segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Notas sobre o livro póstumo de Hobsbawm




A "anti-arte industrial" de Warhol, massificada e vazia: avanço ou retrocesso à cultura burguesa tradicional?


Hobsbawm se foi no final de 2012, levando toda a sua erudição. Ainda é um autor progressista? A Veja, à época, o chamou de "idiota moral", denunciando seu "marxismo irredutível", apesar de elogiar seu "talento". Não nos apressemos: a linguagem histérica desse podre exemplar do monopólio do reacionarismo de vanguarda (e seus nefastos objetivos) é capaz de acusar o próprio sol de comunista quando avermelha o céu. Na realidade o historiador nos seus últimos anos de vida chegou ao ápice de uma ambiguidade política típica de um revisionista: chegando a apontar a "relevância de Marx" na atual crise juntamente com declarações anticomunistas comuns a qualquer formador de opinião ocidental do pós-guerra fria (formado na melhor escola arendtiana do "totalitarismo").

Em "Tempos Fraturados - cultura e sociedade no século XX", vemos esse Hobsbawm ambíguo, mais pra lá do que pra cá, com um realismo/ceticismo exemplar em relação à possibilidade de um futuro para além do capitalismo. Talvez tenha se tornado inconveniente nos círculos acadêmicos negar a plausibilidade do regime democrático-liberal que força sua entrada nos últimos rincões do mundo, sem nenhuma alternativa à altura - em oposição aos estranhos e cruéis "totalitarismos" socialistas do passado que impunham uma ditadura popular a seus habitantes e ameaçavam o cotidiano morno de um homem das letras. De qualquer forma, como em Era dos Extremos, sua posição política não enche de desonestidades suas análises e dados a ponto de inviabilizar sua leitura. Estamos diante de um intelectual que, em alguns assuntos, conseguiu a proeza de não perder a lucidez.

Então tentando isolar sua falta de "prognóstico", e consequente neutralismo do presente, vejamos o que ele traz, e uma possível explicação que leve a um terreno marxista.

O livro é um exemplar de seu projeto de história social e cultural, sobretudo do século XIX para cá, contendo várias palestras, artigos dos últimos anos de sua vida, já publicados ou inéditos. Felizmente, isso não coloca o livro dentro da teoria da história e da historiografia "pós-moderna" em voga (mais próxima da literatura solipsista). Hobsbawm é um dos poucos historiadores contemporâneos do período após a moda da "História Nova/Estudos culturais" que manteve um mínimo de decência materialista em suas análises culturais, em oposição à ironia em relação ao marxismo e a qualquer análise científica dessa corrente. Ele toma as principais transformações da cultura nas sociedades humanas modernas/ocidentalizadas (e outras nem tão principais assim...) entre a consolidação burguesa e o iniciante século XXI, relacionando-as com as relações geopolíticas e econômicas.

Tomemos as linhas principais, e deixemos seus capítulos de exercício erudito e hermenêutico de lado. Hobsbawm quer saber sobre a decadência da sociedade burguesa tradicional, através das mudanças sociais do século XX, e que nos fez herdar um mundo aparentemente tão complexo quanto o de hoje. Para ele, as revoluções tecnológicas alteraram de forma significativa as formas de sociabilidade e de produção artística em todo o mundo. A ideologia na sociedade burguesa não é mais a mesma: eis um ponto que muitos marxistas resistem a compreender, renovando apenas seu "repertório" econômico e político, e deixando sua visão sobre a ideologia (as formas de construção de identidade, produção e luta simbólica entre as classes) intacta desde meados do século XX.

Que alterações foram essas? Segundo Hobsbawm: "o muro que separa cultura e vida, reverência e consumo, trabalho e lazer, corpo e espírito, está sendo derrubado. Em outras palavras, "cultura" no sentido burguês criticamente avaliativo do mundo cede a vez à cultura no sentido antropológico puramente descritivo.". Aquele mundo das artes e da cultura de elite, acessível a poucos iluminados, em espaços públicos determinados e quase sagrados (museus, óperas etc.) se foi - e parece ter sido corrompido para sempre. A sociedade atual possui um formato muito diverso daquele representado pelas cidades burguesas europeias com claras distinções entre cultura "alta" e popular.

Abrindo um parêntese, há de se perguntar, no entanto, se esse mundo que não encontrou espaço no século XX deve ser chamado de "burguês tradicional". Ora, o próprio Hobsbawm aponta que ele foi montado em muitos aspectos por traços não-democráticos (meritocráticos) e principescos, herdados de um passado recente aristocrático. A sociedade de massa do século XX, e agora, a chamada sociedade de massa individualizada do século XXI, não seria mais próximo aos ideais universais burgueses, e ao seu modo de produção industrial (e não artesanal)? Isso nos faz lembrar as teorias que afirmam um presente "pós-capitalista", por identificar capitalismo apenas suas fases nascentes (supostamente "descritas" no Capital de Marx, nesse sentido, não mais útil). O que é uma bizarrice sem tamanho.

Porém, se levarmos em conta uma tese que é muito defendida por Hobsbawm, de que o século XX, mais precisamente após a Segunda Guerra Mundial, abandonou os ideias iluministas (progresso, razão emancipadora), que tinha se aliado numa frente (capitalismo-socialismo) para vencer o irracional nazi-fascismo, podemos ver melhor que, o apontado por ele como sociedade burguesa tradicional é aquela cujo funcionamento se dava através de um horizonte ideológico provindo das revoluções burguesas (que opunha ao obscurantismo e o absolutismo). Mas, novamente, podemos afrontar essa tese com a seguinte reflexão: a sociedade burguesa seria consolidada apenas por uma ideologia fixa, que denotaria sua "natureza", ou se modificaria, através dos anos e das formações sociais, buscando perpetuar sua existência (no início, mais aristocrática, depois mais liberal etc.)? Nesse sentido podemos pensar também as sociedades nazi-fascistas como sociedades burguesas, o que de fato são, apesar de em sua aparência (coorporativismo, anti-liberalismo etc.) serem tão "opostas". E também, podemos pensar o socialismo de forma não-idêntica ao iluminismo, argumento pelo qual Hobsbawm parece justificar sua desconfiança de um possível retorno à "ditadura do proletariado" - afinal, os ideais iluministas acabaram... Então como o capitalismo se mantém de pé sem eles???

Esse debate, na filosofia, normalmente é conhecido sobre a ruptura ou continuidade entre a modernidade (molde burguês clássico e seu opositor socialista) e a pós-modernidade (onde, a priori, nenhum dos dois faz sentido em seu sentido clássico).

Enfim, o fato é que essa esfera cultural apresentou transformações: a produção simbólica apresenta traços muito peculiares hoje, e cada vez mais internacionalizados. A laicização e o impulso à modernização levaram a cultura e as artes a uma velocidade e dinâmica nunca antes vistas. As ciências naturais e exatas aplicadas transformaram não só as forças produtivas mas nossos cotidianos e nosso mundo. Assim como relações sociais impulsionaram novas invenções que dessem conta desse modelo.

O legado burguês clássico e ocidental parece ter caído no ostracismo: permanece como artigo de luxo, e com pouca expressividade na sociedade, restringindo-se a clubes seletos e pouco ortodoxos. As artes plásticas (sobretudo elas), o teatro, a poesia declamada, e demais produtos permanentes de representação humana, monopolizados pela "burguesia instruída" em seu início, vem perdendo terreno para a produção cultural de massa e fortemente baseada na intermediação tecnológica e multimidiática. O lugar privilegiado das artes e do saber erudito (que elevava, como no romantismo, a figura do artista ao lugar de mediador do sublime) desapareceu, e seu enterro se deu com o fracasso das vanguardas, e as propostas de anti-arte dadaístas ou do pop art. O muro, que Hobsbawm falava, entre arte e vida, belo e banal, foi rompido e sua diluição gerou esse nosso cotidiano mergulhado em excesso de informação, imagens e sons. O mundo da alta cultura, com seu gênio e seu artista, foi profanado, no momento em que nosso cotidiano foi elevado à condição de artístico, com muitos artistas (lema do punk rock: faça você mesmo), muitos intelectuais especializados e serviços artísticos-culturais.

O fim desse elitismo cultural simboliza tanto uma democratização da cultura (vide o crescimento vertiginoso da escolaridade e da alfabetização depois do pós-segunda guerra, e a constituição de massas estudantis e "consumidores de cultura" em todo o mundo), quanto um efeito perverso (que os estudiosos da cultura de massa já apontavam como a criação de uma sub-cultura, e a mercantilização da cultura através da indústria do entretenimento). Esse efeito perverso foi muito perceptível ao longo do século XX, onde o rádio, a TV, o cinema e a propaganda, foram grandes aliados ideológicos para o capitalismo. Assim como hoje é perceptível uma onda mais "democratizante" a partir da internet e maior mobilidade migratória, que em oposição à homogeneidade imposta por setores dominantes e seus monopólios, possibilitam um maior grau de sincretismo e interferência cultural - o que hoje se chama de multiculturalismo e que representa uma possibilidade de interseções culturais (sincretismos) que possibilitam uma certa "voz", influência e resistência a culturas dominadas. Eis uma primeira aparência, e Hobsbawm consegue completá-la com a advertência que essa abertura ao multiculturalismo, através das "mídias horizontais" por exemplo, também é útil ao mercado a partir de criação de novos nichos de consumo (mulheres, negros, gays etc.). Além disso, esse novo terreno para além do massificado, e mais individualizado, mina o potencial de intervenção política coletiva - é preciso notar, como aponta Hobsbawm, os artistas e intelectuais hoje são muito menos engajados que no no intervalo XIX-XX - e continua nas mãos de empresas privadas ou Estados (vide os casos recentes de espionagem ianque em servidores famosos da web). Assim como, podemos adicionar, os meios de comunicação de massa foram, como na URSS, e são essenciais ainda para uma propaganda contra-hegemônica que atinjam as massas.

De forma geral, o livro de Hobsbawm consegue apontar algumas características do estado cultural (ideológico) do mundo ocidental de hoje (cada vez global e veloz, apesar de aparecer de forma mais metamorfoseada na "periferia" ou no campo - e muito mais sincréticas). Não é um livro isolado, mas compartilha com outros esforços essa busca de apreensão da realidade ideológica - que também, como Hobsbawm, se afastam do, ou veem com preconceito, marxismo. Essas características da ideologia hoje desafiam não só a construção de novas análises conjunturais - órfãos de uma análise completa marxista-, que consigam encontrar a "essência" desse novo cenário, como também de novas ações e projetos políticos que busquem alcançar relevância e organicidade com as massas.

O sociólogo Norbert Elias, em famoso ensaio, aponta que a século XX caminhou culturalmente para sociedades onde há primazia da identidade individual sobre a identidade coletiva, onde o "eu" (potencializado com o simulacro do consumo e serviços individualizados por exemplo) é maior que o "nós" de uma tradição ou coletividade (família, nação, ideologia). Ao mesmo tempo que o "nós" ainda se permanece nos Estados-nações (de funções gigantescas na sociedade) além de se internacionalizar: um "nós" humano se tornou mais concreto, e cada vez mais podemos ter acesso rapidamente a fatos do mundo todo, e conseguimos nos identificar com injustiças em locais que nunca fomos. Eis a transformação de mão dupla que a decadência da sociedade tradicional burguesa e seus ideais e instituições nos trouxe, cheia de arestas ainda não concluídas e em disputa. E ela fica muito clara se refletirmos sobre essa nova "geração facebook", que ao mesmo tempo que gasta horas com marketing pessoal na rede, também se organiza e se articula no mundo todo. Ou que, vivendo em mundo cada vez mais técnico-científico, tem buscado em religiões e fundamentalismos (ver o boom pentecostal no Brasil) parâmetros normativos para sua vida pessoal de forma a não se contradizer.

A esfinge do presente está na nossa frente. Ou atualizamos nossa resposta para dar conta de sua charada e mudamos o mundo sobre suas bases atuais, ou, graças a nossa nostalgia, somos engolidos por ela. Largar o lado da tradição anacronizada, que nos afasta no concreto, sem cair no terreno pantanoso (e mais fácil) da traição: um grande desafio para os marxistas.

2 comentários:

  1. Companheiros, das várias propostas possíveis debates com vocês, pensei no seguinte
    1. Balanço teórico mais amplo sobre a produção historiográfica de Hobsbawn
    2. Em qual medida a mercantilização da arte desarma seu potencial revolucionário?
    3. Uma vez docilizada, a arte popular - formadora da ideologia popular, contestadora, corrosiva às ideologias burguesas pós-modernas, no sentido de que se acabou a utopia socialista, etc - não poderia ser recriada como forma de intervenção política?
    4. É possível um balanço sobre a importância das redes sociais na intervenção política?

    Grato.

    Abraço.

    Análise das Conjunturas

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  2. Acho que Hobsbawm apresenta as limitações apresentadas no início do texto.

    Sobre a mercantilização da arte é um assunto amplo. Há quem avalie isso de forma "interna" (o pessoal de Frankfurt e seus seguidores, analisando como a estética de massa e de mercado oblitera perspectivas emancipadoras), e também "externa", na ampliação do mercado cultural e sua função econômica, política e de conformação. E nisso duas propostas aparecem: uma estética de vanguarda, que por si só expresse uma ruptura política, ou uma estética a serviço de uma causa (ex: o realismo socialista, mais "funcional"). Sobre a autonomia relativa da produção cultural, em polêmica com Safatle, escrevemos: A indigência cultural no país e suas verdadeiras causas: sobre um artigo de Safatle (neste blog).

    Sobre arte popular, há de se destacar que: a cultura popular, espontânea, há grande parcela de comodismo e tradicionalismo (por vezes, é exatamente a cultura moderna que vem quebrar esse ambiente folclórico). Não é por si progressista em suas posições e expressões. Mas está em disputa, e com terreno fértil. O fato atual, de um horizonte socialista estar "fora de moda", é uma demonstração da ofensiva capitalista no campo ideológico, que afeta a consciência das massas. E sua retomada só poderá se realizar na luta de classes (que é econômica, política e teórica).

    As redes sociais tem um caráter instrumental, mas também afetam o conteúdo e formato da política (as informações simultâneas possibilitam, por exemplo, uma aversão à mediadores e centralização: cada um por si, armado de seu multimídia). É uma tendência controversa, em certo aspecto: aumenta minha ilusão de "autonomia" frente à estrutura social, mas também amplia a solidariedade e sentimento de pertencimento, independentemente do local/cultura.


    o autor

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