiota, pedante e presunçoso, não é? Ou com um “orientador de noivos”?... Mas não seja cretino, essa é uma pergunta que só se faz a um guru iluminado ...(...)
- Guru, nada, não queira tirar o cu da reta . (...)
-Esse puto tem razão. Já que você insiste, -digo-lhe visivelmente chateado -vou recitar umas palavras do guru das limousines, preste atenção:
A esperança é fútil. Além disso , uma coisa é tão má quanto a outra . O importante é que você saiba de tudo e saia fora. Escorregue para fora sem fazer ruído. È isso que se chama rebelião.”9
O chamado à resposta encarnado na figura de um personagem decadente e solitário é um empurrão, um suspiro que desperta do sono que Ezio sufoca e faz calar. A metralhadora verborrágica é então engasgada em seu municiamento? Ao ser contestado em sua crítica logo se coloca na defensiva: é um questão de gurus, saia fora eis a rebelião, a esperança é uma futilidade. A utopia se esbarra com o mito da deformação estética que é construída na cenografia da urbe e sonho parece não querer despertar.
A conclusão que pode se aferir da reflexão estabelecida por meio deste artigo poderia enveredar por dois caminhos possíveis. Em sua primeira acepção a flânerie não consegue despertar do sono e fica retida numa eterna sublimação pequeno-burguesa que esteticiza a miséria e o proletário ao mesmo tempo que deforma sua utopia. Assim este flâneur brasiliense, estando na China ou nos cemitérios de Paris, não desperta nem individual ou coletivamente estando condenado ao eterno aprisionamento do mesmo, do repetível, do aparato da técnica que curiosamente ele condena tão duramente em seu lugar mítico de enunciação. Na segunda acepção tal como definiria Brissac10 nem a cidade, sem história, habita Ezio e nem Ezio, que não sabe mais ver, habita a cidade. Pois a “tendência no mundo moderno, da reprodução técnica, da cópia, é se apropriar das coisas.”11. Assim a construção da distância e estranhamento do familiar é falsa, os toscos engenhos paisagísticos não passariam de meros mecanismos de ilusão. É muito provável que a segunda concepção seja a mais correta e que flânerie de Bazzo não seja nada além da construção destes aparatos ilusórios que fabricam uma dimensão de distância que se quer existe mais. É o aprisionamento do sono, é mais do mesmo com novas ilusões, é literatura pseudo-marginal pequeno- burguesa escapista que, independente das concepções acima expostas, consegue falhar nas duas. É Ezio Flavio Bazzo em sua passagem infinita de um sono que, entre o sonho e a realidade objetiva, não consegue despertar.
1BRISSAC P. E ROUANET, P. S. “É a cidade que habita os homens ou eles são habitados por ela?” . In: Revista USP. Dossiê Walter Benjamin, set./out./nov. 1992. n. 15, São Paulo: EDUSP, 1992, p. 49-75.
2BAZZO, EZIO FLAVIO. Rapsódia a Samuel Rawet. Brasília: Anti-editor publicadora,1997.
3BAZZO, EZIO FLAVIO. Vagabundo na china. Brasilia: Lilith, 1991.
4BAZZO, EZIO FLAVIO. Lenin nos subterraneos do conic. Brasilia: Anti-Editor, 1999.
5BAZZO, EZIO FLAVIO. Necrocídio. Brasília: Da casa da Anta Editora, 1992. pg. 13.
6 BAZZO, Obr. Cit. pp. 46,47.
7BAZZO, Obr. Cit. pp. 84,85.
8BRISSAC P. E ROUANET, P. S. Obr. Cit. pp. 71.
9BAZZO, Obr. Cit. pp. 74.
10BRISSAC P. E ROUANET, P. S.. 72.
11BRISSAC P. E ROUANET, P. S. pp. 73

O drama da pequena burguesia na poesia brasileira: o caso de Drummond

[Augusto Machado]

                                                     

A época da ofensiva socialista mundial que foi o século XX conseguiu atrair para o campo proletário muitos elementos da intelectualidade. No Brasil são diversos casos de escritores que aderiram a causa, na forma de apoio, simpatia ou até mesmo pelo filiação ao Partido.  Um exemplo notório é o caso de Drummond. Mas que fim político levaram todos eles? Quão firmes eram as suas posições progressistas? A postura cambiante da pequena burguesia se  faz presente nessa questão como veremos a seguir.

Traços de uma biografia: a construção de uma personalidade itabirana

Drummond é um dos nossos maiores expoentes da poesia contemporânea “culta”. Suas estátuas de bronze em Porto Alegre e Rio de Janeiro, além de sua ainda grande popularidade, demonstram a importância desse poeta que foi cogitado ao Nobel enquanto vivo. Conhecido pelos seus versos livres e temáticas que envolviam preocupações existenciais, marcadas sobretudo pelo espanto e quietismo, através de conflitos entre o eu lírico frágil e pequenino e o “mundo grande”, nosso poeta é querido por muitos e odiado por outros, é estudado e vulgarizado, elogiado e denunciado.

Nasceu no início do século passado, em 1902, em Itabira, cidade que possuía “Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas. (em Confidência de um itabirano, Sentimento do mundo, 1940). Drummond provém de uma família tradicional de fazendeiros, de vida confortável, e sua infância e juventude é contada nos livros Boitempo (três volumes, lançados em 68, 73 e 79). Ali percebermos a construção da subjetividade drummondiana, as memórias mais marcantes e seus mais profundos temores e segredos. Esse período de sua vida Drummond inicialmente relata com carinho, mas em seguida busca demonstrar a dor e a “tragédia” de crescer e ter que se distanciar de casa e da família, do colégio jesuíta de dura disciplina, da descoberta da sexualidade, da vida coletiva, e de outros acontecimentos da subjetividade, que, no caso de Drummond, já tomava fortes tendências pequeno burguesa, enfermiça, individualista e, por isso mesmo, dramática - como não podia ser diferente por seu meio social. 

Formou-se em Farmácia mas nunca exerceu a profissão. Foi um rapaz boêmio em Minas: sobreviveu o terror de "virar adulto" e enfim se encaixa no "mundo dos homens". Nessa época, ainda jovem, aproximou-se de círculos literários e sob a influência de Mário de Andrade lança seu primeiro livro e sua obra mais ousada esteticamente Alguma Poesia, em 1930, ano que do outro lado do mundo outro extremado poeta do modernismo, Maiakovsky, atirava em seu próprio peito.

Em 34 vai para o Rio de Janeiro, trabalhando como servidor público no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Também cronista, escrevia para jornais. Não foi de todo solitário. Casou-se e teve uma filha, que morreria cedo, e tal fato desencadearia um suicídio melancólico e quase imperceptível: para de tomar os remédios para o coração e assim a vida lhe deixa do corpo que não a desejava mais.

Entendia-se como um homem de vida pequena, de papel pequeno, escrevia para afogar suas angústias e insuficiências, num tempo tão movimentado e violento, sobretudo politicamente. O mundo de Drummond, o movimentado século XX, exigia do homem histórico muito mais que contemplação e canto, os talentos comuns de um poeta e de uma personalidade sensível, mas comprometimento, intervenção, tomada de partido. Aqui, nesse período, “não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida.” (GRAMSCI, Os indiferentes). Esse grande chamado, de um mundo em emergência, de uma humanidade instável e em mutação, sem dúvida era a origem dos sentimentos do poeta. E também, graças ao seu ceticismo, comum de um agnóstico tristonho, o fez em muitos momentos de sua vida uma pessoa contraditória e hesitante, que por vezes rendia-se e recuava-se ao anonimato e à paralisia, apostando na não tomada de posição e no não enfrentamento, tanto por falta de forças, quanto por falta de esperança. Essa ambiguidade é vista claramente em sua relação com o marxismo/comunismo.

Travessia de Drummond pelo comunismo: a impossível identificação com o proletariado e a cooptação melancólica

De modernista "estético", nos anos 30, vai tranferindo-se gradualmente para uma poesia mais política e social. Nela, apesar da forte presença de um eu lírico rico e profundo em sua intimidade, os acontecimentos históricos tem forte destaque, ganham relevo e são objetos de preocupação e contemplação do poeta. Pode-se dizer que é o período, apesar de trágico e desesperador, de maior esperança e engajamento do poeta tímido de Itabira. Momento curto mas de grande valor artístico e político como veremos. Negá-la de todo seria apenas reforçar um obreirismo sem sentido.

Suas principais obras desse período político são do período da segunda guerra mundial, Sentimento do Mundo, de 1940, (onde ainda permanece um eu lírico mais incapaz e assombrado) e sobretudo A Rosa do Povo, de 1945. As duas obras são marcadas pela ocorrência da 2ª guerra mundial, pela ascensão e decadência do nazi-fascismo, do Estado Novo, e pela atualidade de revolução bolchvique que ameaçava tomar o mundo com sua Internacional. Aqui não se fará uma análise detida das poesias dos dois livros, somente buscaremos delinear, em meio aos medos, pessimismos e fatalismos típicos do autor, de sua classe e de sua época, a esfera de identificação do poeta com o comunismo e com o proletariado.

A atitude de Drummond nesse âmbito não muda muito: a ambiguidade permanece. Ora parece possível sua identificação e crença com a causa comunista como é visível em seu poema Nosso tempo, de A Rosa do Povo, onde diz na última estrofe, depois de analisar o caos da vida e do mundo moderno:
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.

Ou nas suas glorificações à batalha contra o nazi-fascismo travada em Stalingrado em Carta a Stalingrado de mesmo livro.

Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.
[...]

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!
[…]
As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.


Mas, ora um fatalismo voraz o consome como em Canção do Berço, de Sentimento do mundo: “Tudo acontece, menina / E não é importante, menina”. Tudo isso se passa sob um eu lírico profundo, questionador, angustiado e sobretudo pequenino, medíocre, que busca encontrar alguma forma ou caminho de colaborar com o mundo dos homens do qual se sente distante. O mundo dos homens, “mundo grande”, do qual o eu lírico teme e se sente diferente, é o mundo histórico, o mundo da urgência da ação, a vida pública, o espaço político, que parece tão grande, tão violento, mas que o chama. Diante das injustiças do mundo, o eu lírico deve esforçar-se para caminhar para o mesmo e engajar-se na busca coletiva, "de mãos dadas", de algo melhor já que o mau impera (a guerra, a fome, a ameaça fascista, a vida alienada etc.).

É nesse impasse, que reflete a própria vida do autor à época, é que a poesia de Drummond desse período se prende. Seus versos são confissões de um homem contemporâneo de seu tempo. Demonstra as angústias de uma intelectualidade progressista que sente dificuldades em assumir um posicionamento firme diante das trincheiras da luta de classes. 

Outro exemplo que clarifica bastante o desespero (e desejo) do autor diante desse impasse é o poema Operário no Mar, de Sentimento do mundo, onde questiona sua identificação com o proletariado, em meio a um sentimento contraditório quase absurdo, mas que ainda guarda uma esperança:

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei? (grifos nossos)

Aqui percebemos o impulso progressista e até mesmo sincero (de fato há uma diferença irredutível entre o pequeno burguês e o proletário), mas ao mesmo tempo as limitações de classe e posição social e subjetiva do autor; o reconhecimento da causa, mas o sentir-se inútil para a mesma.

No ano de 45, Drummond resolve entrar na vida política e começa a escrever na Tribuna Popular, jornal do PCB, e ingressa na mesma sigla. Nesse período outros escritores de sua geração também entraram na fileira do partido, como é o caso de Jorge Amado e Graciliano Ramos, nomes cuja obra é classificada mais fortemente como “comunista” (pelo menos em determinadas obras), onde a causa política e social aparecem de forma mais pura e menos subjetiva/individualista como na de Drummond.

Mas esse passo e avanço para o "mundo dos homens", que clamava por um posicionamento mais firme do autor, logo seria abandonado de maneira arrependida. Fica só 6 meses no Partido sai por pressão teórica e política (tendo como apse o famoso caso de suposta agressão física por parte do Partidão durante a realização de uma ata na Associação Brasileira dos Escritores) e cada vez mais caminha para o reacionarismo e a apatia política. De poeta social, vira um poeta metafísico nas décadas seguintes, pairando sobre o espírito, mesmo a história continuar o chamando: em plena ditadura civil militar no país, sua poesia nada denuncia, e sua pessoa não toma parte de nada. O homem pequenino fecha-se em sua própria casca, assombrado e descrente com o mundo exterior. Aqui o tênue laço do poeta com a causa é perdida e sua posição atrasada de pequeno burguês se torna efetiva. O fatalismo da trajédia pequeno burguesia se confirmava. A identificação com o proletariado que outrora parecia poder acontecer é enterrada de vez. 

Em uma entrevista (Entrevista de Carlos Drummond De Andrade a Luiz Fernando Emediato, publicada no Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo em 15 de agosto de 1987) perto de sua morte, Drummond demonstra enfim a perda completa de seu posicionamento político do período de 40-45:

“O senhor apoiou o movimento de 64?
Drummond - Não apoiei não. Eu fui contra João Goulart, achei que a derrubada dele foi salutar. Mas uma semana depois já haviam praticado tais desmandos que não pude apoiar. Posso ter pecado por omissão por não ter denunciado logo, mas não apoiei.
O senhor já foi convidado para visitar Cuba, como outros intelectuais que lá estiveram e até escreveram livros a respeito?
Drummond - Nunca fui, não. Aliás, uma vez eu estava posto em sossego, cerca de meia-noite, e me telefonou o Chico Buarque de Holanda, pessoa que admiro muito, mas com quem não tenho nem contato. Gosto da música dele. Telefonou e disse: "Preciso conversar com você". Eu disse: "A esta hora da noite? Meu Deus, aconteceu um drama, para o Chico me procurar!" Mas disse. "Pois não, venha". Apareceu em companhia de um cidadão moreno, magro. Era já meia-noite e meia. O cidadão falou meio enrolado, era o embaixador da Nicarágua no Brasil, que tinha lido uma crônica minha no jornal e achava que eu estava mal informado sobre o país dele. Ah, tenha paciência! Eu tenho noção do que escrevo, compreendeu? Não sou partidário dos Estados Unidos, longe disso, acho a agressão à Nicarágua uma coisa estúpida. Mas não se pode negar que a Nicarágua é uma ditadura. Eles fecharam o La Prensa, onde tenho amigo, o poeta Pablo, Antonio Cuadra. E então falei para o Chico: "Tenha paciência"!
O senhor tem um poema, Favelário Nacional, em que diz que é difícil ser irmão das pessoas, ser solidário.
Drummond - Eu acho muito difícil. Fomos criados para sermos irmãos de nossos irmãos, e mesmo assim olhe lá. Somos irmãos de nossos irmãos e de nossos amigos - os demais são sócios, indiferentes ou inimigos, competidores. Se eu quiser ser irmão de um favelado eu acho que ele me cospe na cara.”

O posicionamento dos intelectuais provindos da pequena burguesia pode ser entendida concretamente com o exemplo de Drummond. O vislumbre progressista pode ser um fugaz momento, podendo dar lugar a um reacionarismo e conservadorismo dos mais explícitos. Lidar com esses "vai e vens" da pequena burguesia desde sempre foi um problema enfrentado pelos trabalhadores e revolucionários na sua luta. Um remédio não há: não se pode afirmar muita coisa sem avaliar numa determinada conjuntura o comportamento e papel de setores da pequena burguesia e da intelectualidade. De modo geral, esforço não sectário é o de conquistar os setores progressistas para a causa. Mas, se os mesmos não atenderem ao pedido da história e preferir por covardia ou por incapacidade ser peso morto do progresso e da emancipação dos trabalhadores, os próprios, mesmo sem querer tomar partido, decidirão seu lado na prática: o do inimigo.

É o que partido que se dizem socialistas não compreendem por mero oportunismo, como é o caso do PSOL de Leandro Konder, um de seus fundadores, antigo PT e PCB, que no caso Drummond – PCB, fica do lado de Drummond1 (KONDER, 2009, p. 172-3) e de sua ambiguidade num período histórico de extrema urgência e importância. Apoiando a prática pequeno burguesa dentro dos partidos comunistas Konder parece pedir mais paciências com os elementos mais atrasados da pequena burguesia e mostra sua linha política e de seu partido, atrasadas e cheias de pompas intelectuais.

Mas, idenpedentemente dos artistas e de suas fragilidades, suas obras, eternas, ficam, ganham vida, e dizem por si só.




1 KONDER, Leandro. O marxismo na batalha das ideias. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 172-3.

Apontamentos sobre "Para além do capital" de Meszaros: rumo a uma teoria da transição?

[Augusto Machado]

O Húngaro que agradou o marxismo tupiniquim

O "amado" Meszáros (esquerda) em evento da Boitempo ao lado de Valério Arcary, dirigente do PSTU

A obra do filósofo húngaro Istvan Meszaros tem tido boa receptividade no Brasil nos últimos anos. A partir de várias publicações de suas principais obras no Brasil na década 00, Meszaros é uma das principais referências do marxismo contemporâneo no Brasil. Sua magnum opus é Para além do capital: rumo a uma teoria da transição[1] (original de 1994), recentemente publicado (2002) no Brasil, sob a coordenação de Ricardo Antunes (Unicamp/PSOL) e tradução de Cezar Castanheira e Sério Lessa (UFAL). De grande repercussão no país a obra é um apanhado de vários textos e livros seus produzidos durante décadas.

É bem possível que seu sucesso aqui seja desproporcional, se comparado a outros países do norte. A utilização do autor aqui provém tanto da academia, quanto pela esquerda (PSOL, PCB, PSTU, mas também PT/PCdoB e afins). Não é por menos. Sendo a leitura do marxismo no Brasil pós anos 80 influenciada fortemente pela leitura via filosofia hegeliana, a partir das diversas correntes do marxismo ocidental, sobretudo Lukács, e pelo gramscianismo, Meszaros, pode ser tido como um filho tardio de uma corrente que outrora fora definida como marxismo de rosto “humanista”, oposto ao famigerado monstro ideológico ortodoxo-soviético do oriente. Aluno do próprio Lukács; integrante da chamada escola de Budapeste;  de formação acadêmica invejável; aparentemente próximo das posições políticas de Rosa Luxemburgo: o filósofo é visto por muitos como uma atualização do marxismo.

Marxianos e cia: deixando o século XX órfão

Enfocaremos aqui as temáticas e polêmicas que envolvem o problema da transição socialista na obra do autor.

O autor tem sido muito usado pelo o que ultimamente tem se intitulado como “marxianismo”, ou corrente marxiana, caracterizada pela ênfase nos escritos do próprio Marx em detrimento dos escritos marxistas de pensadores posteriores. Uma espécie de ortodoxia mais ferrenha e de novo rosto, os marxianos pretendem alcançar o mais puro do marxismo da leitura integral e totalmente fiel de Marx, sendo qualquer alteração consequente na teoria marxista um desvio, até mesmo considerando absurdamente alguns escritos de Engels nesse sentido. Focam muito mais as obras iniciais e não publicadas(Manuscritos Econômicos Filosóficos, Sagrafa Família, Ideologia alemã) do que propriamente os escritos mais centrais e maduros,como o próprio O Capital.

Obviamente essa nova corrente, até agora quase que puramente acadêmica do marxismo (no Brasil, expressa nas novas cadeiras e linhas de pesquisa sobre o “trabalho”, de forte influência da “ontologia” lukacsiana), se impõe pela erudição e pela exegese dos escritos originais de Marx e contra o marxismo “chulo” e “ativista” do movimento operário. No âmbito da política o marxianismo se conforto na crítica "esquerda de oposição", social-democrata de cara nova, dos Fóruns Sociais Mundiais da vida. Já na análise histórica e no espectro ideológico, essa corrente se aproxima em muitos pontos dos paradigmas e críticas trotskistas/anarquistas/autogestionárias/conselhistas/luxembarguistas (que por sua vez são próximas das análises liberais, conservadoras etc...). Um exemplo claro é a proximidade de análise das experiências socialistas do sec. XX. Todas essas correntes são unânimes em negar enquanto socialista tais experiências, cada uma com uma justificativa: burocratização, ditadura, estatismo etc. Os próprios marxianos se utilizam até do linguajar mais gasto do anti-comunismo americano de guerra fria para tal fim, vide os termos chaves e neologismos “stalinismo, totalitarismo, ditadura...”.

O objetivo principal do marxiano Meszaros, hoje um grande referencial teórico para essas correntes no Brasil, é, sobretudo em sua obra da qual será analisada brevemente a seguir, Para além do capital, limpar o terreno da teoria marxista de suas falhas e enganos, atualizando-a para o século XXI. Ou seja, denunciar os desvios do marxismo que o distanciaram do Marx em pessoa, fazendo um balanço de toda a prática e teoria socialista que ocorreu após seu "criador" e rejeitar as experiências socialistas como um todo. Ir rumo a uma (nova e verdadeira) teoria da transição, para além do capital.

A tese central e, pelo seu enfoque, “original”, que Meszaros repetidamente (e às vezes enfadonha e prolixamente, vide seu catatau de mais de 1000 páginas...) tenta nos demonstrar é que: a obra de Marx é uma crítica ao capital e não somente ao capitalismo, sendo este só uma forma social e política daquele se manifestar. Entendendo o capital como modelo sociometabólico que determina tanto os seus microcosmos e seus macrocosmos respectivos a partir de seus imperativos de expansão-acumulação, quanto suas personificações (subjetividades das determinações objetivas alienantes), este seria muito mais profundo e difícil de ser eliminado social e historicamente. Pois o capital não se expressa somente o regime burguês, mas todo e qualquer regime em que se mantenha a hierarquização e imposição vertical no mundo da produção (dominação exploradora e alienada sobre o trabalho) a partir da divisão social do trabalho e da separação entre os produtores diretos e meios de produção, assim como entre produtores e o poder político sobre a produção social, que se expressa na tríade ESTADO-CAPITAL-TRABALHO. Sendo assim o capital (e seus consequentes complementares) poderia sobreviver, como sobreviveu na URSS (que nesse caso se torna pós-capitalista/pós-revolucionária, segundo a definição do autor, mas ainda não socialista), mesmo após revoluções ditas anti-capitalistas no sentido original do termo.
Aqui ficamos próximos a outra tese “marxiana” do anti-trabalho de Kurz, em seu O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial[2]. Tendo um ideário muito próximo na avaliação do “socialismo” (entre aspas para esses autores) do sec. XX, só que de maneira menos ortodoxa, Kurz a partir do desenvolvimento da teoria crítica iniciada pela Escola de Frankfurt, ambos jogam no mesmo saco o socialismo realemente existente (entendido não como uma nova formação social, mas sim um sistema preso à forma-mercadoria provindo de uma revolução burguesa/moderna aos avessos, mas predominantemente estatista como as “originais”), o capitalismo e o nazifascismo como sociedades produtoras de mercadorias/sociedade onde impera o capital e por isso mesmo fetichizadas no mesmo sentido (na louvação do trabalho abstrato, continuidade da lei do valor, etc.). Uma revolução social, nessa perspectiva dos autores, que é compartilhada por muitas outras correntes socialistas dissidentes que negam as experiências século XX, deveria abarcar uma transformação radical de todas as estruturas sociais, de uma vez, e em todos os lugares (debandando o capital, o trabalho, o estado, e todas as classes consequentemente), e não só uma revolução política de tomada do poder do estado ou “expropriação dos expropriados”, como foi na versão socialista soviética. A revolução social deve buscar ao máximo formas de não possibilitar nenhum risco de se retornar ao capitalismo como ocorreu no final do séc. XX na URSS, ou dessa sociedade pós-revolução se tornar apenas mais uma forma nova de manifestação do capital/sociedade do valor, com novas personificações (Estado-Partido etc).

Para Meszaros, assim como para outros autores como Kurz, não era possível nem no tempo de Marx, nem no tempo de Lenin e seu elo mais fraco, realizar uma revolução realmente socialista e incontornável, pois o capital ainda não se apresentava em uma crise estrutural: o modo de produção ainda não se tinha esgotado no sentido original de Marx em seu prefácio de 59[3]. Ou seja, no século XIX e XX, independente dos sacrifícios e esforços dos revolucionários e das massas, ainda existiriam possibilidades de exportar contradições e assumir novas formas de salvar acumulação, através da intervenção estatal, por exemplo. Sendo assim: 1) não havia condições objetivas para uma revolução e 2) estava impossibilitada a implosão do sistema como um todo, já que o próprio capital ainda não estava em uma crise estrutural. É a partir principalmente da falência do keynesianismo e da sua “solução” monetarista, assim como da falência da via do socialismo de mercado da URSS, que abre-se espaço para a atualidade histórica da revolução socialista, já que o capital, agora mundialmente presente, em sua crise estrutural atinge seus limites e contradições absolutas e ameaça a sobrevivência humana no planeta. 

Traços de uma “teoria da transição” que Marx aprovaria

Com a atualidade da revolução em mãos, e na certeza de uma crise inescapável do capital, apesar desse processo não ser linear, a esquerda precisa de um novo paradigma de atuação já que seus modelos teóricos e organizativos majoritários do sec. XX falharam terrivelmente. As duas faces da mesma moeda da chamada defensiva socialista, a social-democracia (gradualista, atuação parlamentar) e o leninismo-stalinismo (voluntarismo que não rompe com o capital e desemboca num socialismo de mercado), a partir de sua lógica binária de braço político e braço de massas/econômico, mostraram-se fracassadas para construir um projeto positivo, mundial e emancipador. A teoria nova da transição então se foca no retorno a Marx e em muitos pontos na negação de Lenin (e na sua substituição por Rosa): devemos construir uma “consciência comunista de massa”, abandonar as lutas na linha de menor resistência do capital e o fetiche do partido hierárquico, para o próprio bem e sobrevivência da humanidade, a partir de uma organização pluralista de atuação extraparlamentar que busque a não reprodução da ditadura leninista que se voltou “contra o próprio proletariado” ou do reformismo conciliador da social-democracia. Grande desafio... como o autor respode?

O autor não dá maiores indicações, que sejam claras e concretos, apontando politica e sociologicamente os agentes e as formas dessa luta de classes rumo à revolução. Tudo permanece no campo da abstração da objetividade. No final, a luta será no marco do trabalho versus capital total, um inimigo invisível. Poucas vezes o autor se refere ao termo burguesia, por exemplo. A política é possível assim? Essa visão é típica também do pensamento de Kurz: averso ao que acusa de “sociologismo” do “marxismo de movimento operário” que “em vez de criticar o próprio capital, passou-se a criticar os capitalistas que tinham que aparecer como sujeitos pessoais da relação social da mercadoria, que na verdade não tem sujeito algum”[4], o mesmo afirma, não apontando nenhuma estratégia revolucionária concreta, que: “O verdadeiro despotismo da modernidade é o absolutismo do dinheiro, sem sujeito, isto é, aquele do trabalho abstrato e de sua exploração em empreendimentos econômicos.”[5] Sem saber diferenciar as especificidades da teoria de um lado e da política de outro, esse autores se afundam no imobilismo.
 
À guisa de conclusão: Meszaros, o marxiano emergente, é (in)dispensável?

As críticas de Meszaros, e de seus irmãos legítimos ou não, são justas? Suas propostas, viáveis?

Fatores objetivos, mas, por favor, nem tanto assim...

Em primeiro lugar, deve-se observar que a crítica de Meszáros ao século XX e às experiências da alternativa socialista do passado para a construção de uma nova teoria da transição é limitada, como na maioria das críticas trotskistas, anarquistas e afins, às experiências da URSS. Elas apontam problemas graves e verdadeiros, porém, de maneira distorcida, por isso, não devem ser consideradas no final das contas. 

O debate das limitações da URSS não é novidade. As propostas de socialismo e de transição, no século XX, iniciaram uma verdadeira guerra interna do socialismo (que muitas vezes chegaram às vias de fatos...). Essa disputa, que acabou com o retorno da maioria dos países ao capitalismo "puro", contribuiu pelo menos para uma elevação da consciência dos comunistas. Hoje não existe comunista sincero que não busque olhar criticamente a experiência soviética. 

Mas olhar "criticamente" é uma coisa, aplicar o revisionismo, a difamação histórica e se aproximar da contra-revolução ideológica é outra.

Meszaros, por exemplo, assim como muitos de seus comparças, desconsideram quase que por completa à experiência do socialismo na China, e suas diferenças e oposições ao modelo soviético, sobretudo depois da subida de Kruschev ao poder, símbolo da consolidação do revisionismo soviético. Esse fator de cabal importância para pesar a teoria e prática socialista do sec. XX normalmente é esquecido ainda mais na esquerda brasileira. Para Meszaros, e tem-se essa impressão ao ler seu livro principal, a China não existiu: nenhuma avaliação política e econômica séria é realizada. Para variar, e deslocar sua incapacidade de considerar a experiência chinesa e seus frutos, o autor joga-a no saco de sociedades pós-revolucionárias, de molde político “stalinista” (sic) que sempre acaba em retorno ao capitalista. Essa visão desconsidera o esforço de vários autores marxistas[6] que tentaram demonstrar os avanços chineses principalmente na busca de superação do Estado e da divisão social do trabalho. A Revolução Cultural, necessidade já anunciada por Lenin para romper com vícios de outros sistemas anteriores ao socialismo, no caso chinês, foi um exemplo máximo disso que é desconsiderado pelo autor. A tendência de levar em consideração só a URSS empobrece a teoria e distorce a história. E mais: é oportunista pois busca, de maneira ahistórica, forçar uma interpreção tipicamente anti-comunista do discurso hegemônico do pós-guerra.

Por outro lado sua crítica se diferencia em muitos pontos (e nisso Meszaros avança) das simplistas críticas subjetivistas ou voluntaristas sobre a URSS, que se limitam a culpar a burocratização, o Partido etc, sem levar em conta as condições materiais-objetivas que levaram à derrocada e ao fracasso a tentativa soviética no final das contas, além da ausência de uma teoria completa da transição no marxismo (vide principalmente o capítulo 23 do livro). O mesmo viés progressista por um lado, pode-se encontrar também em Kurz, que escapa das críticas subjetivistas e do personalismo ao afirmar que é errôneo pensar que existiam alternativas ao passado, alternativas que se baseavam pelo crivo reducionista de escolhas "certas" ou "erradas" que levariam a experiência da alternativa socialista sobretudo do séc. XX para um caminho completamente diferente[7]. Da mesma forma o autor diz que “os céticos e críticos socialistas marxistas, que na União Soviética foram fisicamente liquidados pelo aparato stalinista à maneira jacobina, repetindo-se o exemplo da Revolução Francesa, nem tinham, no entanto, uma alternativa histórica a oferecer, nem estavam em condições de explicar em conceitos claros o processo social que estava se realizando diante de seus olhos. A tendência trotskista, que contava com uma “revolução proletária no Ocidente”, por considerar impossível o socialismo em um só país e especialmente na Rússia “subdesenvolvida”, enquanto o Ocidente cumpria as condições objetivas e subjetivas, foi uma mera ilusão.”[8]
 
Mas ao mesmo tempo em que Meszaros considera os fatores objetivos, posicionando-se de maneira avançada para um justo balanço do passado das tentativas socialistas, sua crítica permanece confusa e não consegue abarcar uma dialética segura: ora afirmando que o socialismo pleno só é viável mundialmente (logo o caso do fracasso da URSS seria uma limitação objetiva), e por outro lado culpa a direção leninista-stalinista por não alcançar o socialismo, mesmo que a força das circunstâncias (país agrário, parca industrialização, guerra civil, boicotes, invasões imperialistas etc...) estivesse forte (capítulo 22). Ou seja, a derrota da tentativa soviético era inevitável pelas circunstâncias ou poderia ter vencido caso houvesse uma mudança de direção política? Mészaros prefere ficar com os pés nas duas canoas: culpa os “pregadores” socialismo de um só país, "expressões do capital", e posteriormente os livra da culpa. Aqui um auxílio conceitual, não tão usado por Meszáros com o objetivo de condenar toda a experiência da URSS, poderia ser útil: a diferenciação entre socialismo e comunismo, ou entre vitória completa do socialismo, e vitória definitiva[9]. Ou como dizia Mao, estágio inferior e estágio superior[10]. Os defensores soviéticos da tática conhecida como o socialismo de um só país, em oposição à lunática e inconsequente revolução permanente trotskista, nunca afirmaram, fora os revisionistas pós-Kruschev, a possibilidade de alcançar o comunismo num só país, mas sim ser possível com o avanço das forças produtivas e do modo de propriedade socialista alcançar a hegemonia das características socialistas no campo da economia, ao mesmo tempo que este serviria de base material e militar de auxílio para que a revolução não concluída se completasse nos outros países. Os recuos necessários naquela conjuntura objetiva-material caótica, nomeados por Lenin de Capitalismo de Estado, deixa bem claro que ninguém afirmava ser uma sociedade ainda com assalariamento e Estado, além de cercado pelo mercado capitalista, de plenamente socialista (comunismo): todos sabiam da necessidade de se completar a vitória do proletariado sobre todo o planeta. Como diz o economista soviético G. A. Koslov “Se o partido afirmasse a tese da impossibilidade da vitória do socialismo na URSS antes da vitória da revolução mundial, isto poderia gerar uma série de medidas erradas e aventureiras na política externa, bem como a estagnação no trabalho de construção socialista interna, o que acarretaria por sua vez uma pesada derrota para o movimento revolucionário mundial. Mas o Partido Comunista partia de que o meio mais poderoso de revolucionar as massas populares nos países capitalistas seria a construção com êxito do socialismo na URSS, uma vez que a URSS era a base da revolução mundial. O exemplo da URSS infundia a todos os trabalhadores a crença na vitória da revolução em todo o mundo, mobilizava as massas para a luta revolucionária.”[11] E não fica claro essa necessidade ao perceber a crise da esquerda após da quedado bloco socialista? Nesse ponto, independente dos erros programáticos, táticos, estratégicos e teóricos do Komintern, fica claro a necessidade naquele contexto da continuidade da construção do socialismo com todos os recuos necessários no campo da economia, mas nunca largando mão o poder, ou seja sem largar mão que as classes trabalhadoras estivessem no poder (ditadura do proletariado com o campesinato). 

Meszaros por vezes parece não levar em conta a situação impossível que a URSS estava posta, materialmente, e que os esforços heróicos de Lenin e seus seguidores são no sentido de não esperar pacientemente reformas ditas nacionais-burgueses sob a hegemonia da burguesia e do imperialismo, para que só aí se crie possibilidades materiais para o socialismo (argumento dos dogmáticos e ortodoxos da segunda internacional). Lenin sabia que “aqueles que esperam pelas condições objetivas da revolução irão esperar para sempre”[12]; que existe a necessidade de arriscar quando todas as portas se fecham. Estando num país periférico na era imperialista, e dada a consequente falência da burguesia local, o seu “voluntarismo” político correto naquela situação, era uma possibilidade, mesmo que não vingasse (e sabia-se as limitações caso a revolução alemã não explodisse), menos pior que não agir historicamente e a não tentativa de construção do socialismo. Como dizia Lenin “não é possível avançar sem caminhar para o socialismo”[13]. O modelo político fixo de Meszaros, e também utópico, já que não leva em conta as dificuldades que a prática revolucionária.

Meszaros contudo não abandona a noção de ditadura do proletariado, mesmo a fustigando várias vezes. Com uma análise realista e sincera, que por vezes se distanciam do otimismo de Marx de certos períodos, concorda que diante da fragmentação da classe trabalhadora, e as contradições impostas no imperialismo, uma fase de transição sem uma instância política firme não é possível, diante da complexidade e do prolongamento provável desse período. Os riscos são vários, como a própria teoria leninista nos adverte, mas a necessidade dessa estratégia está no fato de que o fim da divisão social do trabalho, e consequentemente a queda do capital, não se pode dar de uma vez, mas através da modificação estrutural mediatizada da sociedade, o que significa bases materiais que possibilitem tal modificação e uma contínua ação política e cultural sobre as massas. Denunciando o simplismo daqueles que revindicam a estrutura da Comuna ou outras experiências mirradas de “democracia radical” para resolver toda a gama de problemas em escalas nacionais que essa questão da maior complexidade traz, questão que também envolve as resistências e contra-revoluções, Meszáros reafirma a necessidade do proletariado se organizar num Estado, mesmo que esse “pareça por vezes ir contra a sua classe” pois sem o mesmo, seria inviável o proletariado tornar-se classe dominante e concomitantemente destruir as estruturas sob as quais a sociedade de classes está posta. A passagem por um possível terror e corrupção, estes sendo uma extrapolação da velha forma para engendrar um novo conteúdo (só alcanço algo via seu oposto, quando forço os limites deste), são necessidades de mediação que a dialética sempre exigiu: entendendo aqui dialética diferente holismo ou dialogismo, onde não há categorias determinantes e, por isso mesmo, vias necessárias. Porém, o autor sabiamente alerta sobre as lacunas da teoria revolucionária marxista sobre o período de transição que ainda é preciso avançar para não cair em círculos viciosos e em retroalimentações, entendendo que “o Estado só pode ser desmantelado na mesma proporção em que a própria divisão social do trabalho herdada seja correspondentemente modificada”[14]. Por isso o desafio marxista é, com a ditadura do proletariado, minar a fragmentação e contradições da classe trabalhadora, fortalecendo-a sobretudo subjetivamente, e desenvolver e reformular as forças e relações de produção dando bases para o fenecimento do Estado, já que as classes fenecerão com a derrota da burguesia/vitória do proletariado.

Por outro lado e contraditoriamente, podemos encontrar um tom bastante diferente em outras partes do livro, possivelmente escritas em época diferentes, que impossibilitam sua real e concreta posição do autor. Um Meszáros pessimista e confuso afirma, contrariamente, sobre a estrutura política da ditadura do proletariado que “é porque o trabalho não é abolido que o antagonismo se intensifica, criando uma nova forma de alienação [e assim] […] o proletariado volta sua ditadura contra todos os indivíduos que constituem a sociedade, inclusive os proletários” (p. 1026)[15] [aqui o autor faz referência a noção leninista de “democracia para a maioria, ditadura para a burguesia”]. No final, ficamos num beco sem saída (se o Estado não acaba com o trabalho, e não é possível abolir o trabalho com o auxílio do Estado, que fazer?). Vemos então que há poucas esperanças de resolver as complexidades da reestruturação social, e nos resta esperar o amadurecimento das condições objetivas e condenar o “socialismo realmente existente” que de nada significaram para o caminho em direção à emancipação... Essas posturas dicotômicas, a falta de utilização de mediações, tornam o prédio de Meszaros um elefante branco, "rebuscado" mas pouco operante. Teorica e praticamente (eis o que importa) inviável.

Menos objetividade, mas, por favor, nem tanto assim...

Sobre o seu marxianismo, mesmo concordando que a obra de Marx não foi concluída em muitos pontos pelo próprio e a mesma não contempla várias dinâmicas do capital da era imperialista, Meszaros e os marxianos não rejeitam quase que nenhuma vírgula de Marx. Os mesmos que chamam o marxismo-leninismo de religião/dogma, ou fruto do “culto à personalidade”, não estariam caindo no mesmo "erro"? Tentando desesperadamente, para ser aceito pela esquerda pequeno-burguesa e pela academia progressista do pós-queda do muro, os marxianos, pintando-se de científicos, negam o legado e experiência proletária socialista do sec. XX, com seus erros e acertos justificáveis, taxando-a confortavelmente para se livrar da herança de “contra os ideais de Marx”. No caso de Meszáros o desespero chega ao extrema de comparar Stalin ao ultraliberal Hayek, sendo ambos inimigos, no fundo, semelhantes, pois são contrários à teoria emancipatória e "anti-alienante" de Marx. De acordo com Zizek, essa lógica dos marxianos deve ser abandonada por completo: “uma das armadilhas mais enganosas no caminho dos marxistas é a busca do momento da queda, em que as coisas tomaram a direção errada na história do marxismo: terá sido o Engels tardio com sua compreensão mais positivista/ evolucionista do materialismo histórico? Terão sido o revisionismo e a ortodoxia da Segunda Internacional? Terá sido Lênin? Ou o próprio Marx em seu trabalho posterior, depois que abandonou o humanismo da juventude (como certos “marxistas humanistas” alegaram há algumas décadas)? Todas essas questões devem ser postas de lado. Não há motivo para controvérsia: a queda deve ser inscrita nas próprias origens. (De modo ainda mais claro, essa procura do intruso que infectou o modelo original e colocou em marcha sua degeneração só pode reproduzir a lógica do anti-semitismo.) Isso significa que, mesmo se melhor, especialmente se – submetermos o passado marxista a uma crítica implacável, primeiro teremos de reconhecê-lo como “nosso”, assumindo inteira responsabilidade por ele, e não nos livrarmos confortavelmente do “mau” resultado das coisas por atribuí-lo a um intruso estrangeiro (o “mau” Engels, demasiado estúpido para entender a dialética de Marx, o “mau” Lênin, que não compreendeu a essência da teoria de Marx, o “mau” Stálin, que estragou os nobres planos do “bom” Lênin etc.).”[16] Essa é uma posição justa, não dogmática ou subjetivista/personalista de assumir a história da luta da classe proletária e de sua teoria máxima, o marxismo. O “erro” deve ser encontrado nas entranhas mais profundas, nas origens, da teoria ou da realidade/conjuntura e assumido enquanto “nosso”, sendo também da responsabilidade de todos corrigi-lo de maneira sincera.

Assim, a leitura a ser feita, na busca da universalidade do marxismo, não é a aplicação literal do original/ortodoxo, ad infinitum, mas sim essencialmente a “traição” que se equivale a uma atualização/superação, pois “da mesma forma que Cristo precisou da “traição” de Paulo para que o cristianismo emergisse como igreja universal (lembrar que, entre os 12 apóstolos, Paulo ocupa o lugar de Judas, o traidor, substituindo-o!), Marx precisou da “traição” de Lênin para levar à prática a primeira revolução marxista: é uma necessidade inerente ao ensinamento “original” submeter-se e sobreviver a essa “traição”, sobreviver a esse ato violento de ser arrancado de seu contexto original e lançado em cenário estranho em que se deve reinventar – só assim nasce a universalidade. […] Esse é o movimento da “universalidade concreta”, essa radical “transubstanciação” pela qual a teoria original tem de reinventar-se em novo contexto: só quando sobrevive a esse transplante pode a teoria despontar como efetivamente universal”[17]. Esquecendo da sofisticada dialética de Mao (apud Zizek), afirmando que tudo deve se focar na luta/dialética somente entre capital-trabalho, como dizia o velho Marx, Meszáros esquece que “é precisamente na particularidade da contradição que reside sua universalidade”[18].
Essa leitura academicista, a do marxianismo, e politicamente desonesta, significa um retrocesso à teoria marxista, pois a limita à interpretação de Marx “em pessoal” tudo que aparecer na ordem do dia. As obras e análises políticas, em vez de se basearem na análise materialista e dialética da realidade social, se tornam quase um questionário ao fantasma Marx. Todas as respostas que forem contrárias às suas citações, serão errôneas. Com isso não se está afirmando a desatualização de Marx, pelo contrário: está se combatendo o fetiche personalista na teoria marxista, que não pertence a um indivíduo (que obviamente a formulou inicialmente), mas sim a uma classe, historicamente delimitada e em constante reconstrução na prática revolucionária. De acordo com Althusser em suas Notas sobre os AIE: “Existe, frequentemente, a crença de que uma ideologia como esta [teoria marxista] resultou de um ensinamento dado por certos intelectuais (Marx e Engels) ao movimento operário, o qual a teria adotado porque se teria reconhecido nela: dever-se-ia, então, explicar como certos intelectuais burgueses puderam produzir esse milagre, o de uma teoria à medida do proletariado. Tampouco foi, como queria Kautsky, introduzida de fora para o interior do movimento operário, uma vez que Marx e Engels não teriam podido conceber sua teoria se não a tivessem construído sobre posições teóricas de classe, efeito direto do fato de pertencerem organicamente ao movimento operário de sua época. Na realidade, a teoria marxista foi concebida por intelectuais, é claro, , providos de uma vasta cultura, mas no interior e a partir do interior do movimento operário. Maquiavel dizia que para compreender os príncipes é preciso que se seja povo. Um intelectual que não nasce povo deve fazer-se povo para compreender os príncipes, e só pode conseguir isso compartilhando das lutas desse povo. Foi o que fez Marx: converteu-se em intelectual orgânico do proletariado (Gramsci) como militante de suas primeiras organizações e foi a partir das posições políticas e teóricas do proletariado que pode compreender o capital.”[19] Os marxianos acadêmicos não estariam esquecendo-se dessas lições?

Finalmente...

Entre avanços e recuos Meszaros está aí, mais uma bandeira dos marxianos, presente na teoria socialista importada, mas “brasileira”. Adorado pelos lukacsianos (aqueles que assim como Meszaros rejeitam o “forçadamente vendido” Lukacs soviético/stalinista) e gramscinianos, e até mesmo por trotskistas oportunistas (talvez pelo fetiche do termo “stalinismo” que legitima toda aproximação e aliança teórico-política), e rejeitado e tido como “neoleninista” por outros conselhistas, Meszaros é hoje um nome importante, de referência, mas previsível e de pouca ajuda prática. Sendo mais um acumulado ortodoxo e hermenêutico de citações das fases mais aleatórias de Marx somadas a fatos recentes, seu discurso pouco enérgico parece vir de longe, talvez dos anais franco-alemães, ou das críticas humanistas ao terror soviético do marxismo ocidental mais acadêmico, pouco original e de pouca ajuda nos tempos atuais. Algumas correções, sistematizações e fechamentos de arestas da teoria marxista realizadas pelo autor muitas vezes perdem o significado se comparados a obra como um todo.

Seu estilo e escrita, também são um problema. Sua falta de objetividade só enche as páginas de um enfadonho discurso que vaga por entre as planícies mais amplas e sempre retornam para o mesmo lugar. Suas reflexões sobre ideologia são fracas, repete chavões, sem considerar o imenso acúmulo e avanço teórico sobre a teoria das superestruturas do sec. XX (permanecendo aí um fiel “marxiano”), e demonstram ter poucas armas para entender e combater a lógica ideológica do capitalismo atual.

Nesse sentido, Meszaros, intelectual de extrema erudição, provindo de universidades de alto nível, cuja produção provém de um longuíssimo e árduo trabalho não consegue inovar e no final perde o alvo, não cumprindo seu objetivo: soma-se ao mais do mesmo do marxismo (ou do marxianismo), sendo somente uma dedução óbvia ou transcrição explícita das observações de Marx. Seu atual brilho sobretudo no Brasil talvez provenha mais da escuridão na qual nos encontramos do que de seu próprio pensamento. Assim, Meszaros, apesar de ser um autor muitas vezes didático (e como teórico, ele se mostra um ótimo professor), e de ser um contemporâneo, pode ser entendido, em muitos pontos, como descartável: diz o que todos sabemos, repete o que muitos já falaram e falam: que estamos num labirinto, com pouco tempo de vida, mas não nos mostra a saída (nem uma prática concreta para alcançá-la), a não ser com frases repetidas, rearranjos tautológicos e um discurso abstrato “radical”. Aqui, podemos repetir, no sentido estritamente “marxiano”, todas as críticas de Marx aos socialistas utópicos e idealistas.

No mais, para uma nova teoria da transição é preciso antes de tudo entender a unidade da teoria e prática. Concorda-se com Lenin quando o mesmo afirma: “a teoria revolucionária não é um dogma, ela só se forma de modo definitivo em estreita ligação com a prática de um movimento verdadeiramente de massa e verdadeiramente revolucionário”[20]. Logo, a resolução das questões e lacunas da teoria não virá de constructo intelectual impecável, muito menos de uma ação cega, mesmo que bem intencionada: mas de uma práxis revolucionária coletiva e organizada numa situação historicamente determinada que constantemente se renove e se supere, pois “o critério da verdade é a prática”. Os erros do passado foram muitos, mas nossos. Porém, como dizia Mao, o amanhã também nos pertence.


[1] MÉSZAROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
[2] KURZ, Robert. O Colapso da Modernização: Da Derrocada do Socialismo de Caserna à Crise da Economia Mundial. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
[3] “Uma formação social nunca se desfaz antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela está pronta” MARX apud KURZ, 1992, p. 52.
[4] Id, op. cit., p. 48.
[5] Id., op. cit., p. 38.
[6] Por exemplo: BETTELHEIM, Charles. Revolução Cultural e Organização Industrial na China. Rio de Janeiro: Graal, 1979; e GORZ, Andre (org). Crítica da divisão do trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
[7] KURZ, 1992, p. 54.
[8] Id, op. cit., p. 50-51.
[9] STALIN, Josef. Sobre os fundamentos do leninismo. São Paulo: Global. ?
[10] ZEDONG, Mao. A Nova Democracia na China. 2006. Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/mao/1940/01/15.htm. Acesso em: 12 ago. 2011.
[11] KOSLOV, G. A. Sobre a etapa socialista da economia política. In: ACADEMIA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA URSS. História das doutrinas econômicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. p. 278.
[12] ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 19.
[13] LENIN, V. A catástrofe que nos ameaça e como combatê-la. Biblioteca do Soldado e do Camponês. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1947. Disponível em: http://www.apropucsp.org.br/revista/r31_r08.htm. Acesso em: 12 ago. 2011.
[14] MESZAROS, 2002, p. 1050.
[15] Id., op. cit., p. 1026.
[16] ZIZEK, Slavoj. Mao Tsé-Tung, “Senhor do Desgoverno” marxista. In:______. (org.) Mao sobre a prática e a contradição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2008. p. 7-8
[17] Id., op. cit., p. 8-11.
[18] Id., op. cit., p. 13.
[19] ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 125.
[20] LENIN, V. A doença infantil do “esquerdismo” no comunismo, Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1946, p. 11.