[Carlos Rios]
Prometeu
Graças a mim, os homens não mais desejam a morte.
O Coro
Que remédio lhes deste contra o desespero.
Prometeu
Dei-lhes esperança infinita no futuro.
(Ésquilo, Prometeu acorrentado)
O filósofo do vir-a-ser se apresenta num primeiro momento a nossos olhos encoberto por trevas de incompreensão. Seria ele um misantropo ensimesmado em suas próprias verdades, mergulhado num grande orgulho, no seu “próprio sistema solar”- como diria Nietzsche ? Ou teria ele tocado uma verdade mais profunda na escuta do que-é-com? Tais questões revelam a necessidade de identificar qual seria o traço mais cacterístico de Heráclito de Éfeso e denotar quais são sua bases mais profundas, assim como os seus desdobramentos. Teria dito ele que o pricípio é “o fogo”, o qual arremeteria ao renovar do mundo por um grande incêndio consumidor e renovador? Como pontos luminosos pendendo na escuridão nos vemos entre dúvidas neste ponto de partida, porém eis que o fogo heraclítico surge triunfante para iluminar e dirimir as indagações.
Assim, cumpre apresentar as bases do pensamento heraclítico para que se fundamentem demais questões. A expressão aqui tomada com título deste breve artigo “Panta Rei” (Tudo Flui) é traço mais seguramente marcante de Heráclito: o devir, o vir-a-ser, a pura fluição. Podem atestar isso alguns dos fragmentos:
49a- No mesmo rios estamos e não estamos, somos e não somos.
As águas de um rio a cada instante seriam diferentes devido ao contínuo fluir da correnteza. Tal consideração reflete uma questão já embrionária nos seus predecessores milesianos referente ao perecer das coisas, o tormento da finitude foi um forte estímulo para os questionamentos da existência, para a observação da natureza ou para a construção de “abrigos metafísicos”. É justamente esta marca o ponto máximo da filosofia heraclítica, poderia ser por isso considerado o pai da dialética com o primeiro a se atentar para o movimento, a dinâmica da natureza, conferindo centralidade ao processo à mudança.
É nítido, portanto, que o princípio (arché) heraclítico é o devir. Diferentemente de seus predecessores o elemento apontado como princípio, o fogo, seria a realização sensível de uma intuição mais profunda do vir-a-ser. Hegel caminha para este viés analítico e acrescenta que Heráclito teria “inalgurado a filosofia” admitindo também a influência deste em seu pensamento.
Além disso, deve-se também lembrar do papel que cumpre a guerra dos contrários neste fluxo perpétuo, pois para Heráclito a luta dos contrário pende para a unidade e esta seria a harmonia no devir:
8- Heráclito (dizendo) que o contrário é o convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia.
[A contradição dos opostos é o movimento que tende a unidade, este movimento daquilo que é um]
48- Para o arco o nome [é] vida; a obra , porém, morte.
[O instrumento elucidado é sobre a oposição entre a vida e morte]
10- Conjunções o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consoante e o dissoante, e de todas as coisas um e de um todas as coisas.
[a relação dos contrários aqui é tomada na relação todo-parte e inversamente, este pesamento é importante para outros encadeamento de Heráclito pois revela a participação do particular em um universal]
Esta última mensão poder ser evocada para cacterizar o vir-a-ser: uma determinação cega que não conhece o dualismo entre alma e matéria, ou mesmo o arbítrio divino personificado. Esta relação de contrários tal como universal-particular mencionado, parece ser aquilo que há de mais extradionário e inovador no logos heraclítico. Quer dizer, sendo puro devir, a pura dialética, a arché heraclítica uniria por identidade ser e não-ser, universal e particular, o que poderia parecer um disparate, porém, em verdade resguarda uma profunda verdade. Nietzsche teria afirmado que Heráclito teria caminhado pela trilha da dedução de duas negações conexas: a) a negação da separação de um mundo físico de um metafísico, ou alma e matéria, o que implica na refutação do “abrigo metafísico” no qual se lançou Anaximandro; b) a negação do ser expressa na relação de identidade de ser e não-ser.
Hegel teria explicado a relação do ser e não-ser ao ressaltar que o ser logo é levado pelo transcorrer do devir tornando-se em não-ser, aqui aparece a necessária intuição temporal. Aquilo que agora é em breve não o será mais devido a infadigável marcha do tempo, que tudo carrega, assim ser torna-se não-ser, e este por sua vez, em outro ser dado que a cada instante é assim novo. Por isso esta unidade constante é segundo o vir-a-ser, como afirmou muito brilhantemente
Heráclito:
84a- Transmutando repousa.
[O constante fluir é o princípio permantente.]
Esta é a caracterização a qual Hegel atribui um princípio lógico que se expressará em “modos da realidade”, a unidade de contrários pode assim ser levada para relação entre ideal e real e as formas sob as quais se manifesta o princípio do devir: a) o tempo como puro conceito, como uma intuição abstrata da consciência do devir; b) o fogo de Heráclito como processo sensível do devir. Pois aqui se pronuncia o termo lógico alcançado por Heráclito tendo no fogo sua manifestação do campo sensível. Vários fragmentos arremetem ao fogo e podem ser evocados aqui:
66- Pois todas (as coisas) o fogo sobrevindo empolgará.
[evoca-se aqui claramente o fogo como princípio]
64- De todas as coisas o raio fulgurante dirige o curso.
[ novamente o fogo sendo evocado para materializar o fluir, só que aqui por meio da referência ao raio que abriga um relação com o fogo]
90- Por fogo trocam-se todas as coisas e o fogo por todas, tal como ouro por mercadorias e mercadorias por ouro.
[Sendo o fogo o princípio sensível do movimento ele aqui é comparada com o princípío monetário de troca, quer dizer por tudo perpassa e em tudo está contido é a unidade dos contrários, se a moeda (ouro) pode figurar essa idéia poderíamos pensar também num baralho de cartas onde o coringa equivale a todas as cartas.]
31- Direções do fogo: primeiro mar, o do mar metade terra, metade incandescência...Terra dilui-se em mar e se mede no mesmo lógos, tal qual era antes de se tornar terra.
[nas direções do fogo se perpecebe a transmutação do fogo em outros elementos, outros fragmentos citam uma direção para cima e outra para baixo nesse devir do fogo.]
30- Este mundo, o mesmo de todos os seres. Nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas.
Este último fragmento retoma a já mencionada causalidade cega do devir. Como se observa nenhum deus ou homem fez o mundo como é, onde no princípio estaria aderido a todas as demais coisas tal como variações de grau, a expressão da unidade dos contrários. A mesma causalidade cega se expressaria também no fragmento 32: Uma só coisa, o único sábio, quer e não quer ser recolhido pelo nome de Zeus. Nele se destacam as seguintes características: a primeira é a relação entre o fato de ser cultuado sob o nome de Zeus, pois o princípio é sob ele venerado, porém assim chamado seria inapropriado tomando em conta que o devir sem face é o verdadeiro e único princípio; e de modo complementar, por não ser compatível com uma expressão antropomórfica revela o caráter abstrato e o descolamento mítico operado pelo logos heraclítico.
Por tanto, não se poderia falar do lógos heraclítico aderido a perspectivas dualistas de alma e matéria como aqui já se ressaltou. Reale, por outro lado, ao analisar acerca da dimensão ética de Heráclito o aproxima da doutrina órfica depositária da alma imortal. E alguns dos fragmentos na interpretação de Reale possuem uma relação entre a vivificação da alma com a mortificação do prazeres do corpo e inversamente onde estaria presente uma doutrina ascética que se manisfetaria também no diálogo Fédon de Paltão. Se este viés é válido, no entanto, tornam-se inviáveis e prejudicadas todas as considerações anteriores sobre o caráter do vir-a-ser heraclítico: se há alma imortal aguardando assim julgamento não é possível o devir sem face antes mencionado ou: para todo julgamento não deveria haver um juiz? Aqui Nietzsche parece atentar melhor para o conteúdo da justiça que reliza-se no processo, no devir, no combate dos contrários; assim Heráclito estaria a observar:
“(...) inúmeros pares lutarem em alegre torneio sob a tutela de rigorosos árbitros, sobreveio um pressentimento ainda mais alto: não podia considerar os pares em luta e os juízes separados uns dos outros, os próprios juízes pareciam combater, os próprios combates pareciam julgar-se– sim, como no fundo só percebia a justiça uma, eternamente reinante, ele ousou proclamar: “O próprio conflito do mútiplo é a pura justiça!””
Existe uma contraste grandioso no infortúnio visto por Anaximandro e sua culpa originária a ser expiada com a morte e o devir heraclítico, tocar esta questão é revirar as estruturas do “dogma da queda”. Este não parece se figurar no logos heraclítico tal é a grandiosidade de seu pensamento onde não reside tal pessimismo diante do vir-a-ser que não é temido ou repelido por meio de “abrigos metafísicos”, ele, ao contrário, é abraçado por Heráclito como o verdadeiro princípio. Assim, poderia ser interpretada a “alma” mencionada em Heráclito como o vivificante, o retomar da unidade, a combustão do mundo; estabelecendo uma afinidade com o fragmento 118: A alma seca (é) a mais sábia e melhor. O seco tem relação aqui com o fogo o movimento da própria vida não como destruição mas o movimento dinâmico, como quis Hegel: “(...) assim a alma mais seca é o fogo puro, e este não é a negação do vivo, mas a própria vida.”
Tal sabedoria só poderia ser alcançada por meio da desconfiança do sensível, do particular, mediante o processo universal do vir-a-ser:
1-Deste lógos, sendo sempre, os homens se tornam descompassados, quer antes de ouvir, quer tão logo tenham ouvido; pois, tornando-se todas (as coisas) segundo esse lógos a inexperientes se assemelham embora experimentando-se em palavras e ações tais quais eu discorro segundo (a) natureza distinguindo cada (coisa) e explicando como se comporta. Aos homens escapa quanto fazem despertos , tal como esquecem quanto fazem dormindo.
A percepção do particular abriga dúvida porque esta seria um quadro concebido aos olhos humanos de modo estático não atentando para o caráter dinâmico da “infinita trama de concatenações” do processo universal. Esta contradição entre a percepção imediata e fragmetária e a imagem de conjunto dinâmica, entre o particularmente acessível aos sentidos e o processo universal da natureza é comunicada por uma relação de incerteza da consciência perante o processo universal. Esta manifesta-se também por meio da relação entre sono e vigília podendo ainda ser acrescido a esta reflexão o fragmento:
21- Morte é tudo que vemos despertos, e tudo que vemos dormindo é sono.
Sono e vigília se expressam como a forma de relação entre o logos e a consciência, ou seja, do processo universal da natureza e a consciência. Assim, vigília como consciência do mundo exterior se colocaria diante do que é morto e a “morte” poderia arremeter a ascepções possíveis para uma especulação imediata, sem instrumentos mais refinados: tudo é morte por se tratar da constante fluir que tudo devora e renova, que tudo faz perecer, porém ao dormir nos abrigamos no nosso entendimento particular e nos afastamos desta forma de compreenção circusncrita aos sentidos; ora, esta primeira impressão apresentaria de imediato um grande problema por conta da já mencionada suspeita de Heráclito diante dos sentidos, prejudicando a interpretação. Mas é justamente este o “nó” da questão, o logos heraclítico desconfia do sensível porém não o aparta por completo como forma de sondar o princípio, a relação racional com a relidade exterior seria um dos modos de ordenação da realidade baseado no princípio lógico mais profundo do vir-a-ser Heraclítico. Esta parece ser a senda trilhada por Hegel para explica-lo:
“Por mais que Heráclito afirme que no saber sensível não há verdade, porque tudo o que é flui, o ser da certeza sensível não é, enquanto é, com a mesma força afirma ele que, no saber é necessário o modo objetivo.”
Expondo também as colocações em contrário, para Reale tal princípio lógico ou a dialética moderna não se enquadrariam no logos heraclítico, o não abandono da pesquisa da physis seria um sintoma disso, o que porém fica pouco claro diante da já mencionada, e reafirmada por Reale, desconfiança do sensível expressa em Heráclito. Este nó de contradição se contorce ainda mais, pois se o logos heraclítico atenta para uma inteligência que tudo ordena sob uma lei comum, o termo “aquilo que-é-com” é manifestação disso, se observará na busca pelo fogo as experiências sensíveis, como modo subsumido a uma lógia universal ordenadora, como parece ser a resolução mecionada antes por Hegel.
Voltados todos nós com olhos estalados e lentes embaçadas um quadro preciso do logos heraclítico parece mais e mais difícil de se capturar, ironicamente tal como o devir. Assim, toda a sorte de considerações deste grande filósofo como homem orgulhoso e misantropo, como profeta solitário e outras pechas que mais parecem ficar no aparente do ir ao fundo. Pois, se há um logos como buscá-lo se é impossível captura-lo no constante fluir? Como atingir o que sempre transmuta e repousa pelo movimento? A reposta é acompanhar-lhe o movimento, realizar a escuta intuitiva do lógos desconfiando do sensível, das opiniões vãs, dos eruditos por meio desta constante vigília. É claro que tal fato custa caro e como todo aquele que se volta para a busca da verdade é sujeito a toda sorte de estigmatização, condenação e outras iniquidades.
A injustiça dos deuses invejosos e ciumentos nunca deixa de o punir a hýbris dos heróis desobedientes. O fogo heraclítico assim como o fogo roubado de Efésto por Prometeu comungam deste conhecimento daquilo que é e tudo move, é a esperança no seio do vir-a-ser é o começo da jornada, são as pegadas dos primeiros gigantes a quem muito devemos por sua tão generosa desobediência. E tudo flui.