quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Leitura do capital: questões introdutórias, metodológicas e de fundo


Hugo Gellert

Todo conhecimento é orientação, toda descrição é prescrição, ordenamento.[...] O marxismo é a recapitulação do conhecimento da revolução. Por que escrever o Capital, centenas de páginas de análises minuciosas, de laboriosa inteligência, volumes de dialéticas que muitas vezes estão nos limites da inteligibilidade? Porque só assim pode-se chegar à profundidade do conhecimento revolucionário.
Alain Badiou
Sim. É essencial ler e estudar o Capital.  — Para realmente entender, em todo seu âmbito e conseqüências científicas e filosóficas, o que o os militantes proletários há muito entendem na prática: o caráter revolucionário da teoria marxista.  — Para defender essa teoria de todas as interpretações burguesas e pequeno-burguesas, ou seja, revisões que ameaçam-na seriamente hoje, principalmente a oposição economismo/humanismo.  — Para desenvolver a teoria marxista e prover os conceitos científicos indispensáveis à análise da luta de classes contemporânea, em nossos países e mundo afora.
Althusser
Por que e como ler o Capital? Não há questão mais complexa para um marxista. Em sua resposta pode estar consolidada toda uma base teórica, mas também, o que é mais sério, toda uma linha política, uma consequência prática irreversível. Pois, não podemos dizer o contrário, é no Capital que se fundamenta a cientificidade do socialismo enquanto modo de produção superior aos existentes até então.
Somente o marxismo alcançou tal façanha, romper com o socialismo utópico e fundar uma política revolucionária embasada numa ciência. Althusser nos diz que essa união entre uma ciência e o proletariado pode ser considerada o maior evento da história, algo sem precedentes em nossa espécie. Por quê? Porque são esses os elementos essenciais para se romper com a pré-história na qual a humanidade vive até hoje, nos mais diversos regimes de exploração e opressão. O Capital foi, é, e continuará a ser, durante muito tempo, até o fim da vigência da lei do valor e da produção das mercadorias, a obra mais importante para compreensão e transformação do mundo.
Antes de mais afirmações, vamos nos ater a alguns “fatos históricos” capazes de nos oferecer um contexto que possibilite uma maior compreensão do que vem a ser essa obra, o Capital, sua relevância e natureza.
Marx e Engels nasceram na Europa numa época revolucionário: consolidação desastrosa do capitalismo, passagem das revoluções burguesas para as revoluções proletárias. O primeiro nasceu em 1818, e o outro dois anos depois. Marx, provindo de uma família de judeus progressistas e liberais, cursou Direito e acabou indo para o lado da filosofia (doutoramento sobre materialismo em Epicuro e Demócrito). Depois iniciou sua atuação política, inicialmente no jornal burguês alemão progressista Gazeta Renana, depois em círculos socialistas. À época o mentor ideológico alemão era Hegel, que proliferava discípulos e contestadores. E esse fantasma de Hegel não deixou de influenciar esse dois grandes pensadores.
Retornando ao texto de Carlos Rios [http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/10/dialetica-e-marxismo.htmlsobre marxismo e dialética:
[...] o sistema de Hegel é uma estrutura de conceitos articulados em torno do conceito de razão. Em consonância com os princípios da Revolução Francesa o homem deveria ajustar a realidade segundo sua capacidade livre. [...] Para que esta razão presida a realidade é necessário que o ser, em sua substância, seja um “sujeito”. Por esta sentença Hegel queria dizer que toda a realidade é um processo e dentro dela todo ser um conjunto de forças contraditórias, eis aqui a negatividade antes mencionada. Por isso, pelo conceito de sujeito Hegel toma a definição de “eu”, de subjetividade, de consciência epistemológica (do conhecimento) usualmente acrescida do fato de que esta corresponde a um “modo de existência” no qual toda a unidade se autodesenvolve como processo contraditório. Ela toma consciência de si e da realidade para submetê-la à razão. É por isso que a figura do homem cumpre importante papel na filosofia hegeliana. Somente o homem poderia se auto realizar e ser um sujeito que se auto determina, somente suas faculdades racionais o permitem ter um conhecimento compreensivo da realidade e transformar as suas potencialidades. Somente o homem possui uma “subjetividade real”. É ela que torna subjetividade e mundo objetivo em um só, ser e sujeito.
O sistema de Hegel iguala, ou, pelo menos, acha que a tendência da história (teleologia) é igualar, a ontologia, o domínio do ser, da realidade, e a lógica, o domínio do discurso, do Logos, da razão. A história do real é a história da realização da razão, onde o Espírito se aliena, se concretiza no mundo, e retorna a sua posição subjetiva enriquecido. O homem é a encarnação do sentido da história, é o espírito retornando a sua origem racional, após um longo período de irracionalidade do mundo. O homem cumpre quase o papel de Deus a se fazer, e a finalidade da história é lhe dar liberdade/autonomia, pois ele detém a razão. A história nada mais é que a história de um sujeito.
Dentre os hegelianos, está Feuerbach, que influenciou durante anos o pensamento “marxista” (sobretudo nos Manuscritos de 44), e fundou a principal crítica de viés “revolucionário” ao sistema conservador e idealista de Hegel e seus seguidores de direita. Toda uma geração de jovens revolucionários e intelectuais se inspirou em sua crítica. Feuerbach, como o resto dos hegelianos de esquerda, substituía o plano do Espírito e do Absoluto pelo plano do sensível e do humano: revertia o idealismo hegeliano e o radicalizava para um humanismo ainda mais ferrenho, criando, no caso, uma antropologia naturalista. Onde Hegel via enriquecimento do Espírito, Feuerbach via alienação do homem; onde o primeiro via fim, o outro via meio; um via objeto, o outro sujeito, e assim vice-versa. Se em Hegel a religião e o Estado eram elementos necessários para o final da história, na antropologia naturalista só o homem era seu único sujeito e objeto: estava fundada, enfim, uma verdadeira religião do homem, o ponto máximo do humanismo, ideologia inaugurada na era renascentista, e extremamente necessária para a derrubada do feudalismo e surgimento da sociedade burguesa e sua “visão de mundo”.
Essa tomada do gênero humano como objeto teórico e político, instrumento de crítica social, foi uma das tantas formas de crítica utópica e ética da sociedade de classes. Aparentemente dialética e materialista, essa base dos hegelianos de esquerda, que nada mais é que um humanismo burguês radicalizado, impôs sérias limitações ideológicas à alternativa revolucionária. O humanismo se fundamenta numa pretensa natureza humana, que na verdade se demonstra muito mais uma natureza divina da teologia transporta para o terreno. Uma teologia do profano. Essa pretensa natureza individual precisa se realizar, segundo esses astutos pensadores, e para isso é necessário “lutar”, na forma da crítica racional contra os discursos alienantes e ideológicos, e contra as formas de “alienação humana”, como o Estado, Deus, Dinheiro. Esse ideário, anterior ao desenvolvimento do materialismo histórico, permanece vivo dentro de muitos “marxismos”, no anarquismo, na social-democracia.
A crítica do jovem Marx usada desse arcabouço humanista, antropológico e naturalista para explicar a realidade capitalista. Como demonstra Gorender, em sua apresentação ao Capital da editora Nova Cultural, “[...] evidencia-se portanto que Marx ainda não podia explicar a situação de desapossamento da classe operária por um processo de exploração, no lugar do qual o trabalho alienado constitui, em verdade, um processo de expropriação. Daí a impossibilidade de superar a concepção ética (não-científica) do comunismo.” (1996, p. 9).
Engels, filho de um industrial, não teve uma vida acadêmica tão formal como a de Marx, mas se destacou como grandioso autodidata e precoce socialista e estudioso da economia política. Na juventude também é acometido pelos rebentos hegelianos e liberais. Encontra-se com Marx já em círculos socialistas e juntos iniciam uma poderosa parceria. Inicialmente ambos os autores estão presos ao socialismo utópico, mais ou menos afundados no hegelianismo de esquerda. Mas de 45 a 48 uma forte autocrítica é realizada pelos dois autores, e uma nova guinada é realizada, na teoria e na política. A ideologia alemã, que presta contas sobretudo com as concepções errôneas de Feuerbach, e o Manifesto Comunista, encomendado pela Liga dos Comunistas, são o que Althusser chama de obras de ruptura, pois demarcam o momento mais ou menos longo de um profundo corte epistemológico, ou seja, uma mudança de paradigma, ou de problemática. Nessas duas obras é perceptível a troca do humanismo pelo que depois daria no materialismo histórico, que de maneira dialética engendra conceitos e teorias como modo de produção e relações de produção, luta de classes, trabalho produtivo e tantos outros. Os fundadores do marxismo viram que o terreno da histórica é marcado não por postulados éticos e finalidades racionais, focados na figura humana genérica ou nos indivíduos empíricos, mas por processos objetivos e pela atuação das massas, cuja primazia é a base material.
Encontramo-nos então com a necessidade da dupla de revolucionários de sustentar esse “econômico” (ampla base material com constantes influências da superestrutura) e sua função nas sociedades humanas, e obviamente na burguesa. Eis a tarefa de fechamento do materialismo histórico, e o objetivo principal do Capital. Para isso os autores, especialmente Marx, incumbido grande parte desta função, se debruçaram a estudar a “ciência” burguesa maior: a economia política, que à época, largava seu período clássico, progressista e entrava numa era decadente e apologética, que depois daria sustento às teorias marginalistas. O núcleo progressista da Economia política que será usado por Marx, e radicalmente transformado pelo descobrimento da mais-valia, será o que ficou conhecido como teoria do valor-trabalho.
E assim durante quase duas décadas de estudo no exílio londrino, com algumas interrupções, mas de árdua rotina, Marx sistematizou o pensamento econômico até os seus dias. O estudo “econômico” de Marx tinha dois principais rivais, que se mesclavam, obviamente, por possuírem ambos raízes ideológicas: a teoria burguesa (a economia política em si, como pensamento refinado e síntese da sociedade burguesa) e o proudhonismo, tentativa de crítica econômica da teoria burguesa em voga e de maior “envergadura”. A tarefa não era meramente teórica: a burguesia era a classe dominante no momento, assim como os anarquismos eram as correntes mais poderosas no movimento operário, ainda em sua infância (AIT-Comuna).
Além de partir da situação econômica dada e não do homem, analisando processos e relações e não indivíduos, outra diferença fundamental dessa fase madura do materialismo histórico é o que pode-se chamar de “método”. Se na fase do jovem Marx, o concreto era entendido como empírico, sensível, aqui o concreto aparece como síntese. Pois a análise científica deve “ir do abstrato ao concreto” – por isso mesmo começar com a mercadoria, o valor, e não pela população, por exemplo. E mais: Marx diferencia claramente o concreto do pensamento do concreto real (ou como diz Gorender, desassocia a lógica da ontologia), rompendo de vez com a problemática (também hegeliana) da teoria do conhecimento e da teoria moderna. Isso porque essa diferenciação rompe com a tensão entre um sujeito que tenta desvelar um objeto, do velho mito da fusão entre Logos e Ser. A diferença entre o concreto real e o concreto pensado não é o retorno à noção kantiana de incognoscibilidade e seu consequente ceticismo: pelo contrário, é sua completa quebra, pois vê o conhecimento não como um pedaço do real a ser descoberto. Como diz Marx: “o objeto real existe fora do sujeito, independentemente do processo do conhecimento”. Ou como já dizia Spinoza: “a ideia de círculo não deve ser confundida com um círculo”. O concreto real é história, possível de transformação efetiva e não fantasmas e transcendências. Já o concreto pensado é um instrumento construído, a partir da apropriação e reprodução da realidade no pensamento, e necessário para analisar a realidade, caótica inicialmente. Assim “o pensamento se manifesta através da ativa intervenção espiritual que realiza o trabalho infindável do conhecimento”, novamente Gorender (p. 23). Assim não só some a dicotomia entre sujeito e objeto, mas também elas se tornam desnecessárias, pois os planos de análise são diversos. Por isso mesmo o Capital lança bases, além de uma nova ciência da história uma nova filosofia/prática filosófica em ação.
Nesse sentido, o Capital possui um objeto abstrato (que não é o mesmo que especulativo, como o jovem Marx entendia, assim como o empírico não é o concreto do pensamento) e por isso mesmo lida com tendências gerais/lógicas. A pretensão de Marx é criar um concreto pensado, que não é a mesma coisa que um objeto real. O objeto do Capital é o modo de produção capitalista, caminho necessário para compreender o concreto real das diversas formações sociais capitalistas no decorrer do tempo e do globo.
O capital é de fato síntese de um logo processo, um exemplo real desse concreto pensado. Desde Miséria da filosofia, rompimento com Proudhon, em 47, Marx refina o que depois viria a ser o Capital, num trabalho incansável, que custará sua saúde e a condição de vida de sua família.
Podemos traçar pelo menos três obras que foram frutos da fase de elaboração do capital: Os Grundisse – 57/58 (Esboços fundamentais da crítica da economia político, com tons bastantes hegelianos e ricardianos); Para a crítica da economia política 59, que seria condensado para o Capital; e o próprio Capital – livro primeiro 67, livro segundo 85, livro terceiro 94, Engels e livro quarto (Teorias da mais-valia) Kautsky depois URSS. Nos planos iniciais o Capital ainda incluiria tomos específicos sobre o Estado, O comércio internacional, o mercado mundial e as crises. Por isso pode-se dizer que é uma obra incompleta.
Incompleta como a tarefa do proletariado em nossos dias. Fica claro assim o dever de estudá-la profunda e seriamente, compreender seu núcleo e proposta para que seja possível uma linha política justa e uma verdadeira continuidade dos esforços dos fundadores do materialismo história.

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