Reproduzimos abaixo
um recente artigo do filósofo Vladimir Safatle, publicado na Carta Capital. Já
não é a primeira vez que indicamos ou dialogamos com alguma proposição do
filófoso. Um exemplo foi nosso recente ensaio sobre a política racionalista de
esquerda, presente aqui: http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/12/por-uma-nova-teoria-da-ideologia.html,
onde nos aproveitamos de suas inovações para a teoria da ideologia marxista,
que se afastam da linha teórica (e política) majoritária nos últimos anos em
nosso país, quer seja, o humanismo-historicismo.
Mesmo levando em
conta todas as ponderações (que apresentaremos também em relação a esse artigo)
frente às posições de Safatle, que não é nenhum militante revolucionário ou
marxista, no sentido prático da palavra, achamos que volta e meia Safatle,
autor de destaque na “opinião pública” em geral, apresenta questões importantes
no debate teórico e político contemporâneo em nosso país, relacionando os
mundos da cultura e da ideologia, que são os objetos mais privilegiados no
projeto BRADO!. Essas contribuições nos ajudam a reformular algumas posições
dentro do marxismo, atualizando-o para a conjuntura.
Esse artigo de
Safatle abre caminhos para sair do relativismo que fecha-se a total e qualquer
crítica cultural (impossibilitando assim, a crítica ideológica, bem comum ao
discurso ceticista da pós-modernidade). Aponta, corretamente sobre a cultura
subordinada à logica de reprodução do capital. Além de destacar os limites do
espontaneísmo cultural e que mesmo em comunidades pauperizadas
ideologias e culturas reacionárias também operam.
No entanto, parece
válido ponderar uma defesa dele que afirma: "Uma verdadeira política
cultural deveria insistir na autonomia da cultura, ou seja, na sua
realidade como fim em si mesmo, e não como meio para
se alcançar outra coisa."
Esta defesa resvala
em parte em uma perspectiva liberal(arte por arte etc.), ou para o elitismo
cultural e estético presente, por exemplo, nos teóricos de Frankfurt, sobretudo
Adorno, de grande influência na posição de Safatle. Não poderia a cultura ser
parte de uma processo revolucionário que incita outras
transformações dialéticas para além de "si mesma"? Um
martelo que molda a realidade, como dizia Brecht? A realidade, que Safatle
diagnostica como ausência de política autônoma para a cultura, não seria mais
precisamente uma reprodução necessária das estruturas que hoje nossa sociedade
se assenta, levadas a cabo por um projeto de governo oportunista, em nada “popular”
ou “democrático”? Aqui vale o conceito de Mao de contradições encadeadas ou a
perspectiva de Althusser, baseada em Mao, de sobredeterminação: cultura pode
ser determinante em certa perspectiva, porém ela pode tornar-se seu contrário
(identidade dos contrários) e é interdependente das demais contradições. Deste
modo, ela nunca poderá ser um "fim em si mesmo" e sua autonomia só
pode ser relativa: por isso ela pode ser um meio para alcançar diversos
objetivos, para expressar a agudização de contradições principais, e também um
objetivo por meio no qual diversos meios se convergem, ou a contradição
principal que encadeia as secundárias etc. A autonomia relativa da cultura
encerra uma certa possibilidade de “contribuições universais”, núcleos de
neutralidade nas práticas sociais, mas nunca é totalmente separada do campo da
luta de classes. Isso nos previne de cair nos extremos (desvios) e adotar uma
posição justa, que é o princípio e objetivo da dialética: não há nem cultura
puramente ideológica, nem cultura puramente “técnica” e neutra, autônoma das
esferas de poder; não há nem esponteneismo puro (como quer o obreirismo ou o
culturalismo relativista), nem puramente cultura como acúmulo e reprodução de
conhecimentos e técnicas universais e exatas.
Se nós pensarmos no
papel da cultura nas revoluções fica nítido o tipo de destruição operada por
ela e na luta sem quartel contra as culturas contrarrevolucionárias. Resumindo,
admitindo este ponto já não é possível defender uma "autonomia da cultura"
ou como "um fim em si mesmo". Pode ser pensado que o autor apontou
uma linha de defesa conjuntural para a cultura para "abrir espaço na
indigência de nossos tempo presentes", porém numa perspectiva mais ampla
ela parece equivocada e ainda na conjuntural questionável se levarmos em conta
uma ampliação da ideologia conservadora que nós temos indicado (e como se
observa também as críticas de Safatle).Uma linha de fundo liberal é justa para
vencer este combate? Reflexões necessárias pois em certas táticas a melhor via
é o ataque e não defesa.
Também nesse sentido,
não podemos pensar uma construção de uma alternativa cultural, que nos ajude a
sair desse pântano de mediocridade mercadológica que vivemos, separada da
(re)construção política das classes progressistas. Isso quer dizer, de uma
alteração da correlação de forças dentro da luta de classes que possibilite
minar a universalidade da ideologia dominante, não como visão de mundo que
paira no ar ou está na consciência dos sujeitos, mas entendida como conjunto “material”
de práticas e instituições. Como afirma Althusser, não há ideologia sem
práticas sociais específicas, tecidas na concretude das formações sociais e na luta
de classes. Por isso, mais uma vez, não é só da cultura, ou da estética, como
queria Adorno, que virá o iniciar da nova sociedade, da nova subjetividade,
pelo contrário: sozinha ela não pode nada, a não ser se isolar numa torre de
marfim, num “grande hotel abismo” (Lukács)que se tornou grande parte dos
núcleos acadêmicos, intelectuais e culturais progressistas e críticos.
Como dito por um
texto publicado por nós de Augustín Cueva (aqui: http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/07/cultura-classe-e-nacao-de-agustin-cueva.html), “[...a]cultura não é, em primeira instância,
um fator constitutivo (determinante) da estrutura social [...] a cultura não
pode desenvolver-se sem sofrer algum tipo de determinação proveniente da
estrutura de classes própria de cada formação social.” E o autor continua em
seu texto, embasando-se em Gramsci, que a cultura “popular”, esmagada,
dominada, e desarticulada, precisa de uma força sistematizadora. Ora essa força
só é capaz com uma força de classe, uma força centralizadora no campo da
política.
Relativa prosperidade, absoluta
indigência
Revista Carta Capital
- 04/02/2013
Análise| O atual
ciclo de recuperação econômica, ao contrário do passado, não estimula a cultura
brasileira
POR VLADIMIR SAFATLE
Analisar os rumos da
cultura brasileira nos últimos dez anos é um exercício tão necessário quanto
negligenciado. Poucas são as análises dispostas a tanto, sejam na mídia, sejam
no mundo acadêmico. Ao que parece, estamos paulatinamente a nos acostumar com
uma modalidade estranha de inibição de julgamento. Como se julgamentos de valor
no campo da cultura fossem exercícios proibidos, pois seriam pretensas
manifestações de uma vontade de submeter a multiplicidade da produção cultural
a padrões, no fundo, particulares de avaliação.
Sim, pois, para esta
nova doxa, quem afirma ser possível pensar de maneira valorativa a produção
cultural quer, no fundo, apenas impor seus gostos. Como se todo o exercício
crítico de levar em conta o estado atual das linguagens artísticas, seus desafios
técnicos, suas realizações passadas, assim como a capacidade de as obras de
arte fornecerem modos de organização e relação ainda não tematizados pela vida
social fosse em vão.
A disseminação de tal
perspectiva de desqualificação do próprio exercício da crítica cultural talvez
explique um pouco sobre as dificuldades da produção artística dos últimos anos.
É fato que todos os momentos de crescimento econômico brasileiro foram
traduzidos em momentos de grande explosão criativa. Foi assim nos anos 30, nos
anos 50 e mesmo nos anos 70, em plena ditadura. Não foi assim agora. Alguns
podem acreditar que fazer afirmações dessa natureza implica abraçar um discurso
passadista, muito fixado em alguns momentos privilegiados e idealizados da
cultura brasileira. Mas ele seria passadista se fizesse uma desqualificação
generalizada da produção recente, o que não é o caso.
Há de se reconhecer
que a produção contemporânea é, em várias partes do mundo, substancial. Olhemos
para nossos vizinhos. Muito se fala sobre a qualidade do cinema argentino, da
literatura chilena. Da mesma forma, artistas plásticos promissores continuam a
aparecer em várias partes do mundo. Isso serve para nos mostrar como, na
verdade, há um problema especificamente brasileiro.
Podemos levantar, ao
menos, dois eixos principais de análise para tal problema. Primeiro, sem
crítica cultural não é possível consolidar uma cena artística com capacidade de
induzir novos artistas e dar visibilidade a problemas comuns. Se Nova York conseguiu
firmar-se, no fim dos anos 40, como polo cultural mundial nas artes plásticas e
na música, muito disso deve ser creditado à existência de críticos como Clement
Greenberg, Michael Fried ou de músicos com profunda capacidade especulativa e
teórica, como John Cage.
Mas vejam a situação
brasileira. Pergunte-se, por exemplo, quantas revistas de crítica de artes
visuais, com circulação bem estabelecida, existem atualmente em nosso país. A
resposta é simples: nenhuma. A situação, em larga medida, se repete quando
voltamos os olhos para a música e mesmo para a literatura, salvo algumas heróicas
exceções. Para complementar, nossa postura nas universidades acaba, muitas
vezes, por colaborar na perpetuação dessa situação. No fundo, estimulamos pouco
nossos alunos a se confrontar e pensar, de maneira crítica e interessada, a
produção cultural recente. Não só a brasileira, mas a mundial. Nós mesmos
fazemos muito pouco tal confrontação.
Outro eixo importante
para analisar a situação brasileira é a ausência de uma verdadeira política
cultural. Na verdade, o discurso sobre cultura no Brasil está atualmente
prensado entre a economia e a assistência social. Ações de cultura justificam-se
por meio de dois eixos: ou o fortalecimento da "economia criativa" ou
o uso da cultura como instrumento de integração social de classes
desfavorecidas. Colabora para tal limitação o modelo de financiamento, baseado
em larga medida na transformação de diretores de marketing de grandes empresas
naqueles que decidirão o que será produzido e distribuído. Para eles, desviar
investimento para a cultura justifica-se ou por rentabilidade (o que explica por
que algumas das melhores coleções de arte da atualidade são de propriedade de
bancos) ou para tirar uma bela foto do representante da empresa com crianças
pobres, negras e felizes desenhando.
No caso da
reconfiguração da cultura sob a égide da economia criativa, anda-se no mesmo
passo do processo contemporâneo de financeirização da cultura. Com números e
gráficos mostra-se o potencial de investimento e geração de empregos que os
campos da cultura prometem. "Pensem na importância da indústria
cinematográfica para a economia norte-americana ou na maneira com que as artes
plásticas se transformaram em ativo privilegiado de valorização do
capital", é o que dizem. Como essa função de rentabilização financeira
afeta a própria estrutura das obras?
Já no caso da
transformação da cultura em setor da assistência social, cria-se uma cultura de
ONG que procura justificar os investimentos em cultura com o discurso falso da
integração social. Fica uma questão: se o índice de violência não cair depois
de aberto um centro cultural na periferia, seria então o caso de fechá-lo? Pior
é quando essa cultura de ONG acaba por criar a ideia intocável e paternalista
de "cultura popular", onde qualquer manifestação da periferia é vista
como expressão da "espontaneidade" do povo. Alguém deveria lembrá-los
de que comportamentos e produções reacionárias e regressivas existem no centro
e na periferia.
Uma verdadeira
política cultural deveria insistir na autonomia da cultura, ou seja, na sua
realidade como fim em si mesmo, e não como meio para se alcançar outra coisa.
Ela deveria, ainda, ser capaz de articular, de maneira profunda, ações de
fomento, de difusão e de formação. Se todas as discussões para sairmos do
padrão problemático de financiamento da cultura herdado pela Lei Rouanet são
mais do que bem-vindas, há de se lembrar que pouco se discute sobre problemas
de difusão e formação.
Principalmente no
último caso, nossa vocação ao espontaneísmo (mesmo nosso maior compositor,
Villa-Lobos, gostava de se apresentar como autodidata) parece nos fazer
acreditar que a produção artística não passa pela internalização de um lento
processo de aprendizado das técnicas e da visita frequente às tradições, mesmo
que um segundo momento do aprendizado seja a capacidade de esquecer o que se viu
demais, como essas figuras de Gestalt, nas quais a forma acaba por passar ao
fundo. Há tempos o País espera uma verdadeira política de formação de escolas
de artes, conservatórios, escolas de cinema, entre outras. Nada disso ocorreu.
Ela seria fundamental para dar forma à incrível criatividade do nosso povo e à
sua sede desmedida de invenção.
Lanço um desafio teórico... e como todo desafio, minha intenção é provocar num sentido científico: é possível, dentro de formas sociais baseada na exploração do processo de produção, desconsiderar a luta de classes? Vendo seu texto, se até na criação artística podemos identificar a luta de classes... Abração
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