[Augusto Machado]
(Bolsa de NY, cena do documentário Inside Job [2010, USA])
Ao ver um filme, e aqui se falará do recente inside job, ou qualquer meio informativo mais aprofundado sobre as grandes instituições, organismos e corporações que estão no comando do capitalismo contemporâneo, não nos resta dúvidas: vivemos sob diversas ditaduras. Seria essa afirmação uma piada de mau gosto de alguém que não sabe diferenciar o menos pior e reduz e iguala tudo ao nível do apocalíptico? Expliquemos melhor: o que a ideologia burguesa nos ensina sobre o termo "ditadura" se refere ao restrito âmbito político-estatal - ditadura é aquilo que foge aos parâmetros do capitalismo parlamentarista com suas eleições democráticas regulares de sufrágio universal. Porém, o que o pensamento marxista se esforça em identificar e caracterizar é como, por trás de um regime político aparente e legalmente não despótico, se reproduz a dominação, a exploração, a opressão, por vezes de maneira mais engenhosa, criativa e ampla do que um simples fortalecimento dos aparelhos repressivos do status de uma sociedade ou nação. A ditadura, nesse sentido, não é um marco formal jurídico, mas um determinado conglomerado de relações sociais, historicamente situadas, onde se manifesta e se alastra o poder, no caso, de classe. Essas relações ditatoriais se dão e emanam sobretudo nas relações econômicas, sob as quais se erguem todo o constructo da sobrevivência humana em coletividade.
Vivemos sob diversas ditaduras, e aqui nos interessa a ditadura do capital. O capital - uma coisa-produto, o dinheiro vivo? (Então viveríamos sobre uma sociedade global fetichizada?) Um jogo consciente dos poderosos? (Então viveríamos sob uma ditadura com rostos específicos que agem voluntariamente?) Para responder tais perguntas, de maneira alguma categoricamente nesse curto e parco espaço, precisamos nos debruçar um pouco sobre o fenômeno da dominação (de classe) no capitalismo, se esta pressupõe um sujeito, e o que significa isso, para então refletir sobre os aspectos infraestruturais, políticos e ideológicos atuantes ou não na história.
Em Marx podemos encontrar a definição dos capitalistas, ou dos "proprietários", como "instrumentos da acumulação, funcionários do capital":
O que significa de maneira mais precisa esse desgaste? Esse termo tenta escapar da noção de retorno idílico a uma completude de um sujeito anterior à "alienação". Nesse sentido, a luta contra a sociedade capitalista não é contra a sua "fetichização/alienação" no sentido abstrato, que envolve um espírito/práxis "humana", normalmente individual. O socialismo não é uma religação a um período pré-moderno: pelo contrário, prevê sua superação. Vemos em Marx (Capital, Livro 1, v. 1)que : "Todo o trabalho diretamente social ou coletivo, executado em grande escala, exige, com maior ou menor intensidade, uma direção que harmonize as atividades individuais e preencha as funções gerais ligadas ao movimento de todo organismo reprodutivo, que difere do movimento de seus órgãos isoladamente considerados. Um violinista isolado comanda a si mesmo, uma orquestra exige um maestro. Essa função de dirigir, superintender e mediar assume-a o capital [no capitalismo], logo que o trabalho a ele subordinado se torna cooperativo."
Isso quer dizer que a crítica do marxismo não deve se voltar à toda e qualquer forma de divisão do trabalho, reivindicando um igualitarismo de sujeitos "conscientes de si". A questão central é que sob o capital, toda forma de processo de trabalho está subordinada a fins desvinculados dos interesses dos produtores diretos, subordinando-os a relações de exploração de classe. E a crítica deve se limitar a isso e vislumbrar uma sociedade sem classes, sem a atual forma extremada de divisão social do trabalho (o que não significa "super-Sujeitos" totais e hegelianos).
Para evitar possíveis erros de entedimento, ainda uma palavra. Não pinto, de modo algum, as figuras do capitalista e do proprietário fundiário com cores róseas. Mas aqui só se trata de pessoas à medida que são personificações de categorias econômicas, portadoras de determinadas relações de classe e interesses. Menos do que qualquer outro, o meu ponto de vista, que enfoca o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode tornar o indivíduo responsável por relações das quais ele é, socialmente, uma criatura, poir mais que ele queira colocar-se subjetivamente acima delas. (Marx no prefácio da primeira edição d'O Capital)Sob o nível teórico devemos ver tais indivíduos, os capitalistas, como portadores de relações que alimentariam um modo de produção, no caso o capitalismo. Como diz Balibar(Ler o Capital v. 2, 1980, p. 190), "as classes não são o sujeito deste mecanismo [de distribuição dos meios de produção num quadro social, ou podemos dizer, da divisão do trabalho], mas o seu suporte, e as características concretas dessas classes, seus efeitos". O fator objetivo, e mais especificamente institucional, aqui aparece como preponderante. O capitalista, "empiricamente", é privilegiado nesse modo de produção, é proprietário dos meios de produção, que se automatizam cada vez mais, e do trabalho, controlando assim o processo de produção (apropriação da natureza) e valorização (exploração/expropriação dos produtores diretos); busca o lucro e a disciplina dos assalariados; porém não é o deus por trás da máquina: pelo contrário é o seu servo. Mas tal fetichização seria de caráter hegeliano/idealista, que prevê escatologicamente a plena consciência de si do sujeito após um período de alienação? Ao nosso entender o marxismo não precisa de tal filosofia da história, de uma teleologia. A fetichização aqui se forma não por haver algo que escape da totalidade que um sujeito deve abarcar, que no final das contas o controla, mas sim porque essa esfera objetiva trabalha no desgaste de tais suportes, que são as classes, no caso a classe trabalhadora, que exerce a função de força de trabalho no capitalismo, e também das forças produtivas, ententida como relação social com a técnica/tecnologia, em benefício da manutenção do sistema do capital e de seus imperativos.
O que significa de maneira mais precisa esse desgaste? Esse termo tenta escapar da noção de retorno idílico a uma completude de um sujeito anterior à "alienação". Nesse sentido, a luta contra a sociedade capitalista não é contra a sua "fetichização/alienação" no sentido abstrato, que envolve um espírito/práxis "humana", normalmente individual. O socialismo não é uma religação a um período pré-moderno: pelo contrário, prevê sua superação. Vemos em Marx (Capital, Livro 1, v. 1)que : "Todo o trabalho diretamente social ou coletivo, executado em grande escala, exige, com maior ou menor intensidade, uma direção que harmonize as atividades individuais e preencha as funções gerais ligadas ao movimento de todo organismo reprodutivo, que difere do movimento de seus órgãos isoladamente considerados. Um violinista isolado comanda a si mesmo, uma orquestra exige um maestro. Essa função de dirigir, superintender e mediar assume-a o capital [no capitalismo], logo que o trabalho a ele subordinado se torna cooperativo."
Isso quer dizer que a crítica do marxismo não deve se voltar à toda e qualquer forma de divisão do trabalho, reivindicando um igualitarismo de sujeitos "conscientes de si". A questão central é que sob o capital, toda forma de processo de trabalho está subordinada a fins desvinculados dos interesses dos produtores diretos, subordinando-os a relações de exploração de classe. E a crítica deve se limitar a isso e vislumbrar uma sociedade sem classes, sem a atual forma extremada de divisão social do trabalho (o que não significa "super-Sujeitos" totais e hegelianos).
Com tal perspectiva escapamos de um risco pesado e muito presente na esquerda de todos os tempos: o subjetivismo e o voluntarismo, que geram uma visão moralista na política. Muitas construções sobre o conceito de ideologia se embasam nesses desvios: elas sempre pressupõem conceitos como consciência, alienação, sujeitos etc. Ora a ideologia não é exatamente a capacidade de, através de um inconsciente das estruturas sociais, práticas e concepções se reproduzirem sem que sujeitos a formulem maquiavelicamente (mesmo havendo instituições, think tanks responsáveis pelas sistematizações diversas no âmbito cultural, científico etc.)? Por outro lado isso não quer dizer, por exemplo, que o diretor do FMI não sabe seu papel e o que deve fazer, mas, como dito acima, este servindo de suporte, há uma sutil consciência, desejo, planejamento. Porém todo esse "voluntário" processo empiricamente constatável em alguns exemplos "concretos", no sentido feurbachiano, é permitido somente por condições e espaços objetivos e não deve se figurar como um fator determinante para uma teoria que tente abarcar as formações sociais. Se tal teoria fosse uma teoria dos/sobre os homens cairia ou na metafísica ideológica das diversas filosofias burguesas (buscando uma natureza humana, por exemplo) ou no empirismo positivista das ciências burguesas (que nega o papel da abstração e da teoria). Balibar comenta a necessidade de se pensar a prática e produção/reprodução/transformação dentro das formações sociais sem cair em formulações antropológicas (idealistas): "[...] a necessidade constringente das relações de produção só aparece então como uma forma que possuiria já o objeto de sua atividade, e que limita as possibilidades de criar uma forma nova" (p. 233). Isso seria caminhar para um materialismo (estruturalista? achamos que não: o estruturalismo provém, apesar de atacar corretamente o subjetivismo histórico e epistemológico, de uma noção de contradição simples e universal, diferente das contradições complexas entre estruturas presentes no materialismo histórico, como demonstrou Althusser).
Esqueçamos de uma síntese do que já foi posto ou de uma tese final: não há espaço nem condições, nem este é o objetivo. Para finalizar é preciso enfatizar que na história o jogo de forças das estruturas sociais estabelecem quais fatores possuem mais peso em determinadas conjunturas, não podendo haver universalizações vazias. Mas não nos enganemos: esses momentos possuem pés no âmbito objetivo, na materialidade determinante mas nem sempre dominante. Como dizia Mao, em Sobre a contradição, o subjetivo pode se tornar dominante em momentos da história. Uma visão paralisante seria tudo, menos dialético.
Toda essa reflexão sobre o materialismo histórico, e qual o papel do sujeito e do subjetivo na história e no capitalismo segundo essa teoria, é no sentido de embasar a análise crítica sobre o filme inside job, filme premiado e que representa, em grande parte, um discurso comum à social democracia, aos reformistas, e até mesmo fundamentalistas de todo o tipo sobre o atual período que vivemos. Qual discurso é esse? É o que se perde moralmente no empírico dos magnatas que se fartam de prostituição, drogas, corrupção e luxo; no empírico (paradoxalmente, por demais fictício) também do capital financeiro, como o grande vilão das pertubações nos países centrais e desmantelamento dos estado de bem estar social, sem o qual não haveria crises nem efeitos econômicos e sociais negativos. O sobrepeso que se coloca nos indivíduos concretos, nos sujeitos do sistema, que deliberadamente formulam no alto de seus gabinetes as preferências do capital, no filme, é que serve de base para o discurso ideológico e que na prática se torna reformista (já que a solução também está no âmbito subjetivo e não tão estrutural, no próprio regime de expansão-acumulação do capital: mudança de pessoal, de preferência, de valores etc.).
As informações sobre o crack de 2008 que o filme traz são bem organizadas e expostas, ainda mais para um público leigo; conhecer quem são os poderosos executivos por trás de tudo aquilo pegos em saias justas também atrai o espectador e torna um assunto para alguns massante num espetáculo a la reality show. Sendo uma mega produção, de grande visibilidade, pode-se identificar um viés progressista na obra e na sua circulação. Entretanto, é preciso cuidado, e salientar o dever dos marxistas frente a tal fenômeno: apontar suas limitações e consequências. Senão far-se-á apologia reformista e utópica de um capitalismo global de face humana, como se as crises, a tendência a monopolização e o crescimento do setor financeiro não fossem partes constituintes e tendências gerais do capital, sendo possível extirpá-las de maneira completa e permanente e sem uma revolução que ponha em cheque a propriedade privada dos meios de produção e os estados capitalistas.
Abaixo disponibilizamos, complementarmente, trechos de um texto de Chesnais de 1998 que visam esclarecer um pouco mais a fundo a quanto anda o capitalismo pós-desregulamentação dos quais somos frutos e vítimas, esse mundo "sem alternativas" que se fortaleceu depois do desastre do socialismo do século XX e início do massacre do capital sem rivais à altura, e mesmo assim onde Lenin e Marx são mais atuais que nunca.
A GLOBALIZAÇÃO DO CAPITAL E AS CAUSAS DAS AMEAÇAS DA BARBÁRIE in: O livro negro do capitalismo, Record: 2000.
[...] A liberdade que o capital, industrial e financeiro, encontra para se espalhar mundialmente como nunca tinha podido fazer desde 1914 tem sua origem na força que recuperou durante a longa fase de acumulação ininterrupta dos "trinta anos gloriosos" (uma, senão a mais longa de todas as histórias do capitalismo). No entanto, o capital não teria nunca conseguido alcançar seus objetivos sem o sucesso da "revolução conservadora" do fim da década de 1970. O triunfo do "mercado" não poderia ter sido atingido sem as repetidas intervenções das instâncias políticas dos Estados capitalistas mais poderosos, apoiados pelas organizações capitalistas internacionais mais importantes, o FMI e o Gatt/OMC em primeiro lugar. Estas intervenções tiveram início muito antes de 1989 ou 1991. Elas começam dez anos antes, na virada dos anos 1970-1980. É este momento em que as forças políticas mais antioperariado dos países da OCDE iniciaram o processo de liberalização, de desregulamentação e de privatização. Mas o caminho foi amplamente preparado. Os políticos antioperariado nunca teriam conseguido levar adiante seus objetivos se a contra-revolução brejneviana não tivesse esmagado previamente a primavera de Praga, assim como o movimento do proletariado polonês do mesmo período; se as direções dos partidos comunistas da França e da Itália, especialmente, não tivessem interferido de 1968 a 1978 para conter e repelir o potencial verdadeiramente democrático e consequentemente anticapitalista dos grandes movimentos sociais - operários e estudantis - que apareceram um pouco por todo o mundo na década de 1968-78 na Europa, bem como nos Estados Unidos e na América Latina.
Por outro lado, a atual vitória do capitalismo é tão completa que mesmo entre aqueles que combatiam os seus efeitos há muitas pessoas que já não utilizam o termo. Chamam de "neoliberalismo" e não tem contra ele mais do que a esperança, quimérica, julgo, de um retorno às formais mais humanas da sociedade capitalista. Alguns ficariam supreendidos, senão chocados, se lhes dissessem que ao recuarem perante a palavra "capitalismo" estão dando apoio a todos aqueles que afirmam - confiantes no balanço desolador do "socialismo real" que o desmoronamento da URSS acabou de revelar - que "a vitória da democracia e do mercado" assinala "o fim da história" ou ainda "o horizonte inultrapassável" das variantes de organização política e social fundadas sobre a propriedade privada dos meios de produção.
[...]
A atualidade da noção de parasitismo
O título do capítulo VIII de O Imperialismo, estágio supremo do capitalismo, "O parasitismo e a putrefação do capitalismo", sempre incomodou muito os teóricos dos partidos comunistas ocidentais. Isto era verdade no passado. Na época, a "coexistência pacífica" com o capitalismo, bem como as suas diferentes metamorfoses, dificilmente podia basear-se apenas na defesa da "pátria socialista". Mesmo dominado pelo "imperialismo americano", era preciso que o sistema com o qual a coexistência estava proibida tivesse qualquer coisa, por muito pouco que fosse, de "positivo"; que parecesse ainda suscetível de oferecer à classe operária e às suas camdas sociais aliadas algumas perspectivas de melhoria das suas condições materiais e morais de existência.O caráter "perturbador" da análise de Lenin é ainda hoje mais evidente no que diz respeito ao que resta destes partidos. No entanto, o segmento histórico correspondente àquilo que se chama de "globalização" ou ainda a "globalização do capital" é certamente aquele em que um conjunto de tendências analisadas por Lenin com a ajuda de Hobson se reafirmou numa escala ainda mais gigantesca do que na véspera da Primeira Guerra Mundial.
Durante algum tempo, nos anos 1950 e 1960, o capital industrial - aquele que Marx afirma, no capítulo I do Livro II de O capital, ser "o único modo de existência do capital onde a sua função não consiste apenas em apropriação, mas também em criação de mais-valia, dito de outra forma, de sobreproduto" - pareceu dominar de novo as economias capitalistas avançadas. A "classe dos rendeiros, isto é, das pessoas que vivem do 'corte dos coupons, pessoas que fazem da ociosidade profissão" (Lenin, Capítulo VII), parecia ter desaparecido e ter apenas uma existência teórica. Do mesmo modo, colocada sob a égide de grupos industriais (as sociedades multinacionais), a dominação imperialista sobre os países neocoloniais ou "dependentes" parecia progredir muito pouco, pois era acompanhada da ampliação das relações de produção capitalistas e da formação de uma classe operária autóctone. O capitalismo não parecia conseguir se definir de forma lapidar como uma "imensa acumulação de capital-dinheiro num pequeno número de países", a saber, os países identoficáveis como "Estados rendeiros". A produção parecia sobrepor-se à apropriação; a indústria , à finança; o lucro (largamente investido; à renda financeira. Largamente centrado na existência da figura do rendeiro, o capítulo VIII da obra de Lenin estava entre aqueles pelos quais era possível passar muito depressa.
Hoje, deste ponto de vista, as coisas são ainda piores: evidentemente não há alinhamento possível numa social-democracia ela própria transformada em social liberal, se não ignorarmos a análise de Lenin, com risco de dizermos que ela era válida no passado, mas não o seria hoje. Infelizmente não é o caso. Neste século XX, a sociedade mundial encontra-se de novo sob o controle férreo de um capitalismo dominado por contratos de rendimentos, um capitalismo cuja avidez e ferocidade são tanto mais fortes quanto ele é parasitário. ésimultaneamente no sentido de Lenin, isto é, organiado em torno de instituições (os mercados financeiros) e de Estados (os Estados Unidos e o Reino Unido em primeiro lugar), cuja única característica possível é a de rendeiro, e no de Marx, ou seja, marcado por formas de acumulação que estão mais voltadas para a apropriação do que para acriação de mais-valia. Um pouco mais à frente, no mesmo capítulo do livro II, Marx escreve de fato qualquer coisa cujo alcance passou praticamente despercebido até hoje: "É porque o aspecto dinheiro do valor é a sua forma independente e tangível que a forma A...A', cujo ponto de partida e de chegada são o dinheiro real, exprime da forma mais tangível a idéia de fazer 'fazer dinheiro', principal motor da produção capitalista. O processo de produção capitalista aparece apenas como um intermediário inevitável, um mal necessário para fazer dinheiro. É por isso que todas as nações dedicadas ao modo de produção capitalista são periodicamente apanhadas de vertigem de querer fazer dinheiro sem o intermediário do processo de produção." Hoje, os grandes Estados capitalistas fizeram mais do que ceder a esta vertigem. Colocando os "mercados" no comando, colocaram a economia mundial, tanto a dos seus próprios países como a do globo inteiro, nas mãos de pessoas cuja visão do mundo é precisamente essa.
Uma acumulação correspondente às prioridades do capital-dinheiro
Na sua configuração atual, o movimento do sistema capitalista mundial é comandado antes de mais nada pela reconstituição de forças de concentração do capital-dinheiro tão poderosasquanto inovadoras (os grandes fundos de coleta de poupança e de aplicação financeira), bem como a transferência, em benefício dos mercados financeiros nos países centrais, de funções importantes de distribuição de recursos e de regulações econômicas essenciais que durante muito tempo foram controladas pelos Estados. Os grandes industriais tem um papel primordial, mas não são eles que comandam o movimento de acumulação no seu conjunto. Esta é ordenada a partir de gigantescas transferências de valor e de mais-valia em benefício do capital-dinheiro vivendo dos dividendos e dos juros sobre os empréstimos. A promoção da esfera financeira na posição de "força autônoma" por parte das pessoas que ignoram tudo do ciclo "encurtado" do capital A...A', como análise do caráter idólatra das finanças, teve por função ocultar o papel desempenhado pelos próprios Estados na gênese da "tirania dos mercados". Esta permite disfarçar os macanismos através dos quais a esfera financeira, antes de instalar os circuitos fechados de distribuição interna de ganhos e perdas puramente financeiros, se alimenta de transferências de riquezas muito concretas. Os capitais que se valorizam na esfera financeira nasceram - e continuam a nascer - no setor produtivo. A valorização, ou "frutificação" da maior parte dos recursos reais captados pelas instituições financeiras, é feita sob a forma de aplicações em obrigações e ações, isto é, em títulos de crédito sobre a atividade econômica futura.
[...]
Duas características marcam o capital-dinheiro de forma inerente. A primeira é a convicção de que os fundos em que investe sob a forma de ativos negociáveis nos mercados financeiros, isto é, que coloca financeiramente, tem a "propriedade natural" de "produzir rendimentos". É ao que Marx se referiu um dia dizendo que, para os seus detentores, os ativos deviam produzir recursos (dividendos e juros em primeiro lugar), "com a mesma regularidade que a pereira produz peras" (O capital, III, capítulo XXIV). A segunda característica, intimamente ligada à primeira, é o de ser portador daquilo a que se chama no jargão atual de "abordagem patrimonial" que se desenvolve em todo o detentor de ativos financeiros a propensão para manter um estoque de riquezas especulativas às quais ele pode entregar, a característica deste capital é a de estar situado em locais e de ter horizontes de valorização distintos e muito afastados do local onde se desenvolvem as atividades de investimento, de produção e de comercialização (sendo que estas asseguram a conclusão indispensável do ciclo de valorização do capital produtivo). A distância não é meramente física; é ideal. É com toda a razão que Lenin, no mesmo capítulo, fala a propósito da classe dos rendeiros como "pessoas completamente isoladas da participação em qualquer empresa". Esta caracterização permanece exata mesmo quando os representantes do capital-dinheiro rendeiro fazem parte de "comissões de auditoria" a partir das quais eles exercem o "governo da empresa". As instituições que operam nos mercados financeiros tem a sua própria representação do mundo, a começar pela economia. Necessitam dos fluxos regulares de recursos das suas colocações, de rendimentos seguros pelo menor custo. Os prazos de amadurecimento da grande maioria dos investimentos produtivos situam-se totalmente fora de horizonte. Entre colocações financeiras, os títulos dívida pública, especialmente os dos Estados cuja credibilidade financeira é mais elevada, ocupam um lugar de destaque. A segurança e a regularidade dos rendimentos fazem deles a escolha por excelência das concentrações contemporâneas do capital financeiro cuja função é assegurar os fluxos de rendimentos permanentes e estáveis. Mas os dividendos recebidos monetariamente a patir dos lucros dos grupos industriais adquiram uma importância crescente. É o nível e a regularidade dos fluxos de dividendos que as comissões de auditoria tem por missão controlar sem descanso.
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