sábado, 12 de janeiro de 2013

Resenha: “A ciência do ‘capital’”. Étienne Balibar. (Tradução de Maria da Glória Ribeiro da Silva)




     O objetivo do texto de Balibar é discutir a ciência nova surgida com a produção da obra “O Capital”. A partir de um objeto de estudo específico surge simultaneamente uma concepção de história que se opõe às formas de concebê-las até então existentes. Ele ressalta esta contribuição ao mesmo tempo em que critica as concepções que credenciam a “O Capital” um estudo do modo de produção capitalista a ser completado com o estudo de outros objetos. Aí é que residiria o fulcro de um vulcão, aquele do debate referente á metodologia adotada em “O Capital”, nas palavras de Balibar:

     “(...) é precisamente aí que vêm se alojar discussões intermináveis da seguinte questão: o método de Marx, considerado adequado para um objeto determinado (a grosso modo as características econômicas do capitalismo clássico) não fracassam diante de outros objetos?”

    Tal perspectiva abre uma porta para a necessidade de uma filosofia da história marxista que toma por fundamento a ciência da história. Assim o núcleo da obra “O Capital” seria completado e estendido pouco a pouco com, sob a tutela, se assim quisermos entender, de uma “filosofia materialista”. Ao identificar tal via para autenticar a cientificidade da obra de Marx, Balibar então indica o risco ideológico deste caminho e abre, por tanto, outra porta: a busca ciência do capital abordada por ele no texto.

     Para tal análise o autor problematiza a relação, que encobre certa superficialidade, entre uma filosofia da história e uma história empírica. De certo modo ambas adotam a atitude de elevar entraves de uma a outra, ou seja, da filosofia da história subsumir o empírico histórico e da análise empírica inviabilizar o “movimento geral” ou o “universal histórico”. Tal imobilismo conflitivo é expressão de duas dimensões artificializadas que representam meras distinções de grandeza ou escala num constante jogo de geral-particular.

     A obra de Marx, no entanto, parte de uma interação que analisa uma “estrutura de processo” que relaciona conseguintemente a abstração geral do modo de produção com o concreto das formações sociais. Aqui o autor adverte para a distinção existente entre a estrutura presente em “O Capital” e a “estrutura” do estruturalismo. Esta última, grosso modo, parece subsumir a forma empírica que é definida como “processual” o que lhe dá certo caráter metafísico e kantiano. A implicação de tal distinção revela que a “estrutura do processo” de “O Capital” se manifesta em três processos básicos e concomitantes, implicados uns nos outros.

     O primeiro é o “ciclo da metamorfose de ‘O Capital’” presente na expressão:

     

O processo de produção descrito na expressão acima, citada por Balibar no texto, demonstra uma relação concreta dentro do modo de produção capitalista entre as forças produtivas e as relações de produção na interação entre trabalho (T) e meios de produção (MP) na extração de mais-valia. O segundo trata-se de dois processos superpostos: o processo de trabalho (em alemão arbeitprozesess) e o processo de valorização (em alemão vewertungsprozesess). O processo de produção é duplo e esta concepção vincula-se a distinção entre valor de uso e valor de troca[2]. O terceiro é o sistema de relações entre os dois processos acima mencionados, a estrutura do capital, combinação entre forças produtivas (arremete ao processo de trabalho) e relações  de produção (arremete à valorização do capital).

     Os três processos, ou três formas, constituem um todo estruturado que corresponde a um só sistema. Tal aspecto define a estrutura de “O Capital”, porém o autor ressalta algumas importantes considerações adicionais para este entendimento. Tentaremos expor um quadro sumário delas abaixo:

a) “(...) o modo de produção é um sistema de relações entre forças produtivas e relações de produção (...)” [3]
b) As relações de produção não se confundem com as formas jurídicas que dão forma na superestrutura às relações de propriedade.
c) As forças produtivas não se limitam à técnica, esta entendida como “instrumentos técnicos de produção”.  “As forças produtivas devem ser entendidas como formas de organização material o processo de trabalho e os meios de trabalho constituem apenas um elemento dele (...)”[4].
d) “(...) ‘forças produtivas’ e ‘modo de produção’ sejam pensados um e outro  como sistemas de relações, definidas de maneira específica em cada modo de produção, segundo uma necessária periodização.”[5]
e) Após analisar cada sistema de relações específicas devem ser estudadas a relações resultantes da interação entre elas.

Balibar alerta sobre a já mencionada dupla natureza do processo de produção. Este fato constitui uma abordagem que destaca a combinação entre forças produtivas e relações de produção. Sendo assim, existe uma interdependência entre “os momentos do processo de trabalho” e os “momentos do processo de valorização”. Ou seja, o processo de trabalho não pode ser pensado separado da produção de mais-valia, não existe justaposição de forças produtivas e formas de relações de produção, não podemos enfileira-las e com isso acharmos que compreendemos a sua dinâmica.

     Neste aspecto, parece que a compreensão da forma de valorização da mercadoria no ciclo de metamorfose do capital só explica e só pode ser explicada atentando para a organização do trabalho, para as técnicas empregadas, e demais fatores. Em resumo, desta interdependência, destas relações, as forças produtivas não podem ser analisadas como uma camada exógena, ou autônoma, dentro dos fenômenos econômicos. Ao afirmar isto Balibar refere-se ao fato de que as forças produtivas não sejam deslocadas de seu contexto relacional e enfocadas pelo instrumental teórico da economia política que é justamente criticada por Marx em “O Capital”.

Como consequência do citado “caráter duplo” torna-se inviável estudar os fenômenos de cada modo de produção diretamente, toma-los por si mesmos. Deve-se levar em conta de que forma em cada modo de produção se estabelecem as relações do duplo processo de produção. Uma observação salutar que desautoriza a economia política burguesa que tenta criar conceitos operatórios a-históricos sem se deter a tais implicações. Seguem alguns fragmentos significativos sobre isto:

 “Uma das ideias mais importantes que se pode tirar da leitura de O Capital como obra de teoria abstrata, é que o tipo de fenômenos econômicos de que se trata nos diferentes modos de produção não é imediatamente semelhante; não há homogeneidade na natureza dos fenômenos de um modo de produção e outro.”

“É então impossível fazer a economia do nível da estrutura, isto é, proceder a uma análise ‘direta’ dos fenômenos ‘econômicos’, (...) É necessário descobrir cada vez, para poder conhecer um modo de produção por seu conceito, a forma de que se reveste nele o duplo processo de que eu falava anteriormente.”                                                      

     Após este estudo o autor salienta duas questões finais que vinculam a ciência da história com os seus efeitos na ideologia. A primeira trata-se da “transição histórica”: como ocorre a mudança de um modo de produção a outro? Esta é a questão de fundo que subjaz a reflexão do autor que abre caminho com a indicação de que não há “soluções de facilidade”. Por esta afirmação ele expõe que o conceito de modo de produção não é suscetível a supostas “leis de tendências” nem uma “cronologia histórica”, ou seja, ele repele explicações de conteúdo historicista e evolucionistas. Tal constatação abre espaço para que o autor apoie-se em Lenin e destaque que as formações sociais concretas se fundam em vários modos de produção simultaneamente tomando, por exemplo, a questão agrária.

     Sobre isto se refere a questão das fases de transição ou das transformações revolucionárias do modo de produção dominante. O autor ilustra este ponto fazendo menção ao capítulo de “O capital” sobre a manufatura. Este tema envolve as relações de produção e a forma como se estrutura o modo de produção capitalista quando suas forças produtivas pertencem (foram “herdadas”) do modo de produção anterior. Este debate vincula-se a transição da subsunção formal do trabalho ao capital para a subsunção real do trabalho ao capital[6] e é uma expressão teórica desta problemática segundo Balibar.

     A segunda questão trata da história ideológica, de como uma teoria ideológica da história se plasma no modo de produção capitalista. Sobre este tema o ponto chave são as relações de produção estruturadas no modo de produção sob a qual não existe origem nem fim. Para ilustrar esta ideia aparentemente obscura Balibar lança mão da distância entre a realidade e o mito da acumulação primitiva. Ou seja, o discurso ideológico da representação burguesa das origens do capitalismo fundado no “trabalho pessoal” como produtor dos primeiros dos primeiros meios de produção e a realidade da apropriação violenta aberta ou disfarçada.

     A distância entre estas representações abre espaço para várias leituras. Uma delas é a da legitimidade jurídica necessária à reprodução, de um lado, e a exata representação de seu funcionamento de outro. Tal representação requer um modo distinto de pesquisa que busca o “começo” e não a “origem”, quer dizer, ela se afasta de imagens pré-formadas pelo campo ideológico.

     Outra forma de leitura é o estudo sobre a distância entre as relações sociais de produção e as formas jurídicas, fator já advertido por Balibar exposto com mais detalhamento. As formas jurídicas velam como máscaras pelas relações de produção e ao mesmo tempo são as suas expressões. Velam porque legitimam ideologicamente a reprodução do modo de produção, está claro. Porém, são expressões porque é por meio da linguagem jurídica que as classes se tornam indivíduos, pessoas, situados no sistema do direito, de propriedade, ou seja, se tornam sujeitos. Tais formas jurídicas trazem consigo um sistema ideológico nelas implicado. Sobre este ponto cabe o seguinte fragmento bastante significativo:

     “São, por tanto, as formas jurídicas que representam para  todos os protagonistas do processo de produção, tanto para os trabalhadores assalariados quanto para os capitalistas, o  processo de exploração do trabalho como um processo de troca entre e equivalentes ou como um contrato e induzem necessariamente ao mito da acumulação primitiva.” [7]

     Por fim, a terceira leitura possível destacada refere-se ao fato de que a reprodução do modo de produção capitalista apaga o “problema de seu começo”, quer dizer, o das fases de transição. O modo de produção opera “independente de suas origens”. Deste modo, a “defasagem” entre o processo de produção e sua representação jurídica mais uma vez atua na reprodução. E esta questão revela uma dificuldade adicional para o estudo do modo de produção capitalista.

     Por toda a exposição de Balibar a reflexão sobre a ciência fundada por Marx e a distinção dela com a ideologia da história ganha importante patamar. O ponto em destaque é o aspecto indutor do modo de produção capitalista de tal ideologia como condição de possibilidade. Para compreendê-lo foi necessário compreender o conceito de modo de produção como uma estrutura de processo onde sistemas de processos interagem entre si como já se aludiu aqui. Esta é a “articulação entre a base econômica e a superestrutura”.

     Uma observação final: O texto termina com uma consideração um tanto enigmática. Vale transcreve-la:

     “Eu não quis nada além de exibir este círculo necessário que, saído da ideologia da história, nos traz a ela agora. Quanto à questão: por que o círculo? é uma outra questão que não vem da história, mesmo teórica, mas da filosofia ou do materialismo dialético.” [8]

Balibar parece expor a partir da ideologia da história sua natureza “cíclica” com a reprodução do modo de produção capitalista, porém para entender o porquê de tal “círculo” devemos buscar respostas no materialismo dialético ou filosofia, como que o autor. A olhos atentos tal indicação será melhor entendida com algum texto adicional do autor sobre este ponto preciso.



[1] BALIBAR, Étienne. A ciência do “capital”. Em: In Le Centenaire du Capital Paris, Mouton, 1969.
[2] Tal duplicidade estabelece vínculo com o texto “O Duplo caráter do trabalho materializado na mercadoria” onde Marx atenta para a distinção entre o trabalho em sua dimensão concreta, qualitativa, e a outra como trabalho humano abstrato, quantitativa. Para mais detalhes ver: MARX, Karl. O duplo caráter do trabalho materializado na mercadoria; Em: O capital. Crítica da economia política. Livro primeiro, parte primeira. Rio de Janeiro-RJ, Bertrad Brasil, 1988.   
[3] BALIBAR, Étienne. Obra citada, pág; ??.
[4] Idem
[5] Idem
[6] Uma abordagem didática e acessível deste tema encontra-se no texto de Márcio Bilharinho Naves. Para mas detalhes ver: NAVES, Márcio Bilharinho. Marx: ciência e revolução. São Paulo: Moderna, campinas, SP: Editora da Universidade de Campinas, 2000, páginas 68 à 71.
[7] BALIBAR, Étienne. Obra citada, pág; ??.

[8] Idem.

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