[Augusto Machado]
Sérgio Bianchi é um
cineasta brasileiro que nas últimas décadas ganhou destaque e
prêmios por seus filmes e temáticas “polêmicas”. O artista se
debruça sobre nossa nação, sociedade e cultura brasileira com
acidez e por vezes brutalidade pouco vistas.
Seu filme de 2000,
Cronicamente Inviável, Bianchi tenta descrever e analisar a
decadência da identidade e vida nacional. É um filme
desconfortante: recortando pedaços sociais do Brasil de hoje, da
miséria do povo à corrupção do dia-a-dia, da hipocrisia e
mediocridade ao jeitinho brasileiro trambiqueiro, da cordialidade à
violência caótica, o cineasta nos apresenta um verdadeiro teatro
dos horrores (muito antigo por sinal) da vida privada e pública na
sociedade brasileira, onde não escapa nenhuma classe ou região.
Seja o baiano pobre ou o carioca do centro, seja o sulista trabalhador ou da
elite: todos estão no mesmo barco pobre que é nossa nação,
história e gente. Nossa cultura é um amontoado irracional: cronicamente inviável.
Seríamos um projeto de
nação e de povo que deu errado? Há um culpado maior? Seríamos todos nós?
Estaríamos para sempre presos nesse enredo? Essas são as perguntas
colocadas pelo autor, implicitamente, durante o decorrer do roteiro.
A resposta é sempre pessimista, com um ar de irracionalismo. Em várias cenas, a
violência, física ou simbólica, presentes em todas as esferas da
vida carioca, regadas cinicamente ao som da bossa nova de Tom Jobim é
um exemplo de como o artista pretende expor a contradição quase
insolúvel de nossa realidade nacional caótica. No fundo parece
mesmo que fomos determinados, ou pela nossa trágica história, ou
pelo cínico acaso da existência, ou pela natureza humana ou
étnico-racial, à mais simples e brutal barbárie sem fim.
Essa forma de colocar à
questão na realidade
retrata as contradições ideológicas das “classes médias”
(Sergio Bianchi é um artista de setor urbano da região sul-sudeste
formado na USP) em busca de um engajamento político, através da
arte, que busca resolver ou pelo menos expor os “problemas sociais”
que percebem em seus cotidianos.
Diante o caos da
sociedade brasileira e a ausência de uma classe organizada
politicamente com força social capaz de levar a cabo a tarefa
histórica de resolução de problemas que há séculos se arrastam,
um sujeito da camada média urbana, ideologicamente, tende a cair num
profundo dilema com fortes tendências moralistas e existenciais. E esse dilema só pode ter soluções extremamente dramáticas e esteriotipadas. Podemos ver isso no filme, que nada mais
faz que retratar uma interpretação dita científica do povo
brasileiro: a do famoso “homem cordial” de Sérgio Buarque de
Holanda. Parece que a versão subjetivista weberiana de tipos ideais
para explicar o “caso brasileiro”, é a que mais agrada essas
camadas sociais.
Esse doloroso dilema é
encarnado pelo alter ego do cineasta, um personagem velho que viaja
pelo Brasil como um espectador do absurdo relatando o a vida nacional
com asco, e é de fato a voz do roteirista do filme. A leitura que
este personagem faz da realidade que vê tem fortes traços
fatalistas.
Já que, aos olhos do
artista, fomos condenados pelo Destino, como um personagem kafkiano,
a vagar por este inferno com risco de, de repente, ter uma morte sem
sentido e brutal, existiria alguma solução para pelo menos amenizar
esse fado? Para nos dar uma "solução", então o autor parece se projetar no personagem imigrante
de sangue polonês, trabalhador, que depois de sofrer muitas
injustiças e ver o podre da hipocrisia da classe média
filantrópica, bem intencionada e hipócrita, vê na defesa, pelo
menos verbal, do terrorismo como solução. Solução, niilista,
diga-se de passagem, tipicamente pequeno-burguesa: diante do
estranhamento no mundo social devastado, entendido como karma
existencial, a crítica moral mais contundente é o terrorismo
individual, com estética messiânica.
Fica claro que as
críticas progressistas que a obra tenta realizar, como o extermínio
indígena que fez surgir a farsa burguesa de unidade nacional
harmônica, a violência policial de um lado, e a hipocrisia das
elites ou subelites de outro, frente à miséria do povo, entre outras, não
escapam do viés fatalista, sem esperanças no povo ou na história.
Bianchi se torna uma metralhadora que atira em todos, sem perdão, ou
pelo menos, nos esteriótipos das classes e populações regionais
frutos de uma observação individual e parcial do artista, possivelmente feita dentro de seu carro com ar-condicionado e vidro fumê. Questões
importantes colocadas pelo filme como: como nossa formação e
configuração cultural e ideológica impactam na nossa história e
nossa atuação e escolhas políticas? Qual são as características
culturais das classes sociais brasileiras, suas contradições e
possibilidades? Entre outras, são escurecidas desde o início pelo
fatalismo irracional e estereotipado do artista. A arte aqui serve
mais para a expressão pura e simples da angústia do artista que
para uma busca concreta e coletiva de uma práxis transformadora das
contradições que nos rodeiam.
Terminando de ver o
filme, não há dúvidas: do fracasso nacional, culpado somos todos,
logo o culpado maior não há; somos todos vítimas, e ao mesmo tempo
cúmplices. Nossa história é uma tragédia, onde não cabem
explicações sócio-históricas como colonialismo, imperialismo...
Está mais para condição ontológica do que condição histórica.
Por isso precisamos nos mutilar moralmente, atacar nossa hipocrisia e
nossa má sorte, radicalizando às vezes, mas sem muita esperança.
Bem, são poucos que
podem ter este deleite martirizante que não deixa de ser
egocêntrico. Àqueles que a realidade não os deixam respirar e os
chamam a agir, não há tempo para crônicas quietistas. "A existência é um escândalo" nos dizia o jovem Sartre, e também parece nos dizer Bianchi, só que se referindo a existência brasileira. Só nos resta pensar se isso é uma dor agradável para aqueles que podem fugir dela numa férias em NY ou em Paris.
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