Hugo Gellert |
Todo conhecimento é orientação, toda
descrição é prescrição, ordenamento.[...] O marxismo é a recapitulação do
conhecimento da revolução. Por que escrever o Capital, centenas de páginas de
análises minuciosas, de laboriosa inteligência, volumes de dialéticas que
muitas vezes estão nos limites da inteligibilidade? Porque só assim pode-se
chegar à profundidade do conhecimento revolucionário.
Alain Badiou
Sim. É essencial ler e estudar o
Capital. — Para realmente entender, em
todo seu âmbito e conseqüências científicas e filosóficas, o que o os
militantes proletários há muito entendem na prática: o caráter revolucionário
da teoria marxista. — Para defender essa
teoria de todas as interpretações burguesas e pequeno-burguesas, ou seja,
revisões que ameaçam-na seriamente hoje, principalmente a oposição
economismo/humanismo. — Para desenvolver
a teoria marxista e prover os conceitos científicos indispensáveis à análise da
luta de classes contemporânea, em nossos países e mundo afora.
Althusser
Por que e como ler o Capital? Não há
questão mais complexa para um marxista. Em sua resposta pode estar consolidada
toda uma base teórica, mas também, o que é mais sério, toda uma linha política,
uma consequência prática irreversível. Pois, não podemos dizer o contrário, é no Capital que se fundamenta a
cientificidade do socialismo enquanto modo de produção superior aos existentes
até então.
Somente o marxismo alcançou tal
façanha, romper com o socialismo utópico e fundar uma política revolucionária
embasada numa ciência. Althusser nos diz que essa união entre uma ciência e o
proletariado pode ser considerada o maior evento da história, algo sem
precedentes em nossa espécie. Por quê? Porque são esses os elementos essenciais
para se romper com a pré-história na qual a humanidade vive até hoje, nos mais
diversos regimes de exploração e opressão. O Capital foi, é, e continuará a ser,
durante muito tempo, até o fim da vigência da lei do valor e da produção das
mercadorias, a obra mais importante para compreensão e transformação do mundo.
Antes de mais afirmações, vamos nos
ater a alguns “fatos históricos” capazes de nos oferecer um contexto que
possibilite uma maior compreensão do que vem a ser essa obra, o Capital, sua
relevância e natureza.
Marx e Engels nasceram na Europa numa
época revolucionário: consolidação desastrosa do capitalismo, passagem das
revoluções burguesas para as revoluções proletárias. O primeiro nasceu em 1818,
e o outro dois anos depois. Marx, provindo de uma família de judeus
progressistas e liberais, cursou Direito e acabou indo para o lado da filosofia
(doutoramento sobre materialismo em Epicuro e Demócrito). Depois iniciou sua
atuação política, inicialmente no jornal burguês alemão progressista Gazeta
Renana, depois em círculos socialistas. À época o mentor ideológico alemão era
Hegel, que proliferava discípulos e contestadores. E esse fantasma de Hegel não
deixou de influenciar esse dois grandes pensadores.
Retornando ao texto de Carlos Rios [http://bradocomunista.blogspot.com.br/2012/10/dialetica-e-marxismo.html] sobre
marxismo e dialética:
[...] o sistema de Hegel é uma estrutura de conceitos articulados em torno do conceito de razão. Em consonância com os princípios da Revolução Francesa o homem deveria ajustar a realidade segundo sua capacidade livre. [...] Para que esta razão presida a realidade é necessário que o ser, em sua substância, seja um “sujeito”. Por esta sentença Hegel queria dizer que toda a realidade é um processo e dentro dela todo ser um conjunto de forças contraditórias, eis aqui a negatividade antes mencionada. Por isso, pelo conceito de sujeito Hegel toma a definição de “eu”, de subjetividade, de consciência epistemológica (do conhecimento) usualmente acrescida do fato de que esta corresponde a um “modo de existência” no qual toda a unidade se autodesenvolve como processo contraditório. Ela toma consciência de si e da realidade para submetê-la à razão. É por isso que a figura do homem cumpre importante papel na filosofia hegeliana. Somente o homem poderia se auto realizar e ser um sujeito que se auto determina, somente suas faculdades racionais o permitem ter um conhecimento compreensivo da realidade e transformar as suas potencialidades. Somente o homem possui uma “subjetividade real”. É ela que torna subjetividade e mundo objetivo em um só, ser e sujeito.
O sistema de Hegel iguala, ou, pelo
menos, acha que a tendência da história (teleologia) é igualar, a ontologia, o
domínio do ser, da realidade, e a lógica, o domínio do discurso, do Logos, da
razão. A história do real é a história da realização da razão, onde o Espírito
se aliena, se concretiza no mundo, e retorna a sua posição subjetiva
enriquecido. O homem é a encarnação do sentido da história, é o espírito
retornando a sua origem racional, após um longo período de irracionalidade do
mundo. O homem cumpre quase o papel de Deus
a se fazer, e a finalidade da história é lhe dar liberdade/autonomia, pois ele
detém a razão. A história nada mais é que
a história de um sujeito.
Dentre os hegelianos, está Feuerbach,
que influenciou durante anos o pensamento “marxista” (sobretudo nos Manuscritos
de 44), e fundou a principal crítica de viés “revolucionário” ao sistema
conservador e idealista de Hegel e seus seguidores de direita. Toda uma geração
de jovens revolucionários e intelectuais se inspirou em sua crítica. Feuerbach,
como o resto dos hegelianos de esquerda, substituía o plano do Espírito e do
Absoluto pelo plano do sensível e do humano: revertia o idealismo hegeliano e o
radicalizava para um humanismo ainda mais ferrenho, criando, no caso, uma
antropologia naturalista. Onde Hegel via enriquecimento do Espírito, Feuerbach
via alienação do homem; onde o primeiro via fim, o outro via meio; um via
objeto, o outro sujeito, e assim vice-versa. Se em Hegel a religião e o Estado
eram elementos necessários para o final da história, na antropologia
naturalista só o homem era seu único sujeito e objeto: estava fundada, enfim,
uma verdadeira religião do homem, o ponto máximo do humanismo, ideologia
inaugurada na era renascentista, e extremamente necessária para a derrubada do
feudalismo e surgimento da sociedade burguesa e sua “visão de mundo”.
Essa tomada do gênero humano como
objeto teórico e político, instrumento de crítica social, foi uma das tantas
formas de crítica utópica e ética da sociedade de classes. Aparentemente
dialética e materialista, essa base dos hegelianos de esquerda, que nada mais é
que um humanismo burguês radicalizado, impôs sérias limitações ideológicas à
alternativa revolucionária. O humanismo se fundamenta numa pretensa natureza
humana, que na verdade se demonstra muito mais uma natureza divina da teologia
transporta para o terreno. Uma teologia do profano. Essa pretensa natureza
individual precisa se realizar, segundo esses astutos pensadores, e para isso é
necessário “lutar”, na forma da crítica racional contra os discursos alienantes
e ideológicos, e contra as formas de “alienação humana”, como o Estado, Deus, Dinheiro.
Esse ideário, anterior ao desenvolvimento do materialismo histórico, permanece
vivo dentro de muitos “marxismos”, no anarquismo, na social-democracia.
A crítica do jovem Marx usada desse
arcabouço humanista, antropológico e naturalista para explicar a realidade
capitalista. Como demonstra Gorender, em sua apresentação ao Capital da editora
Nova Cultural, “[...] evidencia-se portanto que Marx ainda não podia explicar a
situação de desapossamento da classe operária por um processo de exploração, no
lugar do qual o trabalho alienado constitui, em verdade, um processo de
expropriação. Daí a impossibilidade de superar a concepção ética
(não-científica) do comunismo.” (1996, p. 9).
Engels, filho de um industrial, não
teve uma vida acadêmica tão formal como a de Marx, mas se destacou como
grandioso autodidata e precoce socialista e estudioso da economia política. Na
juventude também é acometido pelos rebentos hegelianos e liberais. Encontra-se
com Marx já em círculos socialistas e juntos iniciam uma poderosa parceria.
Inicialmente ambos os autores estão presos ao socialismo utópico, mais ou menos
afundados no hegelianismo de esquerda. Mas de 45 a 48 uma forte autocrítica é
realizada pelos dois autores, e uma nova guinada é realizada, na teoria e na
política. A ideologia alemã, que presta contas sobretudo com as concepções
errôneas de Feuerbach, e o Manifesto Comunista, encomendado pela Liga dos Comunistas,
são o que Althusser chama de obras de
ruptura, pois demarcam o momento mais ou menos longo de um profundo corte epistemológico, ou seja, uma
mudança de paradigma, ou de problemática. Nessas duas obras é perceptível a
troca do humanismo pelo que depois daria no materialismo histórico, que de
maneira dialética engendra conceitos e teorias como modo de produção e relações
de produção, luta de classes, trabalho produtivo e tantos outros. Os fundadores do marxismo viram que o
terreno da histórica é marcado não por postulados éticos e finalidades
racionais, focados na figura humana genérica ou nos indivíduos empíricos, mas
por processos objetivos e pela atuação das massas, cuja primazia é a base
material.
Encontramo-nos então com a necessidade
da dupla de revolucionários de sustentar esse “econômico” (ampla base material
com constantes influências da superestrutura) e sua função nas sociedades
humanas, e obviamente na burguesa. Eis a tarefa de fechamento do materialismo
histórico, e o objetivo principal do Capital. Para isso os autores,
especialmente Marx, incumbido grande parte desta função, se debruçaram a
estudar a “ciência” burguesa maior: a economia política, que à época, largava
seu período clássico, progressista e entrava numa era decadente e apologética,
que depois daria sustento às teorias marginalistas. O núcleo progressista da
Economia política que será usado por Marx, e radicalmente transformado pelo
descobrimento da mais-valia, será o que ficou conhecido como teoria do
valor-trabalho.
E assim durante quase duas décadas de
estudo no exílio londrino, com algumas interrupções, mas de árdua rotina, Marx
sistematizou o pensamento econômico até os seus dias. O estudo “econômico” de
Marx tinha dois principais rivais, que se mesclavam, obviamente, por possuírem
ambos raízes ideológicas: a teoria burguesa (a economia política em si, como
pensamento refinado e síntese da sociedade burguesa) e o proudhonismo,
tentativa de crítica econômica da teoria burguesa em voga e de maior
“envergadura”. A tarefa não era meramente teórica: a burguesia era a classe
dominante no momento, assim como os anarquismos eram as correntes mais
poderosas no movimento operário, ainda em sua infância (AIT-Comuna).
Além de partir da situação econômica
dada e não do homem, analisando processos e relações e não indivíduos, outra
diferença fundamental dessa fase madura do materialismo histórico é o que
pode-se chamar de “método”. Se na fase do jovem Marx, o concreto era entendido
como empírico, sensível, aqui o concreto aparece como síntese. Pois a análise
científica deve “ir do abstrato ao concreto” – por isso mesmo começar com a
mercadoria, o valor, e não pela população, por exemplo. E mais: Marx diferencia claramente o concreto do
pensamento do concreto real (ou como diz Gorender, desassocia a lógica da
ontologia), rompendo de vez com a problemática (também hegeliana) da teoria do
conhecimento e da teoria moderna. Isso porque essa diferenciação rompe com a
tensão entre um sujeito que tenta desvelar um objeto, do velho mito da fusão
entre Logos e Ser. A diferença entre o concreto real e o concreto pensado não é
o retorno à noção kantiana de incognoscibilidade e seu consequente ceticismo: pelo
contrário, é sua completa quebra, pois vê o conhecimento não como um pedaço do
real a ser descoberto. Como diz Marx: “o objeto real existe fora do sujeito,
independentemente do processo do conhecimento”. Ou como já dizia Spinoza: “a
ideia de círculo não deve ser confundida com um círculo”. O concreto real é
história, possível de transformação efetiva e não fantasmas e transcendências.
Já o concreto pensado é um instrumento construído, a partir da apropriação e
reprodução da realidade no pensamento, e necessário para analisar a realidade,
caótica inicialmente. Assim “o pensamento se manifesta através da ativa
intervenção espiritual que realiza o trabalho infindável do conhecimento”,
novamente Gorender (p. 23). Assim não só some a dicotomia entre sujeito e
objeto, mas também elas se tornam desnecessárias, pois os planos de análise são
diversos. Por isso mesmo o Capital lança bases, além de uma nova ciência da
história uma nova filosofia/prática filosófica em ação.
Nesse sentido, o Capital possui um
objeto abstrato (que não é o mesmo que especulativo, como o jovem Marx
entendia, assim como o empírico não é o concreto do pensamento) e por isso
mesmo lida com tendências gerais/lógicas. A pretensão de Marx é criar um
concreto pensado, que não é a mesma coisa que um objeto real. O objeto do
Capital é o modo de produção capitalista, caminho necessário para compreender o
concreto real das diversas formações sociais capitalistas no decorrer do tempo
e do globo.
O capital é de fato síntese de um logo
processo, um exemplo real desse concreto pensado. Desde Miséria da filosofia,
rompimento com Proudhon, em 47, Marx refina o que depois viria a ser o Capital,
num trabalho incansável, que custará sua saúde e a condição de vida de sua
família.
Podemos traçar pelo menos três obras
que foram frutos da fase de elaboração do capital: Os Grundisse – 57/58
(Esboços fundamentais da crítica da economia político, com tons bastantes
hegelianos e ricardianos); Para a crítica da economia política 59, que seria
condensado para o Capital; e o próprio Capital – livro primeiro 67, livro
segundo 85, livro terceiro 94, Engels e livro quarto (Teorias da mais-valia)
Kautsky depois URSS. Nos planos iniciais o Capital ainda incluiria tomos
específicos sobre o Estado, O comércio internacional, o mercado mundial e as crises.
Por isso pode-se dizer que é uma obra incompleta.
Incompleta como a tarefa do
proletariado em nossos dias. Fica claro assim o dever de estudá-la profunda e
seriamente, compreender seu núcleo e proposta para que seja possível uma linha
política justa e uma verdadeira continuidade dos esforços dos fundadores do
materialismo história.
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