domingo, 10 de fevereiro de 2013

A indigência cultural no país e suas verdadeiras causas: sobre um artigo de Safatle




Reproduzimos abaixo um recente artigo do filósofo Vladimir Safatle, publicado na Carta Capital. Já não é a primeira vez que indicamos ou dialogamos com alguma proposição do filófoso. Um exemplo foi nosso recente ensaio sobre a política racionalista de esquerda, presente aqui: http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/12/por-uma-nova-teoria-da-ideologia.html, onde nos aproveitamos de suas inovações para a teoria da ideologia marxista, que se afastam da linha teórica (e política) majoritária nos últimos anos em nosso país, quer seja, o humanismo-historicismo.

Mesmo levando em conta todas as ponderações (que apresentaremos também em relação a esse artigo) frente às posições de Safatle, que não é nenhum militante revolucionário ou marxista, no sentido prático da palavra, achamos que volta e meia Safatle, autor de destaque na “opinião pública” em geral, apresenta questões importantes no debate teórico e político contemporâneo em nosso país, relacionando os mundos da cultura e da ideologia, que são os objetos mais privilegiados no projeto BRADO!. Essas contribuições nos ajudam a reformular algumas posições dentro do marxismo, atualizando-o para a conjuntura.

Esse artigo de Safatle abre caminhos para sair do relativismo que fecha-se a total e qualquer crítica cultural (impossibilitando assim, a crítica ideológica, bem comum ao discurso ceticista da pós-modernidade). Aponta, corretamente sobre a cultura subordinada à logica de reprodução do capital. Além de destacar os limites do espontaneísmo cultural e que mesmo em comunidades pauperizadas ideologias e culturas reacionárias também operam. 

No entanto, parece válido ponderar uma defesa dele que afirma: "Uma verdadeira política cultural deveria insistir na autonomia da cultura, ou seja, na sua realidade como fim em si mesmo, e não como meio para se alcançar outra coisa." 

Esta defesa resvala em parte em uma perspectiva liberal(arte por arte etc.), ou para o elitismo cultural e estético presente, por exemplo, nos teóricos de Frankfurt, sobretudo Adorno, de grande influência na posição de Safatle. Não poderia a cultura ser parte de uma processo revolucionário que incita outras transformações dialéticas para além de "si mesma"? Um martelo que molda a realidade, como dizia Brecht? A realidade, que Safatle diagnostica como ausência de política autônoma para a cultura, não seria mais precisamente uma reprodução necessária das estruturas que hoje nossa sociedade se assenta, levadas a cabo por um projeto de governo oportunista, em nada “popular” ou “democrático”? Aqui vale o conceito de Mao de contradições encadeadas ou a perspectiva de Althusser, baseada em Mao, de sobredeterminação: cultura pode ser determinante em certa perspectiva, porém ela pode tornar-se seu contrário (identidade dos contrários) e é interdependente das demais contradições. Deste modo, ela nunca poderá ser um "fim em si mesmo" e sua autonomia só pode ser relativa: por isso ela pode ser um meio para alcançar diversos objetivos, para expressar a agudização de contradições principais, e também um objetivo por meio no qual diversos meios se convergem, ou a contradição principal que encadeia as secundárias etc. A autonomia relativa da cultura encerra uma certa possibilidade de “contribuições universais”, núcleos de neutralidade nas práticas sociais, mas nunca é totalmente separada do campo da luta de classes. Isso nos previne de cair nos extremos (desvios) e adotar uma posição justa, que é o princípio e objetivo da dialética: não há nem cultura puramente ideológica, nem cultura puramente “técnica” e neutra, autônoma das esferas de poder; não há nem esponteneismo puro (como quer o obreirismo ou o culturalismo relativista), nem puramente cultura como acúmulo e reprodução de conhecimentos e técnicas universais e exatas.

Se nós pensarmos no papel da cultura nas revoluções fica nítido o tipo de destruição operada por ela e na luta sem quartel contra as culturas contrarrevolucionárias. Resumindo, admitindo este ponto já não é possível defender uma "autonomia da cultura" ou como "um fim em si mesmo". Pode ser pensado que o autor apontou uma linha de defesa conjuntural para a cultura para "abrir espaço na indigência de nossos tempo presentes", porém numa perspectiva mais ampla ela parece equivocada e ainda na conjuntural questionável se levarmos em conta uma ampliação da ideologia conservadora que nós temos indicado (e como se observa também as críticas de Safatle).Uma linha de fundo liberal é justa para vencer este combate? Reflexões necessárias pois em certas táticas a melhor via é o ataque e não defesa. 

Também nesse sentido, não podemos pensar uma construção de uma alternativa cultural, que nos ajude a sair desse pântano de mediocridade mercadológica que vivemos, separada da (re)construção política das classes progressistas. Isso quer dizer, de uma alteração da correlação de forças dentro da luta de classes que possibilite minar a universalidade da ideologia dominante, não como visão de mundo que paira no ar ou está na consciência dos sujeitos, mas entendida como conjunto “material” de práticas e instituições. Como afirma Althusser, não há ideologia sem práticas sociais específicas, tecidas na concretude das formações sociais e na luta de classes. Por isso, mais uma vez, não é só da cultura, ou da estética, como queria Adorno, que virá o iniciar da nova sociedade, da nova subjetividade, pelo contrário: sozinha ela não pode nada, a não ser se isolar numa torre de marfim, num “grande hotel abismo” (Lukács)que se tornou grande parte dos núcleos acadêmicos, intelectuais e culturais progressistas e críticos.

Como dito por um texto publicado por nós de Augustín Cueva (aqui: http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/07/cultura-classe-e-nacao-de-agustin-cueva.html), “[...a]cultura não é, em primeira instância, um fator constitutivo (determinante) da estrutura social [...] a cultura não pode desenvolver-se sem sofrer algum tipo de determinação proveniente da estrutura de classes própria de cada formação social.” E o autor continua em seu texto, embasando-se em Gramsci, que a cultura “popular”, esmagada, dominada, e desarticulada, precisa de uma força sistematizadora. Ora essa força só é capaz com uma força de classe, uma força centralizadora no campo da política.


Relativa prosperidade, absoluta indigência

Revista Carta Capital - 04/02/2013

Análise| O atual ciclo de recuperação econômica, ao contrário do passado, não estimula a cultura brasileira

POR VLADIMIR SAFATLE

Analisar os rumos da cultura brasileira nos últimos dez anos é um exercício tão necessário quanto negligenciado. Poucas são as análises dispostas a tanto, sejam na mídia, sejam no mundo acadêmico. Ao que parece, estamos paulatinamente a nos acostumar com uma modalidade estranha de inibição de julgamento. Como se julgamentos de valor no campo da cultura fossem exercícios proibidos, pois seriam pretensas manifestações de uma vontade de submeter a multiplicidade da produção cultural a padrões, no fundo, particulares de avaliação.

Sim, pois, para esta nova doxa, quem afirma ser possível pensar de maneira valorativa a produção cultural quer, no fundo, apenas impor seus gostos. Como se todo o exercício crítico de levar em conta o estado atual das linguagens artísticas, seus desafios técnicos, suas realizações passadas, assim como a capacidade de as obras de arte fornecerem modos de organização e relação ainda não tematizados pela vida social fosse em vão. 

A disseminação de tal perspectiva de desqualificação do próprio exercício da crítica cultural talvez explique um pouco sobre as dificuldades da produção artística dos últimos anos. É fato que todos os momentos de crescimento econômico brasileiro foram traduzidos em momentos de grande explosão criativa. Foi assim nos anos 30, nos anos 50 e mesmo nos anos 70, em plena ditadura. Não foi assim agora. Alguns podem acreditar que fazer afirmações dessa natureza implica abraçar um discurso passadista, muito fixado em alguns momentos privilegiados e idealizados da cultura brasileira. Mas ele seria passadista se fizesse uma desqualificação generalizada da produção recente, o que não é o caso. 

Há de se reconhecer que a produção contemporânea é, em várias partes do mundo, substancial. Olhemos para nossos vizinhos. Muito se fala sobre a qualidade do cinema argentino, da literatura chilena. Da mesma forma, artistas plásticos promissores continuam a aparecer em várias partes do mundo. Isso serve para nos mostrar como, na verdade, há um problema especificamente brasileiro.

Podemos levantar, ao menos, dois eixos principais de análise para tal problema. Primeiro, sem crítica cultural não é possível consolidar uma cena artística com capacidade de induzir novos artistas e dar visibilidade a problemas comuns. Se Nova York conseguiu firmar-se, no fim dos anos 40, como polo cultural mundial nas artes plásticas e na música, muito disso deve ser creditado à existência de críticos como Clement Greenberg, Michael Fried ou de músicos com profunda capacidade especulativa e teórica, como John Cage. 

Mas vejam a situação brasileira. Pergunte-se, por exemplo, quantas revistas de crítica de artes visuais, com circulação bem estabelecida, existem atualmente em nosso país. A resposta é simples: nenhuma. A situação, em larga medida, se repete quando voltamos os olhos para a música e mesmo para a literatura, salvo algumas heróicas exceções. Para complementar, nossa postura nas universidades acaba, muitas vezes, por colaborar na perpetuação dessa situação. No fundo, estimulamos pouco nossos alunos a se confrontar e pensar, de maneira crítica e interessada, a produção cultural recente. Não só a brasileira, mas a mundial. Nós mesmos fazemos muito pouco tal confrontação. 

Outro eixo importante para analisar a situação brasileira é a ausência de uma verdadeira política cultural. Na verdade, o discurso sobre cultura no Brasil está atualmente prensado entre a economia e a assistência social. Ações de cultura justificam-se por meio de dois eixos: ou o fortalecimento da "economia criativa" ou o uso da cultura como instrumento de integração social de classes desfavorecidas. Colabora para tal limitação o modelo de financiamento, baseado em larga medida na transformação de diretores de marketing de grandes empresas naqueles que decidirão o que será produzido e distribuído. Para eles, desviar investimento para a cultura justifica-se ou por rentabilidade (o que explica por que algumas das melhores coleções de arte da atualidade são de propriedade de bancos) ou para tirar uma bela foto do representante da empresa com crianças pobres, negras e felizes desenhando. 

No caso da reconfiguração da cultura sob a égide da economia criativa, anda-se no mesmo passo do processo contemporâneo de financeirização da cultura. Com números e gráficos mostra-se o potencial de investimento e geração de empregos que os campos da cultura prometem. "Pensem na importância da indústria cinematográfica para a economia norte-americana ou na maneira com que as artes plásticas se transfor­maram em ativo privilegiado de valorização do capital", é o que dizem. Como essa função de rentabilização financeira afeta a própria estrutura das obras? 

Já no caso da transformação da cultura em setor da assistência social, cria-se uma cultura de ONG que procura justificar os investimentos em cultura com o discurso falso da integração social. Fica uma questão: se o índice de violência não cair depois de aberto um centro cultural na periferia, seria então o caso de fechá-lo? Pior é quando essa cultura de ONG acaba por criar a ideia intocável e paternalista de "cultura popular", onde qualquer manifestação da periferia é vista como expressão da "espontaneidade" do povo. Alguém deveria lembrá-los de que comportamentos e produções reacionárias e regressivas existem no centro e na periferia. 

Uma verdadeira política cultural deveria insistir na autonomia da cultura, ou seja, na sua realidade como fim em si mesmo, e não como meio para se alcançar outra coisa. Ela deveria, ainda, ser capaz de articular, de maneira profunda, ações de fomento, de difusão e de formação. Se todas as discussões para sairmos do padrão problemático de financiamento da cultura herdado pela Lei Rouanet são mais do que bem-vindas, há de se lembrar que pouco se discute sobre problemas de difusão e formação. 

Principalmente no último caso, nossa vocação ao espontaneísmo (mesmo nos­so maior compositor, Villa-Lobos, gostava de se apresentar como autodidata) parece nos fazer acreditar que a produção artística não passa pela internalização de um lento processo de aprendizado das técnicas e da visita frequente às tradições, mesmo que um segundo momento do aprendizado seja a capacidade de esquecer o que se viu demais, como essas figuras de Gestalt, nas quais a forma acaba por passar ao fundo. Há tempos o País espera uma verdadeira política de formação de escolas de artes, conservatórios, escolas de cinema, entre outras. Nada disso ocorreu. Ela seria fundamental para dar forma à incrível criatividade do nosso povo e à sua sede desmedida de invenção.

Um comentário:

  1. Lanço um desafio teórico... e como todo desafio, minha intenção é provocar num sentido científico: é possível, dentro de formas sociais baseada na exploração do processo de produção, desconsiderar a luta de classes? Vendo seu texto, se até na criação artística podemos identificar a luta de classes... Abração

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