quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Leitura do capital: questões introdutórias, metodológicas e de fundo


Hugo Gellert

Todo conhecimento é orientação, toda descrição é prescrição, ordenamento.[...] O marxismo é a recapitulação do conhecimento da revolução. Por que escrever o Capital, centenas de páginas de análises minuciosas, de laboriosa inteligência, volumes de dialéticas que muitas vezes estão nos limites da inteligibilidade? Porque só assim pode-se chegar à profundidade do conhecimento revolucionário.
Alain Badiou
Sim. É essencial ler e estudar o Capital.  — Para realmente entender, em todo seu âmbito e conseqüências científicas e filosóficas, o que o os militantes proletários há muito entendem na prática: o caráter revolucionário da teoria marxista.  — Para defender essa teoria de todas as interpretações burguesas e pequeno-burguesas, ou seja, revisões que ameaçam-na seriamente hoje, principalmente a oposição economismo/humanismo.  — Para desenvolver a teoria marxista e prover os conceitos científicos indispensáveis à análise da luta de classes contemporânea, em nossos países e mundo afora.
Althusser
Por que e como ler o Capital? Não há questão mais complexa para um marxista. Em sua resposta pode estar consolidada toda uma base teórica, mas também, o que é mais sério, toda uma linha política, uma consequência prática irreversível. Pois, não podemos dizer o contrário, é no Capital que se fundamenta a cientificidade do socialismo enquanto modo de produção superior aos existentes até então.
Somente o marxismo alcançou tal façanha, romper com o socialismo utópico e fundar uma política revolucionária embasada numa ciência. Althusser nos diz que essa união entre uma ciência e o proletariado pode ser considerada o maior evento da história, algo sem precedentes em nossa espécie. Por quê? Porque são esses os elementos essenciais para se romper com a pré-história na qual a humanidade vive até hoje, nos mais diversos regimes de exploração e opressão. O Capital foi, é, e continuará a ser, durante muito tempo, até o fim da vigência da lei do valor e da produção das mercadorias, a obra mais importante para compreensão e transformação do mundo.
Antes de mais afirmações, vamos nos ater a alguns “fatos históricos” capazes de nos oferecer um contexto que possibilite uma maior compreensão do que vem a ser essa obra, o Capital, sua relevância e natureza.
Marx e Engels nasceram na Europa numa época revolucionário: consolidação desastrosa do capitalismo, passagem das revoluções burguesas para as revoluções proletárias. O primeiro nasceu em 1818, e o outro dois anos depois. Marx, provindo de uma família de judeus progressistas e liberais, cursou Direito e acabou indo para o lado da filosofia (doutoramento sobre materialismo em Epicuro e Demócrito). Depois iniciou sua atuação política, inicialmente no jornal burguês alemão progressista Gazeta Renana, depois em círculos socialistas. À época o mentor ideológico alemão era Hegel, que proliferava discípulos e contestadores. E esse fantasma de Hegel não deixou de influenciar esse dois grandes pensadores.
Retornando ao texto de Carlos Rios [http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/10/dialetica-e-marxismo.htmlsobre marxismo e dialética:
[...] o sistema de Hegel é uma estrutura de conceitos articulados em torno do conceito de razão. Em consonância com os princípios da Revolução Francesa o homem deveria ajustar a realidade segundo sua capacidade livre. [...] Para que esta razão presida a realidade é necessário que o ser, em sua substância, seja um “sujeito”. Por esta sentença Hegel queria dizer que toda a realidade é um processo e dentro dela todo ser um conjunto de forças contraditórias, eis aqui a negatividade antes mencionada. Por isso, pelo conceito de sujeito Hegel toma a definição de “eu”, de subjetividade, de consciência epistemológica (do conhecimento) usualmente acrescida do fato de que esta corresponde a um “modo de existência” no qual toda a unidade se autodesenvolve como processo contraditório. Ela toma consciência de si e da realidade para submetê-la à razão. É por isso que a figura do homem cumpre importante papel na filosofia hegeliana. Somente o homem poderia se auto realizar e ser um sujeito que se auto determina, somente suas faculdades racionais o permitem ter um conhecimento compreensivo da realidade e transformar as suas potencialidades. Somente o homem possui uma “subjetividade real”. É ela que torna subjetividade e mundo objetivo em um só, ser e sujeito.
O sistema de Hegel iguala, ou, pelo menos, acha que a tendência da história (teleologia) é igualar, a ontologia, o domínio do ser, da realidade, e a lógica, o domínio do discurso, do Logos, da razão. A história do real é a história da realização da razão, onde o Espírito se aliena, se concretiza no mundo, e retorna a sua posição subjetiva enriquecido. O homem é a encarnação do sentido da história, é o espírito retornando a sua origem racional, após um longo período de irracionalidade do mundo. O homem cumpre quase o papel de Deus a se fazer, e a finalidade da história é lhe dar liberdade/autonomia, pois ele detém a razão. A história nada mais é que a história de um sujeito.
Dentre os hegelianos, está Feuerbach, que influenciou durante anos o pensamento “marxista” (sobretudo nos Manuscritos de 44), e fundou a principal crítica de viés “revolucionário” ao sistema conservador e idealista de Hegel e seus seguidores de direita. Toda uma geração de jovens revolucionários e intelectuais se inspirou em sua crítica. Feuerbach, como o resto dos hegelianos de esquerda, substituía o plano do Espírito e do Absoluto pelo plano do sensível e do humano: revertia o idealismo hegeliano e o radicalizava para um humanismo ainda mais ferrenho, criando, no caso, uma antropologia naturalista. Onde Hegel via enriquecimento do Espírito, Feuerbach via alienação do homem; onde o primeiro via fim, o outro via meio; um via objeto, o outro sujeito, e assim vice-versa. Se em Hegel a religião e o Estado eram elementos necessários para o final da história, na antropologia naturalista só o homem era seu único sujeito e objeto: estava fundada, enfim, uma verdadeira religião do homem, o ponto máximo do humanismo, ideologia inaugurada na era renascentista, e extremamente necessária para a derrubada do feudalismo e surgimento da sociedade burguesa e sua “visão de mundo”.
Essa tomada do gênero humano como objeto teórico e político, instrumento de crítica social, foi uma das tantas formas de crítica utópica e ética da sociedade de classes. Aparentemente dialética e materialista, essa base dos hegelianos de esquerda, que nada mais é que um humanismo burguês radicalizado, impôs sérias limitações ideológicas à alternativa revolucionária. O humanismo se fundamenta numa pretensa natureza humana, que na verdade se demonstra muito mais uma natureza divina da teologia transporta para o terreno. Uma teologia do profano. Essa pretensa natureza individual precisa se realizar, segundo esses astutos pensadores, e para isso é necessário “lutar”, na forma da crítica racional contra os discursos alienantes e ideológicos, e contra as formas de “alienação humana”, como o Estado, Deus, Dinheiro. Esse ideário, anterior ao desenvolvimento do materialismo histórico, permanece vivo dentro de muitos “marxismos”, no anarquismo, na social-democracia.
A crítica do jovem Marx usada desse arcabouço humanista, antropológico e naturalista para explicar a realidade capitalista. Como demonstra Gorender, em sua apresentação ao Capital da editora Nova Cultural, “[...] evidencia-se portanto que Marx ainda não podia explicar a situação de desapossamento da classe operária por um processo de exploração, no lugar do qual o trabalho alienado constitui, em verdade, um processo de expropriação. Daí a impossibilidade de superar a concepção ética (não-científica) do comunismo.” (1996, p. 9).
Engels, filho de um industrial, não teve uma vida acadêmica tão formal como a de Marx, mas se destacou como grandioso autodidata e precoce socialista e estudioso da economia política. Na juventude também é acometido pelos rebentos hegelianos e liberais. Encontra-se com Marx já em círculos socialistas e juntos iniciam uma poderosa parceria. Inicialmente ambos os autores estão presos ao socialismo utópico, mais ou menos afundados no hegelianismo de esquerda. Mas de 45 a 48 uma forte autocrítica é realizada pelos dois autores, e uma nova guinada é realizada, na teoria e na política. A ideologia alemã, que presta contas sobretudo com as concepções errôneas de Feuerbach, e o Manifesto Comunista, encomendado pela Liga dos Comunistas, são o que Althusser chama de obras de ruptura, pois demarcam o momento mais ou menos longo de um profundo corte epistemológico, ou seja, uma mudança de paradigma, ou de problemática. Nessas duas obras é perceptível a troca do humanismo pelo que depois daria no materialismo histórico, que de maneira dialética engendra conceitos e teorias como modo de produção e relações de produção, luta de classes, trabalho produtivo e tantos outros. Os fundadores do marxismo viram que o terreno da histórica é marcado não por postulados éticos e finalidades racionais, focados na figura humana genérica ou nos indivíduos empíricos, mas por processos objetivos e pela atuação das massas, cuja primazia é a base material.
Encontramo-nos então com a necessidade da dupla de revolucionários de sustentar esse “econômico” (ampla base material com constantes influências da superestrutura) e sua função nas sociedades humanas, e obviamente na burguesa. Eis a tarefa de fechamento do materialismo histórico, e o objetivo principal do Capital. Para isso os autores, especialmente Marx, incumbido grande parte desta função, se debruçaram a estudar a “ciência” burguesa maior: a economia política, que à época, largava seu período clássico, progressista e entrava numa era decadente e apologética, que depois daria sustento às teorias marginalistas. O núcleo progressista da Economia política que será usado por Marx, e radicalmente transformado pelo descobrimento da mais-valia, será o que ficou conhecido como teoria do valor-trabalho.
E assim durante quase duas décadas de estudo no exílio londrino, com algumas interrupções, mas de árdua rotina, Marx sistematizou o pensamento econômico até os seus dias. O estudo “econômico” de Marx tinha dois principais rivais, que se mesclavam, obviamente, por possuírem ambos raízes ideológicas: a teoria burguesa (a economia política em si, como pensamento refinado e síntese da sociedade burguesa) e o proudhonismo, tentativa de crítica econômica da teoria burguesa em voga e de maior “envergadura”. A tarefa não era meramente teórica: a burguesia era a classe dominante no momento, assim como os anarquismos eram as correntes mais poderosas no movimento operário, ainda em sua infância (AIT-Comuna).
Além de partir da situação econômica dada e não do homem, analisando processos e relações e não indivíduos, outra diferença fundamental dessa fase madura do materialismo histórico é o que pode-se chamar de “método”. Se na fase do jovem Marx, o concreto era entendido como empírico, sensível, aqui o concreto aparece como síntese. Pois a análise científica deve “ir do abstrato ao concreto” – por isso mesmo começar com a mercadoria, o valor, e não pela população, por exemplo. E mais: Marx diferencia claramente o concreto do pensamento do concreto real (ou como diz Gorender, desassocia a lógica da ontologia), rompendo de vez com a problemática (também hegeliana) da teoria do conhecimento e da teoria moderna. Isso porque essa diferenciação rompe com a tensão entre um sujeito que tenta desvelar um objeto, do velho mito da fusão entre Logos e Ser. A diferença entre o concreto real e o concreto pensado não é o retorno à noção kantiana de incognoscibilidade e seu consequente ceticismo: pelo contrário, é sua completa quebra, pois vê o conhecimento não como um pedaço do real a ser descoberto. Como diz Marx: “o objeto real existe fora do sujeito, independentemente do processo do conhecimento”. Ou como já dizia Spinoza: “a ideia de círculo não deve ser confundida com um círculo”. O concreto real é história, possível de transformação efetiva e não fantasmas e transcendências. Já o concreto pensado é um instrumento construído, a partir da apropriação e reprodução da realidade no pensamento, e necessário para analisar a realidade, caótica inicialmente. Assim “o pensamento se manifesta através da ativa intervenção espiritual que realiza o trabalho infindável do conhecimento”, novamente Gorender (p. 23). Assim não só some a dicotomia entre sujeito e objeto, mas também elas se tornam desnecessárias, pois os planos de análise são diversos. Por isso mesmo o Capital lança bases, além de uma nova ciência da história uma nova filosofia/prática filosófica em ação.
Nesse sentido, o Capital possui um objeto abstrato (que não é o mesmo que especulativo, como o jovem Marx entendia, assim como o empírico não é o concreto do pensamento) e por isso mesmo lida com tendências gerais/lógicas. A pretensão de Marx é criar um concreto pensado, que não é a mesma coisa que um objeto real. O objeto do Capital é o modo de produção capitalista, caminho necessário para compreender o concreto real das diversas formações sociais capitalistas no decorrer do tempo e do globo.
O capital é de fato síntese de um logo processo, um exemplo real desse concreto pensado. Desde Miséria da filosofia, rompimento com Proudhon, em 47, Marx refina o que depois viria a ser o Capital, num trabalho incansável, que custará sua saúde e a condição de vida de sua família.
Podemos traçar pelo menos três obras que foram frutos da fase de elaboração do capital: Os Grundisse – 57/58 (Esboços fundamentais da crítica da economia político, com tons bastantes hegelianos e ricardianos); Para a crítica da economia política 59, que seria condensado para o Capital; e o próprio Capital – livro primeiro 67, livro segundo 85, livro terceiro 94, Engels e livro quarto (Teorias da mais-valia) Kautsky depois URSS. Nos planos iniciais o Capital ainda incluiria tomos específicos sobre o Estado, O comércio internacional, o mercado mundial e as crises. Por isso pode-se dizer que é uma obra incompleta.
Incompleta como a tarefa do proletariado em nossos dias. Fica claro assim o dever de estudá-la profunda e seriamente, compreender seu núcleo e proposta para que seja possível uma linha política justa e uma verdadeira continuidade dos esforços dos fundadores do materialismo história.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Resenha: “A ciência do ‘capital’”. Étienne Balibar. (Tradução de Maria da Glória Ribeiro da Silva)




     O objetivo do texto de Balibar é discutir a ciência nova surgida com a produção da obra “O Capital”. A partir de um objeto de estudo específico surge simultaneamente uma concepção de história que se opõe às formas de concebê-las até então existentes. Ele ressalta esta contribuição ao mesmo tempo em que critica as concepções que credenciam a “O Capital” um estudo do modo de produção capitalista a ser completado com o estudo de outros objetos. Aí é que residiria o fulcro de um vulcão, aquele do debate referente á metodologia adotada em “O Capital”, nas palavras de Balibar:

     “(...) é precisamente aí que vêm se alojar discussões intermináveis da seguinte questão: o método de Marx, considerado adequado para um objeto determinado (a grosso modo as características econômicas do capitalismo clássico) não fracassam diante de outros objetos?”

    Tal perspectiva abre uma porta para a necessidade de uma filosofia da história marxista que toma por fundamento a ciência da história. Assim o núcleo da obra “O Capital” seria completado e estendido pouco a pouco com, sob a tutela, se assim quisermos entender, de uma “filosofia materialista”. Ao identificar tal via para autenticar a cientificidade da obra de Marx, Balibar então indica o risco ideológico deste caminho e abre, por tanto, outra porta: a busca ciência do capital abordada por ele no texto.

     Para tal análise o autor problematiza a relação, que encobre certa superficialidade, entre uma filosofia da história e uma história empírica. De certo modo ambas adotam a atitude de elevar entraves de uma a outra, ou seja, da filosofia da história subsumir o empírico histórico e da análise empírica inviabilizar o “movimento geral” ou o “universal histórico”. Tal imobilismo conflitivo é expressão de duas dimensões artificializadas que representam meras distinções de grandeza ou escala num constante jogo de geral-particular.

     A obra de Marx, no entanto, parte de uma interação que analisa uma “estrutura de processo” que relaciona conseguintemente a abstração geral do modo de produção com o concreto das formações sociais. Aqui o autor adverte para a distinção existente entre a estrutura presente em “O Capital” e a “estrutura” do estruturalismo. Esta última, grosso modo, parece subsumir a forma empírica que é definida como “processual” o que lhe dá certo caráter metafísico e kantiano. A implicação de tal distinção revela que a “estrutura do processo” de “O Capital” se manifesta em três processos básicos e concomitantes, implicados uns nos outros.

     O primeiro é o “ciclo da metamorfose de ‘O Capital’” presente na expressão:

     

O processo de produção descrito na expressão acima, citada por Balibar no texto, demonstra uma relação concreta dentro do modo de produção capitalista entre as forças produtivas e as relações de produção na interação entre trabalho (T) e meios de produção (MP) na extração de mais-valia. O segundo trata-se de dois processos superpostos: o processo de trabalho (em alemão arbeitprozesess) e o processo de valorização (em alemão vewertungsprozesess). O processo de produção é duplo e esta concepção vincula-se a distinção entre valor de uso e valor de troca[2]. O terceiro é o sistema de relações entre os dois processos acima mencionados, a estrutura do capital, combinação entre forças produtivas (arremete ao processo de trabalho) e relações  de produção (arremete à valorização do capital).

     Os três processos, ou três formas, constituem um todo estruturado que corresponde a um só sistema. Tal aspecto define a estrutura de “O Capital”, porém o autor ressalta algumas importantes considerações adicionais para este entendimento. Tentaremos expor um quadro sumário delas abaixo:

a) “(...) o modo de produção é um sistema de relações entre forças produtivas e relações de produção (...)” [3]
b) As relações de produção não se confundem com as formas jurídicas que dão forma na superestrutura às relações de propriedade.
c) As forças produtivas não se limitam à técnica, esta entendida como “instrumentos técnicos de produção”.  “As forças produtivas devem ser entendidas como formas de organização material o processo de trabalho e os meios de trabalho constituem apenas um elemento dele (...)”[4].
d) “(...) ‘forças produtivas’ e ‘modo de produção’ sejam pensados um e outro  como sistemas de relações, definidas de maneira específica em cada modo de produção, segundo uma necessária periodização.”[5]
e) Após analisar cada sistema de relações específicas devem ser estudadas a relações resultantes da interação entre elas.

Balibar alerta sobre a já mencionada dupla natureza do processo de produção. Este fato constitui uma abordagem que destaca a combinação entre forças produtivas e relações de produção. Sendo assim, existe uma interdependência entre “os momentos do processo de trabalho” e os “momentos do processo de valorização”. Ou seja, o processo de trabalho não pode ser pensado separado da produção de mais-valia, não existe justaposição de forças produtivas e formas de relações de produção, não podemos enfileira-las e com isso acharmos que compreendemos a sua dinâmica.

     Neste aspecto, parece que a compreensão da forma de valorização da mercadoria no ciclo de metamorfose do capital só explica e só pode ser explicada atentando para a organização do trabalho, para as técnicas empregadas, e demais fatores. Em resumo, desta interdependência, destas relações, as forças produtivas não podem ser analisadas como uma camada exógena, ou autônoma, dentro dos fenômenos econômicos. Ao afirmar isto Balibar refere-se ao fato de que as forças produtivas não sejam deslocadas de seu contexto relacional e enfocadas pelo instrumental teórico da economia política que é justamente criticada por Marx em “O Capital”.

Como consequência do citado “caráter duplo” torna-se inviável estudar os fenômenos de cada modo de produção diretamente, toma-los por si mesmos. Deve-se levar em conta de que forma em cada modo de produção se estabelecem as relações do duplo processo de produção. Uma observação salutar que desautoriza a economia política burguesa que tenta criar conceitos operatórios a-históricos sem se deter a tais implicações. Seguem alguns fragmentos significativos sobre isto:

 “Uma das ideias mais importantes que se pode tirar da leitura de O Capital como obra de teoria abstrata, é que o tipo de fenômenos econômicos de que se trata nos diferentes modos de produção não é imediatamente semelhante; não há homogeneidade na natureza dos fenômenos de um modo de produção e outro.”

“É então impossível fazer a economia do nível da estrutura, isto é, proceder a uma análise ‘direta’ dos fenômenos ‘econômicos’, (...) É necessário descobrir cada vez, para poder conhecer um modo de produção por seu conceito, a forma de que se reveste nele o duplo processo de que eu falava anteriormente.”                                                      

     Após este estudo o autor salienta duas questões finais que vinculam a ciência da história com os seus efeitos na ideologia. A primeira trata-se da “transição histórica”: como ocorre a mudança de um modo de produção a outro? Esta é a questão de fundo que subjaz a reflexão do autor que abre caminho com a indicação de que não há “soluções de facilidade”. Por esta afirmação ele expõe que o conceito de modo de produção não é suscetível a supostas “leis de tendências” nem uma “cronologia histórica”, ou seja, ele repele explicações de conteúdo historicista e evolucionistas. Tal constatação abre espaço para que o autor apoie-se em Lenin e destaque que as formações sociais concretas se fundam em vários modos de produção simultaneamente tomando, por exemplo, a questão agrária.

     Sobre isto se refere a questão das fases de transição ou das transformações revolucionárias do modo de produção dominante. O autor ilustra este ponto fazendo menção ao capítulo de “O capital” sobre a manufatura. Este tema envolve as relações de produção e a forma como se estrutura o modo de produção capitalista quando suas forças produtivas pertencem (foram “herdadas”) do modo de produção anterior. Este debate vincula-se a transição da subsunção formal do trabalho ao capital para a subsunção real do trabalho ao capital[6] e é uma expressão teórica desta problemática segundo Balibar.

     A segunda questão trata da história ideológica, de como uma teoria ideológica da história se plasma no modo de produção capitalista. Sobre este tema o ponto chave são as relações de produção estruturadas no modo de produção sob a qual não existe origem nem fim. Para ilustrar esta ideia aparentemente obscura Balibar lança mão da distância entre a realidade e o mito da acumulação primitiva. Ou seja, o discurso ideológico da representação burguesa das origens do capitalismo fundado no “trabalho pessoal” como produtor dos primeiros dos primeiros meios de produção e a realidade da apropriação violenta aberta ou disfarçada.

     A distância entre estas representações abre espaço para várias leituras. Uma delas é a da legitimidade jurídica necessária à reprodução, de um lado, e a exata representação de seu funcionamento de outro. Tal representação requer um modo distinto de pesquisa que busca o “começo” e não a “origem”, quer dizer, ela se afasta de imagens pré-formadas pelo campo ideológico.

     Outra forma de leitura é o estudo sobre a distância entre as relações sociais de produção e as formas jurídicas, fator já advertido por Balibar exposto com mais detalhamento. As formas jurídicas velam como máscaras pelas relações de produção e ao mesmo tempo são as suas expressões. Velam porque legitimam ideologicamente a reprodução do modo de produção, está claro. Porém, são expressões porque é por meio da linguagem jurídica que as classes se tornam indivíduos, pessoas, situados no sistema do direito, de propriedade, ou seja, se tornam sujeitos. Tais formas jurídicas trazem consigo um sistema ideológico nelas implicado. Sobre este ponto cabe o seguinte fragmento bastante significativo:

     “São, por tanto, as formas jurídicas que representam para  todos os protagonistas do processo de produção, tanto para os trabalhadores assalariados quanto para os capitalistas, o  processo de exploração do trabalho como um processo de troca entre e equivalentes ou como um contrato e induzem necessariamente ao mito da acumulação primitiva.” [7]

     Por fim, a terceira leitura possível destacada refere-se ao fato de que a reprodução do modo de produção capitalista apaga o “problema de seu começo”, quer dizer, o das fases de transição. O modo de produção opera “independente de suas origens”. Deste modo, a “defasagem” entre o processo de produção e sua representação jurídica mais uma vez atua na reprodução. E esta questão revela uma dificuldade adicional para o estudo do modo de produção capitalista.

     Por toda a exposição de Balibar a reflexão sobre a ciência fundada por Marx e a distinção dela com a ideologia da história ganha importante patamar. O ponto em destaque é o aspecto indutor do modo de produção capitalista de tal ideologia como condição de possibilidade. Para compreendê-lo foi necessário compreender o conceito de modo de produção como uma estrutura de processo onde sistemas de processos interagem entre si como já se aludiu aqui. Esta é a “articulação entre a base econômica e a superestrutura”.

     Uma observação final: O texto termina com uma consideração um tanto enigmática. Vale transcreve-la:

     “Eu não quis nada além de exibir este círculo necessário que, saído da ideologia da história, nos traz a ela agora. Quanto à questão: por que o círculo? é uma outra questão que não vem da história, mesmo teórica, mas da filosofia ou do materialismo dialético.” [8]

Balibar parece expor a partir da ideologia da história sua natureza “cíclica” com a reprodução do modo de produção capitalista, porém para entender o porquê de tal “círculo” devemos buscar respostas no materialismo dialético ou filosofia, como que o autor. A olhos atentos tal indicação será melhor entendida com algum texto adicional do autor sobre este ponto preciso.



[1] BALIBAR, Étienne. A ciência do “capital”. Em: In Le Centenaire du Capital Paris, Mouton, 1969.
[2] Tal duplicidade estabelece vínculo com o texto “O Duplo caráter do trabalho materializado na mercadoria” onde Marx atenta para a distinção entre o trabalho em sua dimensão concreta, qualitativa, e a outra como trabalho humano abstrato, quantitativa. Para mais detalhes ver: MARX, Karl. O duplo caráter do trabalho materializado na mercadoria; Em: O capital. Crítica da economia política. Livro primeiro, parte primeira. Rio de Janeiro-RJ, Bertrad Brasil, 1988.   
[3] BALIBAR, Étienne. Obra citada, pág; ??.
[4] Idem
[5] Idem
[6] Uma abordagem didática e acessível deste tema encontra-se no texto de Márcio Bilharinho Naves. Para mas detalhes ver: NAVES, Márcio Bilharinho. Marx: ciência e revolução. São Paulo: Moderna, campinas, SP: Editora da Universidade de Campinas, 2000, páginas 68 à 71.
[7] BALIBAR, Étienne. Obra citada, pág; ??.

[8] Idem.