O objetivo do texto de Balibar é discutir a
ciência nova surgida com a produção da obra “O Capital”. A partir de um objeto
de estudo específico surge simultaneamente uma concepção de história que se
opõe às formas de concebê-las até então existentes. Ele ressalta esta
contribuição ao mesmo tempo em que critica as concepções que credenciam a “O
Capital” um estudo do modo de produção capitalista a ser completado com o
estudo de outros objetos. Aí é que residiria o fulcro de um vulcão, aquele do
debate referente á metodologia adotada em “O Capital”, nas palavras de Balibar:
“(...) é precisamente aí que vêm se alojar
discussões intermináveis da seguinte questão: o método de Marx, considerado
adequado para um objeto determinado (a grosso modo as características
econômicas do capitalismo clássico) não fracassam diante de outros objetos?”
Tal
perspectiva abre uma porta para a necessidade de uma filosofia da história
marxista que toma por fundamento a ciência da história. Assim o núcleo da obra
“O Capital” seria completado e estendido pouco a pouco com, sob a tutela, se
assim quisermos entender, de uma “filosofia materialista”. Ao identificar tal
via para autenticar a cientificidade da obra de Marx, Balibar então indica o
risco ideológico deste caminho e abre, por tanto, outra porta: a busca ciência
do capital abordada por ele no texto.
Para tal análise o autor problematiza a
relação, que encobre certa superficialidade, entre uma filosofia da história e
uma história empírica. De certo modo ambas adotam a atitude de elevar entraves
de uma a outra, ou seja, da filosofia da história subsumir o empírico histórico
e da análise empírica inviabilizar o “movimento geral” ou o “universal
histórico”. Tal imobilismo conflitivo é expressão de duas dimensões
artificializadas que representam meras distinções de grandeza ou escala num
constante jogo de geral-particular.
A obra de Marx, no entanto, parte de uma
interação que analisa uma “estrutura de processo” que relaciona
conseguintemente a abstração geral do modo de produção com o concreto das
formações sociais. Aqui o autor adverte para a distinção existente entre a
estrutura presente em “O Capital” e a “estrutura” do estruturalismo. Esta
última, grosso modo, parece subsumir a forma empírica que é definida como
“processual” o que lhe dá certo caráter metafísico e kantiano. A implicação de
tal distinção revela que a “estrutura do processo” de “O Capital” se manifesta
em três processos básicos e concomitantes, implicados uns nos outros.
O primeiro é o “ciclo da metamorfose de ‘O
Capital’” presente na expressão:
O processo de
produção descrito na expressão acima, citada por Balibar no texto, demonstra
uma relação concreta dentro do modo de produção capitalista entre as forças
produtivas e as relações de produção na interação entre trabalho (T) e meios de
produção (MP) na extração de mais-valia. O segundo trata-se de dois processos
superpostos: o processo de trabalho (em alemão arbeitprozesess) e o processo de valorização (em alemão vewertungsprozesess). O processo de
produção é duplo e esta concepção vincula-se a distinção entre valor de uso e
valor de troca[2].
O terceiro é o sistema de relações entre os dois processos acima mencionados, a
estrutura do capital, combinação entre forças produtivas (arremete ao processo
de trabalho) e relações de produção
(arremete à valorização do capital).
Os três processos, ou três formas,
constituem um todo estruturado que corresponde a um só sistema. Tal aspecto
define a estrutura de “O Capital”, porém o autor ressalta algumas importantes
considerações adicionais para este entendimento. Tentaremos expor um quadro
sumário delas abaixo:
a) “(...) o modo de produção é
um sistema de relações entre forças produtivas e relações de produção (...)” [3]
b) As relações de produção não
se confundem com as formas jurídicas que dão forma na superestrutura às
relações de propriedade.
c) As forças produtivas não se
limitam à técnica, esta entendida como “instrumentos técnicos de
produção”. “As forças produtivas devem
ser entendidas como formas de organização material o processo de trabalho e os
meios de trabalho constituem apenas um
elemento dele (...)”[4].
d)
“(...) ‘forças produtivas’ e ‘modo de produção’ sejam pensados
um e outro como sistemas de relações, definidas de maneira específica em cada modo
de produção, segundo uma necessária periodização.”[5]
e)
Após analisar cada sistema de relações específicas devem ser
estudadas a relações resultantes da interação entre elas.
Balibar
alerta sobre a já mencionada dupla natureza do processo de produção. Este fato constitui
uma abordagem que destaca a combinação entre forças produtivas e relações de
produção. Sendo assim, existe uma interdependência entre “os momentos do
processo de trabalho” e os “momentos do processo de valorização”. Ou seja, o
processo de trabalho não pode ser pensado separado da produção de mais-valia,
não existe justaposição de forças produtivas e formas de relações de produção,
não podemos enfileira-las e com isso acharmos que compreendemos a sua dinâmica.
Neste aspecto, parece que a compreensão da
forma de valorização da mercadoria no ciclo de metamorfose do capital só
explica e só pode ser explicada atentando para a organização do trabalho, para
as técnicas empregadas, e demais fatores. Em resumo, desta interdependência,
destas relações, as forças produtivas não podem ser analisadas como uma camada
exógena, ou autônoma, dentro dos fenômenos econômicos. Ao afirmar isto Balibar
refere-se ao fato de que as forças produtivas não sejam deslocadas de seu
contexto relacional e enfocadas pelo instrumental teórico da economia política
que é justamente criticada por Marx em “O Capital”.
Como
consequência do citado “caráter duplo” torna-se inviável estudar os fenômenos
de cada modo de produção diretamente, toma-los por si mesmos. Deve-se levar em
conta de que forma em cada modo de produção se estabelecem as relações do duplo
processo de produção. Uma observação salutar que desautoriza a economia
política burguesa que tenta criar conceitos operatórios a-históricos sem se
deter a tais implicações. Seguem alguns fragmentos significativos sobre isto:
“Uma das ideias mais importantes que se pode tirar
da leitura de O Capital como obra de teoria abstrata, é que o tipo de fenômenos
econômicos de que se trata nos diferentes modos de produção não é imediatamente
semelhante; não há homogeneidade na natureza dos fenômenos de um modo de produção
e outro.”
“É
então impossível fazer a economia do nível da estrutura, isto é, proceder a uma
análise ‘direta’ dos fenômenos ‘econômicos’, (...) É necessário descobrir cada
vez, para poder conhecer um modo de produção por seu conceito, a forma de que
se reveste nele o duplo processo de que eu falava anteriormente.”
Após este estudo o autor salienta duas
questões finais que vinculam a ciência da história com os seus efeitos na
ideologia. A primeira trata-se da “transição histórica”: como ocorre a mudança
de um modo de produção a outro? Esta é a questão de fundo que subjaz a reflexão
do autor que abre caminho com a indicação de que não há “soluções de
facilidade”. Por esta afirmação ele expõe que o conceito de modo de produção
não é suscetível a supostas “leis de tendências” nem uma “cronologia
histórica”, ou seja, ele repele explicações de conteúdo historicista e
evolucionistas. Tal constatação abre espaço para que o autor apoie-se em Lenin
e destaque que as formações sociais concretas se fundam em vários modos de
produção simultaneamente tomando, por exemplo, a questão agrária.
Sobre isto se refere a questão das fases de
transição ou das transformações revolucionárias do modo de produção dominante.
O autor ilustra este ponto fazendo menção ao capítulo de “O capital” sobre a
manufatura. Este tema envolve as relações de produção e a forma como se
estrutura o modo de produção capitalista quando suas forças produtivas
pertencem (foram “herdadas”) do modo de produção anterior. Este debate vincula-se
a transição da subsunção formal do trabalho ao capital para a subsunção real do
trabalho ao capital[6] e é uma expressão teórica desta
problemática segundo Balibar.
A segunda questão trata da história ideológica,
de como uma teoria ideológica da história se plasma no modo de produção
capitalista. Sobre este tema o ponto chave são as relações de produção estruturadas
no modo de produção sob a qual não existe origem nem fim. Para ilustrar esta
ideia aparentemente obscura Balibar lança mão da distância entre a realidade e
o mito da acumulação primitiva. Ou seja, o discurso ideológico da representação
burguesa das origens do capitalismo fundado no “trabalho pessoal” como produtor
dos primeiros dos primeiros meios de produção e a realidade da apropriação
violenta aberta ou disfarçada.
A distância entre estas representações abre
espaço para várias leituras. Uma delas é a da legitimidade jurídica necessária
à reprodução, de um lado, e a exata representação de seu funcionamento de outro.
Tal representação requer um modo distinto de pesquisa que busca o “começo” e
não a “origem”, quer dizer, ela se afasta de imagens pré-formadas pelo campo
ideológico.
Outra forma de leitura é o estudo sobre a
distância entre as relações sociais de produção e as formas jurídicas, fator já
advertido por Balibar exposto com mais detalhamento. As formas jurídicas velam
como máscaras pelas relações de produção e ao mesmo tempo são as suas
expressões. Velam porque legitimam ideologicamente a reprodução do modo de
produção, está claro. Porém, são expressões porque é por meio da linguagem
jurídica que as classes se tornam indivíduos, pessoas, situados no sistema do
direito, de propriedade, ou seja, se tornam sujeitos. Tais formas jurídicas trazem
consigo um sistema ideológico nelas implicado. Sobre este ponto cabe o seguinte
fragmento bastante significativo:
“São, por tanto, as formas jurídicas que representam
para todos
os protagonistas do processo de produção, tanto para os trabalhadores assalariados
quanto para os capitalistas, o processo
de exploração do trabalho como um processo de troca entre e equivalentes ou
como um contrato e induzem necessariamente ao mito da acumulação primitiva.” [7]
Por fim, a terceira leitura possível
destacada refere-se ao fato de que a reprodução do modo de produção capitalista
apaga o “problema de seu começo”, quer dizer, o das fases de transição. O modo de
produção opera “independente de suas origens”. Deste modo, a “defasagem” entre
o processo de produção e sua representação jurídica mais uma vez atua na
reprodução. E esta questão revela uma dificuldade adicional para o estudo do
modo de produção capitalista.
Por toda a exposição de Balibar a reflexão
sobre a ciência fundada por Marx e a distinção dela com a ideologia da história
ganha importante patamar. O ponto em destaque é o aspecto indutor do modo de
produção capitalista de tal ideologia como condição de possibilidade. Para
compreendê-lo foi necessário compreender o conceito de modo de produção como uma
estrutura de processo onde sistemas de processos interagem entre si como já se
aludiu aqui. Esta é a “articulação entre a base econômica e a superestrutura”.
Uma observação final: O texto termina com
uma consideração um tanto enigmática. Vale transcreve-la:
“Eu não quis nada além de exibir este círculo
necessário que, saído da ideologia da história, nos traz a ela agora. Quanto à
questão: por que o círculo? é uma outra questão que não vem da história, mesmo
teórica, mas da filosofia ou do materialismo dialético.” [8]
Balibar
parece expor a partir da ideologia da história sua natureza “cíclica” com a
reprodução do modo de produção capitalista, porém para entender o porquê de tal
“círculo” devemos buscar respostas no materialismo dialético ou filosofia, como
que o autor. A olhos atentos tal indicação será melhor entendida com algum
texto adicional do autor sobre este ponto preciso.
[1] BALIBAR, Étienne. A ciência do “capital”. Em: In Le Centenaire du Capital Paris, Mouton, 1969.
[2] Tal duplicidade estabelece vínculo com o
texto “O Duplo caráter do trabalho materializado na mercadoria” onde Marx
atenta para a distinção entre o trabalho em sua dimensão concreta, qualitativa,
e a outra como trabalho humano abstrato, quantitativa. Para mais detalhes ver:
MARX, Karl. O duplo caráter do trabalho
materializado na mercadoria; Em: O
capital. Crítica da economia política. Livro primeiro, parte primeira. Rio
de Janeiro-RJ, Bertrad Brasil, 1988.
[3] BALIBAR, Étienne. Obra citada, pág; ??.
[4] Idem
[5] Idem
[6] Uma abordagem didática e acessível deste
tema encontra-se no texto de Márcio Bilharinho Naves. Para mas detalhes ver:
NAVES, Márcio Bilharinho. Marx: ciência e
revolução. São Paulo: Moderna, campinas, SP: Editora da Universidade de
Campinas, 2000, páginas 68 à 71.
[7] BALIBAR, Étienne. Obra citada, pág; ??.
[8] Idem.
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