As correntes progressistas em nosso país denunciam, desde o início do ano, a instauração em nosso país de um estado de exceção (oficializado e mais generalizado), via criminalização das lutas e lutadores populares, guerra psicológica e comunicacional, desarticulação cada vez mais violenta das mobilizações e organizações que se desenvolveram no ano passado. Tudo isso dentro do quadro institucional "democrático" e sob a "gestão" do PT e seus aliados.
A morte do jornalista da Band na manifestação do Rio, supostamente por manifestantes, levou a conjuntura para um outro patamar, mais decisivo onde as forças políticas mostram sua real face e odor. Independente de que haja forças políticas, ou até o Estado, por trás do fato, ou tenha sido uma mera fatalidade, para todos os lutadores sinceros, que precisarão se preparar para o que irá acontecer na Copa e depois dela, sob um novo rearranjo das classes em luta, torna-se primordial tirar lições desse momento.
Lição 1 - O limite estrutural do Estado capitalista, como Estado das classes dominantes, foi/está sendo acionado, e ele independente da cor do regime ou do partido no governo. Os acessórios ideológicos e jurídicos são substituíveis, de acordo com a situação política da luta de classes, e não são princípios intocáveis e garantias eternas.
Lição 2 - A função principal deste Estado se mostra/vem se mostrando mais explícita: dar continuidade à reprodução do capital e dominação das classes populares, recorrendo inclusive, ao terror sistemático.
Lição 3 - Com isso, mais uma vez, a máscara do reformismo/revisionismo cai/tende a cair e sua podridão, de seu discurso e prática, é visível.
Até mesmo a alternativa de "esquerda" diante dos últimos fatos vem recuando para posições mais recuadas e típicas da reação. Atolados na lógica eleitoral, da legalidade e da democracia burguesa, o agravamento da situação faz todo seu discurso "revolucionário" cair por terra, e ídolos de boca virarem poodles inofensivos. Nega a resistência desorganizada para negar qualquer resistência. A forma de crítica dessas organizações retira até mesmo a rede de solidariedade frente a esses jovens e defende implicitamente que "a justiça seja feita". Ou seja, que o Estado puna os culpados. O PSOL, junto com a Veja, elegem o jornalista da Band como mártir da democracia.
The dream is over, e isso é uma boa notícia: é mais forte aquele que não possui ilusões.
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014
Sobre a ideologia e seu papel - comentários e notas teóricas e práticas
A tese de Marx de que as massas tomam consciência de sua "situação"
(de exploração, de dominação) no terreno ideológico trouxe muita confusão à ciência
marxista. Este blog inclusive busca fundamentar suas análises culturais e
políticas sob o prisma dessa tese. Mas, como precisá-la, e como ela vem sendo
usada historicamente? Marx quis dizer com ela que a "primeira tarefa"
seria conscientizar a si (quebrar o encanto alienante e fetichista da ideologia) e aos seu semelhantes?
Ora, a ciência que leva a prática
revolucionária, nesse caso, seria reduzida a uma filosofia, que não passa de
uma concepção de mundo de um setor social - uma
ideologia que enfim se reencontra com a Verdade. A história se tornaria história de homens que tomam
consciência de si e do mundo, como está presente nas análises de Gramsci, por exemplo, desde
seus primeiros escritos[1]. O marxismo seria um Hegel que trocaria o Estado prussiano pelos sovietes.
Há algum tempo, e com todas as limitações, nos esforçamos a quebrar o encanto
ideológico que encobre precisamente o conceito de ideologia, tentando-o vincular mais com a
prática que com a ideia, mais à estrutura que à consciência, menos à
irracionalidade e mais a sua profunda "funcionalidade". Sem essa reformulação a prática política está comprometida do dia-a-dia: ou por
um ceticismo em relação ao nível de "ignorância" das massas - que
leva ao vanguardismo, à contra cultura e "impaciente"; ou seu oposto
mesclado ao eleitoralismo-democratismo ("se todos tivessem o mesmo tempo no horário eleitoral,
ou de fala no carro de som da manifestação!... Levaríamos o estado revolucionário latente das
massas à prática, pela consciência e pela lógica!).
Coloquemos a ideologia onde ela merece estar: na
superestrutura que também exerce seus efeitos estruturantes (por isso sua
profundidade e permanência), e vamos dar a ela seu papel importante, que é
muito importante mas não central, e envolvido com outros aspectos da luta pelo
poder.
Para Mao a cultura (terreno ideológico) "prepara o terreno" e continua importante durante a revolução, sendo um dos componentes da "frente" de ação de uma classe ou conjunto de classes. Não fetichiza o saber, o conhecimento ou a "escolaridade" (formal) - que é uma flecha, uma arma para a ação: é preciso saber aprender, aprender o "certo", para acertar o alvo (revolução). Sem essa fusão, a consciência se perde, com tiros a toa. A cultura é um "pequeno parafuso" que precisa ser integrado na "máquina geral da revolução", de autonomia relativa, pois a arte, por exemplo, possui tanto um critério político quanto um critério estético, ambos essenciais para sua efetividade. A separação da teoria e prática assim é superada pela primazia de uma prática de massas. A consciência imediata não ganha ares de fundamento da ação, mas sim se torna possível o termo "combater é aprender".
Para isso e para continuar com o debate, colocamos um trecho com nossos comentários em negrito e parenteses do livro "ideologia, estrutura e comunicação" de Eliseo Veron
(tradução de Amélia Cohn, 1977):
"Dizer que a informação ideológica opera por conotação (associação "cultural") e não por denotação (associação literal e precisa) implica em afirmar que a ideologia não é um corpo de
proposição (mensagens) e não reside no conteúdo do manifesto das proposições,
mas reside no sistema de regras semânticas que o emissor aplica para construir
as mensagens. A ideologia é um sistema de codificação da realidade, e não um
conjunto determinado de mensagens codificado com esse sistema. Assim sendo,
explicar o sistema de codificação que um ator social ou uma certa classe de
atores sociais se utiliza para organizar significativamente a realidade
equivale a descrever, do ponto de posta da comunicação, as condições que
definem a relação desses atores com o seu mundo social. A ideologia se torna
autônoma relativamente à consciência ou à intenção de seus portadores (ela é a própria razão "prático-social" que opera nos indivíduos, e não algo exterior a uma razão universal): esses
podem ser conscientes de seus pontos de vista sobre o social, mas não das
condições semânticos (regras e categorias de codificação) que tornam possíveis
tais pontos de vista. Esta perspectiva coincide, ao meu ver, com a formulação
de Althusser sobre a ideologia, expressa sem dúvida em termos muito diferentes:
"Costuma-se dizer que a ideologia pertence à região
'consciência'. É preciso não se enganar a respeito desta denominação que
permanece contaminada pela problemática idealista anterior a Marx. Na
realidade, a ideologia muito pouco tem a ver
com 'consciência', supondo-se que esse termo possua um sentido unívoco.
A ideologia é profundamente 'inconsciente' mesmo quando se apresenta (como na
filosofia pré-marxista) sob uma forma reflexiva [saber inútil frente a uma
crença]. A ideologia é um sistema de representações: mas essas representações
na maioria dos casos nada tem a ver com 'consciência': na maioria dos casos são
imagens, às vezes conceitos, mas é sobretudo como estruturas que impõem à
imensa maioria dos homens, sem passar por sua consciência (nossa língua e
valores e suas estrutura são impostos antes mesmo de, do ponto de vista da maturação biológica,
tenhamos autonomia cognitiva e moral, na escola, família etc.)" Louis Althusser,
Pour Marx.
Há, sem dúvida, neste parágrafo uma certa vagueza
terminológica que talvez revele inconsistências teóricas não resolvidas: se as
ideologias são estruturas (no sentido em que o estruturalismo utiliza essa
expressão) então não são imagens nem conceitos (vale dizer, não são conteúdos)
mas sim corpos de tehtas que determinam a organização e funcionamento de
imagens e conceitos.
Pouco depois, diz: "A ideologia concerne à relação
vivida dos homens com o mundo." Em seguida, Althusser precisa o
pensamento, de forma que impede qualquer assimilação do seu ponto de vista a
uma formulação consciencialista ou fenomenológica: "Esta relação, que é
'consciente' apenas sob a condição de ser inconsciente parece, da mesma
maneira, ser simples apenas sob a condição de ser complexa, parece não ser uma
relação simples. Mas uma relação de relações, uma relação de segundo grau. Na
ideologia, os homens com efeito expressam, não as relações com as condições de
existência, mas o modo em que vivem as relações com suas condições de
existência"
Esta caracterização da ideologia como uma "relação de
segundo grau", a meu ver, refere-se confusamente à distinção entre um
sistema de codificação e conteúdos codificados e introduz, no contexto do
pensamento marxista, a ideia fundamental de uma mediação. Em certa
interpretação elementar do marxismo, ocorre como se houvesse dois termos, um
objetivo e o outro subjetivo, as condições de existência, que são objetivas e
materiais - a infraestrutura - por um lado, e por outro lado a ideologia. A
descrição objetiva das condições materiais está a cargo da ciência e coincide,
naturalmente, com a descrição que fazem os marxistas. A ideologia fica reduzida
a um reflexo deformante, uma "excrescência" insubstancial das
condições de existência. Pois, bem, este caráter de puro reflexo ("falsa consciência" Lukacs) talvez possa
ser atribuído aos conteúdos explícitos das normas institucionalizadas em uma
sociedade. Mas a ideologia corresponde a um nível mais básico: no plano dos
sistemas de codificação da realidade, que explicam os conteúdos dessas
mensagens que circulam em uma sociedade e que são suas normas manifestas. Estes
sistemas de codificação não são meras excrescências das condições materiais,
mas o seu extremo oposto: constituem uma dimensão central das próprias
condições materiais, visto que determinam a significação das condutas sociais,
e as condições materiais não são outra coisa que relações sociais (anti-materialismo mecânico).
A concepção de Althusser institucionaliza uma reformulação
central do pensamento marxista que - como ele próprio se encarrega de
demonstrar - não faz mais que reencontrar os fundamentos teórico-metodológicos
do Capital. Esta reformulação, naquilo que aqui nos interessa, elimina o
primado da oposição objetivo/subjetivo, proveniente dos textos do "jovem
Marx" (problemática da teoria/filosofia moderna). As condições materiais não são algo "objetivo" por
oposição à subjetividade deformante da superestrutura ideológica. A distinção
infra-estrutura/superestrutura não coincide de modo algum com a oposição
objetivo/subjetivo, nem corresponde a ela em grau algum. A significação está
presente em todos os níveis de organização das relações sociais em uma
sociedade; mas o ponto central é este: a significação não é nada subjetivo.
Há, pois, um parentesco necessário entre a noção de praxis
que aparece nos escritos de juventude de Marx, definida a partir da
subjetividade do autor; a concepção de infra-estrutura como algo puramente
"material" e "Objetivo", alheio à significação; a ideia de
que a ideologia não passa de uma "falsa consciência", e, finalmente,
a descrição da situação básica do homem na sociedade capitalista com base no
conceito de "alienação". Todos esses conceitos são tributários de uma
teoria subjetiva do sentido. É no campo teórico desses conceitos que a noção de
praxis aparece como muito próxima à noção habitual de "ação social",
tal como foi definida a partir de Weber: com efeito, o modelo do operário
relacionado com o objetivo de seu trabalho é perfeitamente assimilável ao
modelo da ação subjetivamente orientada. Como resultado, as características
gerais de certo tipo de sociedade - a saber, a sociedade industrial capitalista
- se reduzem a aventuras da consciência de um ator alienado, perspectiva
retomada com entusiasmo por certas orientações teóricas marxistas e mesmo
antimarxistas.
Longe de ser um "subproduto" que determina a
"falsa consciência" social, a ideologia é então o "modo natural
de existência" da dimensão significativa dos sistemas de relações sociais.
"As sociedades humanas segregam a ideologia como o elemento e a atmosfera
indispensável para a sua respiração, para sua vida histórica. Só uma concepção
ideológica do mundo pode imaginar sociedade sem ideologias e admitir a ideia
utópica de um mundo no qual a ideologia (e não tal ou qual formas históricas
destas) desapareceria sem deixar rastros para ser substituída pela ciência.
(...) E, para não evitar a questão mais cadente: o materialismo histórico não
pode conceber sequer que uma sociedade comunista possa alguma vez carecer de
ideologia (...) a ideoligia é uma estrutura essencial para a vida histórica das
sociedades". Desta perspectiva, o estudo da ideologia não é outra coisa
que o estudo dos campos semânticos que definem a matriz dos sistemas de
relações sociais, quando esses sistemas são analisados em relação ao
funcionamento da sociedade global em suas diversas áreas de atividade.
Assim sendo, esta concepção da ideologia é necessariamente
complementar de uma concepção da ciência que coloca os problemas daquilo que
por comodidade continuamos chamando de "objetividade científica" no
campo da pragmática. Porque também aqui é preciso eliminar a oposição
objetivo/subjetivo. A objetividade da ciência não consiste em neutralizar a
subjetividade do homem de ciência. Na área daquilo que chamamos de pragmática,
Althusser localiza o objeto do materialismo dialético:
"O objeto do materialismo histórico é constituído pelos
modos de produção, sua constituição, seu
funcionamento e suas transformações. O objetivo do materialismo dialético
constitui-se por aquilo que Engels chama 'a história do pensamento' ou que
Lenin denomina 'a história da passagem da ignorância ao conhecimento'. Podemos designar
este objeto com maior precisão como a história da produção dos conhecimentos
enquanto conhecimentos, definição que abrange ou resume outras definições
possíveis: a diferença história entre a ciência e a ideologia, a teoria da
história da cientificidade, etc."
"Todos esses problemas ocupam em conjunto o domínio
chamado na filosofia clássica 'teoria do conhecimento'. Mas o objeto do
materialismo dialético é algo completamente diverso de uma 'teoria do
conhecimento'. Por uma parte, a nova teoria não pode ser, como o era a teoria
clássica do conhecimento, uma teoria das condições formais, intemporais, do
conhecimento, uma teoria do 'cogito' (Descartes, Hursserl), uma teoria das
formas a priori do espírito humano (Kant) ou uma teoria do Saber Absoluto (Hegel).
A nova teoria somente pode ser uma teoria da história da produção dos
conhecimentos, ou seja, uma teoria das condições reais (materiais e sociais por
uma parte, internas à prática científica, por outra) do processo de produção.
Ademais, a nova teoria muda completamente a pergunta tradicional da 'teoria do
conhecimento': ao invés de propor a questão das garantias do conhecimento,
pergunta-se pelo mecanismo da produção dos conhecimentos enquanto
conhecimentos".
Nas ciências empíricas, as condições reais da produção de
seus conhecimentos definem antes de mais nada o campo conceitual e técnico em
que se desenvolve a atividade científica, no interior do qual se movem as
operações de construção da linguagem científica. Neste contexto, a objetividade
aparece simultaneamente como um ideal legítimo e como uma realidade
aproximativa, associada, em um momento dado, a certas dimensões ideológicas.
Supor que isto relativiza a noção de objetividade ou de verdade é, outra vez,
confundir a lógica da pragmática da ciência. A história humana demonstra que o
progresso do conhecimento da realidade esteve determinado, sem exceções, pela
tensão entre um ideal formal (definido, em consequência, sem levar em conta as condições empíricas de sua realização) e sua aplicação, sempre imperfeita, no
plano dos sistemas concretos da atividade social. Entre distância que separa
esse ideal de seu cumprimento efetivo, tem lugar a dialética que define a
ciência (e suas interpenetrações com as ideologias e as classes sociais em
luta).
[1]
Ver o texto juvenil "socialismo e cultura", onde Gramsci expõe sua visão de
elevação do espírito na história, e depois comparar com as famosas teses dos
cadernos (proletariado alemão é o herdeiro do idealismo alemão, objetivo ao
subjetivo, necessidade à liberdade; sujeito e objeto, particular e universal etc.): as permanências são impressionantes. A
ambiguidade de Gramsci está no fato de, ao mesmo tempo que contribui para uma
visão mais ampla e complexa da dominação de classe e das revoluções, colocando
relevância ao aspecto cultural-ideológico e suas estruturas e organizações mais
ou menos autônomas, desconsideradas constantemente pelo economicismo, continua
a fundar esse terreno cultural sobre o paradigma da consciência e da ação moral
dos homens sobre a história. Em "revolução contra o capital", por exemplo, chega ao absurdo de propor o
proletariado russo como sujeito consciente realizando sua liberdade/razão
frente ao mecanicismo do mundo objetivo e alienante (representado pelo Capital), defendendo o subjetivo humano da superestrutura contra a infra-estrutura. Etc etc.
Discurso de Luiz Ruffato na abertura da Feira do Livro de Frankfurt
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,leia-a-integra-do-discurso-de-luiz-ruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463,0.htm
Impactante discurso (porque verdadeiro e honesto) de um escritor brasileiro da nova geração "pós-democratização". Que o engajamento entre o artitas continue e se aprofunde nesses momentos decisivos que vivemos da luta popular.
"O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro --é a alteridade que nos confere o sentido de existir--, o outro é também aquele que pode nos aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas - ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas, escritores.
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania --moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade--, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém...
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios --o semelhante torna-se o inimigo.
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados.
Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade.
E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais --ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples.
A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.
Mas, temos avançado.
A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia - são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.
Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país paradoxal.
Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo --amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos...
Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro --seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual-- como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora."
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