segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A CIA e a guerra fria cultural

Reproduzimos resenha de Miguel Urbano Rodrigues de um importante livro para compreender a relação entre política, luta de classes as artes/cultura. Esta, em nossa época, mais uma vez se mostra, não paira puramente nas bibliotecas e museus, mas está, em última instância, vinculada ou à perpetuação ou à superação do sistema capitalista.

© 2013 Sally Edelstein


Esta semana chegou-me às mãos um livro muito importante: A CIA e a guerra fria cultural. [1]

Desconhecido em Portugal, gostaria que fosse editado no nosso país para ser lido por milhares de pessoas desinformadas por um sistema mediático perverso que apresenta uma imagem deformada do sistema de poder dos Estados Unidos.

O título é enganador. Ao iniciar a leitura estava persuadido de que se tratava de mais uma obra de divulgação de ações criminosas da CIA. Daí a surpresa.

O livro de Frances Stonor Saunders é muito mais ambicioso. A autora, jornalista e historiadora britânica, dedicou cinco anos à investigação de um tema muito mal conhecido: as atividades encobertas desenvolvidas pela CIA no mundo da cultura para promover o descrédito do comunismo e mobilizar contra a União Soviética grande parte da intelligentsia progressista ocidental.

Em 1945, o prestígio da URSS nos EUA era enorme. A maioria do seu povo sentia uma grande simpatia, sobretudo apos a batalha de Stalinegrado, pelo país que desempenhara um papel decisivo na derrota do Reich nazi.

Essa realidade era muito incómoda para a elite do poder estado-unidense. A Doutrina Truman e o Plano Marshall demonstraram ser manifestamente insuficientes para alterar a atitude da classe média estadunidense perante a União Soviética.

Os cérebros ligados ao poder em Washington concluíram pela necessidade urgente de convencer o homem comum norte-americano de que o aliado na guerra durante quatro anos, de 1941 a 1945, era, afinal, um perigoso inimigo.

A elite que se propunha a reorganizar o mundo sob a égide dos EUA em torno dos seus "valores" estava consciente de que esse objetivo somente poderia ser atingido se o Ocidente capitalista fosse empurrado para a conclusão de que o comunismo, "obscurantista, desumano, agressivo", era a grande ameaça para a humanidade, pelo que se tornava imprescindível combatê-lo.

A Oficina de Serviços Estratégicos-OSS, que funcionou durante a guerra como uma Gestapo americana, foi de certa maneira uma predecessora da CIA. O seu chefe, o general William Donovan, reuniu à sua volta destacadas figuras da aristocracia do capital como os filhos do banqueiro JP Morgan, os Vanderbilt, os Dupont, e intelectuais como George Kenan e Charles Bohlen.

Uma das primeiras iniciativas da OSS foi o recrutamento de militares e civis nazis. Dezenas de altas personalidades alemãs passaram de criminosos de guerra a aliados de confiança. Um caso expressivo:o general das SS Reinhardt Behlen, chefe dos serviços secretos nazis que, em vez de ser preso e julgado, recebeu o tratamento de colaborador privilegiado da OSS.

No seu livro, Frances Saunders dedica os primeiros capítulos às campanhas desenvolvidas por Donovan, com o apoio de Truman, para demonstrar aos europeus que os EUA eram uma sociedade onde a cultura ocidental lançara raízes profundas, contrapondo essa imagem à "barbárie soviética". O Bem contra o Mal.

A literatura, a música, a pintura, a arquitectura, o ballet dos EUA foram amplamente divulgados na Alemanha, na França, na Itália e noutros países. Simultaneamente, antecipando-se a eventuais acusações de patrioteirismo, obras de Aristófanes, Goethe, Schiller, Thomas Mann, Ibsen, Strindberg, Shaw, Gorki, Gogol eram difundidas numa prova inequívoca do amor dos EUA pela cultura universal.

Essa ofensiva cultural não produziu, porem, os resultados previstos.

Coube à CIA a tarefa de levar adiante no contexto da Guerra Fria um projeto muito mais complexo e ambicioso, também na frente da cultura.

Criada em 1947 pela Lei de Segurança Nacional, a Agencia Central de Inteligência-CIA assumiu as proporções de um polvo gigantesco. Inicialmente não estava autorizada a intervir em assuntos de outros países. Truman e os seus sucessores permitiram que ela desenvolvesse atividades de espionagem, e promovesse operações militares. Hoje possui linhas aéreas, emissoras de TV e rádio, jornais, companhias de seguros, imobiliárias, bancos.

Em l948 foi criado na Agencia um Escritório de Coordenação de Politicas – OPC com a missão específica de realizar "operações secretas" em múltiplas áreas.

Esse estranho departamento especial cresceu vertiginosamente. Em três anos o seu pessoal passou de 302 pessoas a 2812,alem de 3142 assalariados no estrangeiro. O orçamento elevou-se de 4,7 milhões de dólares para 82 milhões.

O ideólogo do sistema era então George Kennan, o ex embaixador em Moscovo, fanático anticomunista, arquitecto do Plano Marshall que desempenhou um grande papel na concepção e funcionamento da Guerra-Fria.

Foi um dos pais da CIA e consultor da OPC. Coube-lhe formular o conceito da "mentira necessária" como componente fundamental da diplomacia estado-unidense.

Uma das operações secretas mais difíceis foi a concebida para utilizar a esquerda não comunista em campanhas anticomunistas. Secreta porque os intelectuais envolvidos em campanhas contra a União Soviética deveriam ser manipulados habilidosamente. A OPC atuava nos bastidores, invisível. O governo americano, as embaixadas dos EUA, os grandes media norte- americanos abstinham-se inclusive de comentar elogiosamente as tomadas de posição antissoviéticas de escritores e artistas europeus, muitos dos quais eram ex-comunistas. Tudo se passava como se as conferencias, seminários, festivais manifestações e outros eventos em que participavam esses intelectuais fossem espontâneos, nascidos de iniciativas suas.

Mas a realidade era muito diferente. Oculta, era a CIA quem planeava a orquestração anticomunista, quem financiava generosamente (com o Departamento de Estado) essas campanhas.

Frances Saunders desce a minúcias ao descrever o esforço desenvolvido pela OPC através de intermediários respeitáveis para conseguir que grandes nomes da esquerda aderissem a iniciativas de cariz anti-soviético.

Nos EUA prestaram-se a esse papel escritores prestigiados como John Steinbeck, John dos Passos, Gertrude Stein, Schlesinger, W.H.Auden, Arthur Miller, e orquestras sinfónicas, museus, etc. Os intelectuais trotsquistas aderiram massivamente. Na Europa, foram envolvidos na teia anti-soviética: André Gide, Albert Camus, Elsa Triolet, Andre Malraux, Simone de Beauvoir, Raymond Aron, Georges Orwell, Aldous Huxley, Laurence Olivier, Jean Cocteau, Salvador de Madariaga, Claude Debussy, Denis de Rougemont, Milan Kundera, e muitos outros. E – chocante, mas real - Aragon, Sartre, Bertrand Russell.

A intervenção na Hungria das tropas do Tratado de Varsóvia, em 1956 criou na Europa uma atmosfera favorável à intensificação da Guerra Fria.

Entre os muitos livros cuja publicação foi promovida pela CIA, um deles, The God That Failed (O Deus Que Falhou) foi best-seller mundial. Traduzido em dezenas de línguas vendeu milhões de exemplares. Partiu da CIA a ideia de reunir seis ensaios (a maioria já publicados na revista alemã Der Monatcontrolada pela Agencia) de Arthur Koestler, Ignazio Silone, Andre Gide, Richard Wright, Stephen Spender, todos eles escritores famosos que haviam sido militantes ou simpatizantes comunistas.

"Além de ser uma espécie de confissão coletiva – escreve Frances Saunders – o livro era um ato de recusa, uma rejeição do estalinismo no momento em que para muitos essa atitude era ainda uma heresia. Foi um livro de importância transcendental no pós-guerra e aparecer nele foi um passaporte válido para o mundo oficial da cultura nos vinte anos seguintes".

Koestler, que adquirira enorme notoriedade com o seu romance O Zero e o Infinito, Milovan Djilas e George Orwell, autor do 1984, destacaram-se nessas iniciativas pela sua febre anticomunista.

O primeiro, que havia sido nos anos 30 um dedicado militante do Partido Comunista Alemão-DKP, colaborou intimamente com a CIA e foi conselheiro do Foreign Office em campanhas anti-soviéticas.

Comités e Associações constituídos para defender a Cultura, a Liberdade e a Democracia, mas cujo objetivo era a promoção de iniciativas anticomunistas, permitiram então à CIA (sempre atuando nos bastidores) exercer uma grande influência sobre uma parcela importante da "esquerda não comunista".

Para isso contou com a colaboração e a ajuda financeira de organizações como a Fundação Ford.

Das muitas revistas criadas para "promover a cultura", uma delas, a britânica Encounter, alcançou prestígio mundial. Dirigida por Stephen Spender, um poeta inglês, foi concebida para funcionar como um instrumento político anticomunista no mundo da cultura. E atingiu o objectivo. Durante anos colaboram nela eminentes figuras da intelligentsia mundial.

Nem o diretor, Spender, conhecia a origem do financiamento. Quando uma inconfidência revelou, nas vésperas da Assembleia do Congresso pela Liberdade da Cultura, a ponte entre Encounter a CIA e as elites financeiras dos EUA, o escândalo foi maiúsculo.

Em reuniões desse Congresso fantasmático, ideado pela CIA, participaram, aliás, durante anos grandes nomes da esquerda não comunista. Na prática foi uma tribuna anticomunista.

No seu belo livro, Frances Saunders dedica alguns capítulos a ações encobertas da CIA não comentadas neste artigo. Cita nomeadamente várias Fundações, Universidades, congressistas e governantes que apoiaram iniciativas criminosas da famosa Agencia. Um mar de lama tóxica.

E dedica especial atenção aos quadros – ideólogos e executantes – que idearam as campanhas anti-soviéticas, fazendo delas uma poderosa arma da Guerra Fria.

Cito alguns nomes dessa máfia política praticamente desconhecida em Portugal: Lasky, Josselson, Nabokov, Kristol, Hook, Wisner. Termino transcrevendo o último parágrafo do livro de Frances:

"Sob a (ainda não) estudada nostalgia dos "Dias dourados" da inteligência americana havia uma verdade muito mais demolidora:   as mesmas pessoas que liam Dante, estudaram em Yale e se educaram na virtude cívica, recrutaram nazis, manipularam o resultado de eleições democráticas, proporcionaram LSD a pessoas inocentes, abriram o correio de milhares de cidadãos americanos, derrubaram governos, apoiaram ditaduras, conceberam assassínios e organizaram o desastre da Baia dos Porcos.

Em nome de quê? perguntava um crítico: "Não da virtude cívica, mas do império". 
Vila Nova de Gaia, 9/Agosto/2013


[1] Frances Stonor Saunders, Who Paid the Piper? The CIA and the Cultural Cold War , Granta Books, United Kingdom, 1999. Em 2013, a Random House Mondadori lançou em Bogotá a edição colombiana, com 597 páginas: www.megustaleer.com/ficha/C922362/la-cia-y-la-guerra-fria-cultural 

O original encontra-se em www.odiario.info/?p=2980 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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