[Augusto Machado]
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Hokusai |
Existe um “ditado” pseudo-dialético comum entre as correntes da esquerda brasileira de que “o que não avança, retrocede”. Parece descrever uma gama de situações de maneira satisfatória, dentro da política e da história em geral. Mas com uma reflexão um pouco mais aprofundada notamos as limitações, nada dialéticas, do ditado.
O ditado nos afirma, implicitamente, que:
- A realidade se constitui através de uma única força dentro de uma situação de contradição única e simples-universal, que ora assume um sentido, ora outro. Basicamente um jogo de "cabo de guerra".
Disso decorre:
- A ausência de um terceiro, ou mais elementos (contradições múltiplas, articuladas ou não), ou de um não elemento (noção de neutralidade e não-ativo).
- Uma visão absoluta (vitória/derrota).
Ou seja, uma totalidade bem próxima da ideologia hegeliana
.
Tentaremos refletir brevemente sobre essa visão errônea da dialética numa análise teórica e com suporte em alguns fenômenos históricos e políticos. Tentaremos também demonstrar como tal visão subjaz um certo posicionamento político, consciente ou inconsciente.
Como pensar retrocessos ideológicos, políticos e históricos?
É interessante pensar como os aspectos político-culturais de meados do século xx que eram “subversivos” se inseriram dentro da lógica hegemônica, ou seja, do "sistema". Junto com esses aspectos estão também os movimentos e formas de luta que imperaram sobretudo nos países centrais cujo impacto também se fez sentir nas periferias, que incluem, grosso modo, os movimentos por direitos civis e de estética vanguardista.
Numa visão pseudo-dialética se pensaria: os elementos progressistas, se não se convertem em uma ruptura revolucionária, a longo prazo tendem a se inserir, a serem reaproveitado pela hegemonia, se esvaziando de seu conteúdo contestador. Os movimentos civis que arrancavam do estado espaços e direitos autônomos, forçando-o a reconhecê-los, hoje, “pós-68”, é o próprio Estado a serviço do mercado que utiliza de espaços não-estatais/governamentais para cumprir suas funções hegemônicas de maneira duplamente eficaz, ou mesmo o próprio mercado que reconhece os novos "direitos" com finalidades lucrativas. O feitiço volta contra o feiticeiro, e o desavisado de que estamos no século XXI, pensando estar preparando barricadas, pode estar sendo o mais conservador de todos .
O mesmo poderíamos dizer sobre o “reaproveitamento” de formas de trabalho e produção de nações socialistas do século XX pelo capitalismo atual. O caso do China seria exemplar.
De fato, esta é uma parte da verdade, mas apenas uma parte.
Antes de mais nada, é preciso avaliar se esses elementos não são, por si só, e não apenas de maneira relacional, “conservadores”, ou não-diretamente revolucionários. Os direitos civis são direitos democráticos, que limitam ainda dentro do quadro político burguês e capitalista. Os "movimentos sociais" muitas vezes possuem uma base pequeno-burguesa, ou da classe média intelectualizada, não diretamente proletários. Ou seja, já seria de sua própria natureza uma propensão a serem incorporados, numa continuar no "sistema". Ilusão seria pensar uma continuidade direta, sem mediações, sem ganhos apenas parciais.
Da mesma forma em relação ao caso do "reaproveitamento" dos modelos socialistas, que em grande parte não sairam do sistema assalariado, logo não conseguiram concretizar rigorosamente pautas socialistas.
A subversão, em ambos os casos, na verdade, era muito mais uma modernização, mesmo que às avessas e sobre o controle não-hegemônico. Mas "prevista" no plano do desenvolvimento histórico.
Ora, então como evitar retrocessos, forçando elementos progressistas a se tornarem realmente uma ruptura? Devem ser os revolucionários contra todas essas reivindicações “parciais”? Seria o erro do século vinte não denunciar esses “desvios”, evitar os riscos de avanços parciais e partir para as contradições principais sem mediações?
O radicalismo subjetivista que está por trás dessas propostas (deduzidas do ditado pseudodialético, do "cabo de guerra" de tudo ou nada) não está de acordo com uma visão dialética.
Uma visão dialética, de acordo com uma teoria revolucionária proletária, precisa levar em conta:
- O avanço parcial, ou a noção de "menos pior" (evitar a visão catastrófica);
- A possibilidade de disputa de hegemonia em movimentos não-revolucionários, ou não-socialistas diretamente (reformas, transições) que contribuam mesmo que não diretamente à causa comunista;
- A possibilidade de uma estagnação (elementos neutralizados);
- Primazia das condições objetivas
O pavor de se aliar, no fundo é falta de segurança política própria, como sempre o leninismo colocou em sua crítica ao esquerdismo.
Que isso significa? Como isso modifica a visão do "cabo de guerra"? Para além do subjetivismo, ou “culpa/crise de direção” ou condições objetivas desde/já dadas (que até mesmo Mao por vezes reforça, exemplo em Sobre a contradição
), precisamos levar em conta não só nosso papel, mas o do inimigo. O "cabo de guerra" apenas leva parcialmente em consideração a força do inimigo. Em últimos instâncias, o retrocesso possui um culpado: aquele que não faz avançar, que não "levou até o fim", abrindo espaço para que houvesse o refluxo da força.
Levar em conta a força do inimigo é próximo do que Lenin dizia sobre o fato de uma revolução não depender somente de nosso estado, mas do estado dos opressores. É preciso, então, uma multiplicidade de autonomias relativas, de elementos em crise que se sobrepõem e articulam (sobredeterminações) para que se crie uma possibilidade de revolução. Um terreno objetivo mais amplo se faz presente aqui.
Poulantzas por sua vez afirma: “a capacidade de uma classe para realizar os seus interesses objetivos, portanto o seu poder de classe, depende da capacidade do adversário, portanto do poder do adversário”.
Podemos também encontrar em Marx (apud Poulantzas) um exemplo que aponta diretamente contra o ditado “dialético”: “Marx nos diz, neste sentido [de autonomia relativa das superestruturas], na Guerra Civil na França, que o bonapartismo se explica pelo momento em que a 'burguesia já tinha perdido, e a classe operária não tinha adquirido, a faculdade de governar'". Ou seja, vemos aqui um momento histórico de estagnação, de atuação impossível: uma paralisia do desenvolvimento ("neutralidade"), vácuo que em muitos casos tem a possibilidade de ser ocupado por alguma tragédia (ai sim, podendo se converter em um retrocesso propriamente dito).
Em todos esses apontamos vemos elementos que vão contra a visão simplista da história e a luta de classes (que é o seu motor) como um cabo de guerra, onde o elemento subjetivo (nossa força) é decisivo e efetivo por si só para um retrocesso ou avanço, já que desconsidera a possibilidade de paralisia (força do inimigo não estar ativa), de múltiplas contradições, de avanços parciais.
Que podemos tirar disso?
Vimos que a visão dialética não comporta o mecanicismo comum a uma visão de contradição simples como propõe o ditado “o que não avança retrocede”, ou a tese do "cabo de guerra". Os exemplos dados visam demonstrar a complexidade de uma situação histórica concreta e de seu desenvolvimento de acordo com as classes sociais, e por isso indica também uma postura política capaz de levar em conta tal visão.
Afastando-se do simplismo de “o que não avança retrocede”, temos uma visão não-linear, que não depende mais de uma só força (e um único "culpado"), onde as únicas coisas que depreendem-se disso são vitórias ou derrotas (retrocessos) puros e simples, ou seja, absolutos.
Aliás, o velho Engels já nos dizia que a diferença entre a dialética e a metafísica (lógica formal) é referente a esse "absoluto". Nos dizia que essa última (metafísica) afirma a unidade eterna de um elemento, “sim, sim”, “não, não”, já a dialética, o "sim é não" e o "não é sim"
Nesse sentido, "derrota"/retrocesso é também dialeticamente vitória, já que põe em ação um novo terreno histórico de novas contradições sintetizadas. Essa visão dialética é consciente de sua contradição e paradoxo e não teme por afastá-los. Em vez de visões absolutas e por isso "pessimistas", de batalhas que sempre se iniciam do 0, devemos opor o otimismo histórico (que é a dialética posta em prática), nossa religião, como já diziam vários clássicos do marxismo e como também já anunciava também o velho Marx:
As revoluções burguesas [...] avançam rapidamente de sucesso em sucesso; seus efeitos dramáticos excedem uns aos outros; os homens e as coisas se destacam como gemas fulgurantes; o êxtase é o estado permanente da sociedade; mas estas revoluções têm vida curta; logo atingem o auge, e uma longa modorra se apodera da sociedade antes que esta tenha aprendido a assimilar serenamente os resultados de seu período de lutas e embates. Por outro lado, as revoluções proletárias [...] se criticam constantemente a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas. (grifos nossos)
Referências
Althusser, Louis. Análise crítica da teoria marxista.
Engels, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico.
Poulantzas, Nicos. Poder político e classes sociais.
Tse-tung, Mao. Sobre a contradição.