sexta-feira, 1 de junho de 2012

O Economicismo Oculta a Revolução - Armando Boito Jr.

Reproduzimos artigo publicado na revista Crítica Marxista, número 2. Disponível em: http://www.unicamp.br/cemarx/CM2oeconomicismoarmandoboito.pdf

Ao nosso ver o artigo "conversa" com os últimos posts publicados no blog e esboça algumas respostas esclarecedoras referentes à diminuição da classe operária em algumas sociedades do capitalismo contemporâneo, os impactos disso numa possível política socialista revolucionária dentro de um contexto posterior à onda revolucionária do século XX que teve seu fim catastrófico com o fim do bloco socialista.


"Uma certa idéia abstrata, porém cômoda, tranqüilizante,
de um esquema 'dialético', purificado, simples (....) e a fé
na 'virtude' solucionadora da contradição abstrata como tal:
a bela contradição entre capital e trabalho."
(Louis Althusser, depois de Lênin e Mao Tse-Tung)


O debate sobre a atualidade do movimento socialista e da revolução tem, em grande parte, se desenvolvido em bases equivocadas.

Intelectuais de diferentes posições políticas têm debatido o futuro do socialismo e da revolução circunscritos, em grande medida, ao terreno estreito da tecnologia e da situação de trabalho e de mercado da classe operária. O economicismo, típico da ideologia neoliberal, espraiou-se por diversas áreas das ciências humanas. Os movimentos operário e socialista seriam, segundo essas abordagens, coisas do passado devido às novas tecnologias, às novas formas de gestão da força de trabalho, ao desemprego e à fragmentação da classe operária. As bases sócio-econômicas para unificação da classe operária num movimento de classe teriam desaparecido.

Muitos críticos de esquerda têm argumentado, com razão, que as transformações econômicas e tecnológicas não apontam para a eliminação do trabalhador coletivo assalariado, manual e não-manual. Ocorre que operam com esse argumento no interior da mesma problemática teórica à qual pertence a análise que pretendem criticar. Consideram-no suficiente para demonstrar a possibilidade histórica da revolução. Tudo se passa como se, de fato, os movimentos operário e socialista pudessem ser deduzidos da situação de trabalho e de mercado da classe operária, isto é, do "universo estreito" (Lenin) das relações entre operários e patrões. Ora, o movimento operário e a revolução foram, ao longo de todo o século XX, resultado de um conjunto amplo, complexo e heterogêneo de relações e contradições entre diversas classes sociais, nacionalidades e Estados, conjunto esse que, embora extravasasse o sistema capitalista, articulava-se em torno dele em escala internacional. É do processo político global, desse conjunto de relações e contradições, que se deve partir para compreender as condições nas quais a classe operária pode unificar-se num coletivo de classe e as condições nas quais podem ocorrer as revoluções.

I

A longa onda revolucionária do século XX iniciou-se no México em 1911, com uma revolução democrático-burguesa, e, depois de passar pela Europa, Ásia e África, encerrou-se na Nicarágua, em 1979, com uma revolução democrático-popular. O ciclo abriu-se e fechou-se ma América Latina, e comportou vários tipos de revolução nos quatro continentes. Foram contradições típicas do sistema capitalista, mas também, de modo bastante amplo, contradições próprias de modos de produção pré-capitalistas e, principalmente, contradições oriundas do sistema imperialista que provocaram essas revoluções.

O capitalismo estava consolidado em poucos países no início deste século XX: na maioria dos países da Europa ocidental, nos Estados Unidos e, talvez, no Japão. Mesmo nesses países, contudo, as sobrevivências pré-capitalistas (feudais e escravistas) eram marcantes. Na América Latina, a despeito da existência de Estados burgueses na maioria dos países, a agricultura, na qual estava alocada a maioria da população latino-americana, baseava-se, inclusive no Brasil, em relações de produção de tipo pré-capitalista, caracterizadas por formas variadas de subordinação pessoal do trabalhador ao proprietário da terra. Na Ásia, formas comunitárias de utilização da terra conviviam com sistemas de castas e ordens e com latifúndios tipicamente précapitalistas. Na África Negra, ainda predominava a organização tribal. A luta camponesa pela terra e contra diversas formas de renda pré-capitalista foi um dos componentes fundamentais das revoluções do século XX.

O século XX foi, também, o século da formação do novo sistema imperialista internacional: a disputa entre as potências pela repartição da periferia e a luta de libertação nos países dependentes estiveram na raiz de crises e revoluções. A dominação imperialista articulou-se, na periferia do sistema, com toda sorte de economias e Estados de tipo pré-capitalistas, introduzindo, nos países periféricos, contradições de novo tipo - as contradições de classe típicas do capitalismo e as contradições decorrentes da dominação imperialista sobre os Estados e as economias nacionais. Essas novas contradições vieram se somar às contradições específicas daquelas formações sociais.

As revoluções do século XX estiveram, todas elas, ligadas a esse quadro geral: o desenvolvimento desigual do capitalismo, o sistema imperialista e o pré-capitalismo ainda prevalecente em grande parte dos países periféricos. A Revolução Russa de 1917 e, mais tarde, a Revolução Chinesa de 1949 e a bipolarização da política internacional entre Estados Unidos e União Soviética geraram novas contradições e estimularam os movimentos revolucionários em escala internacional.

Nos países capitalistas centrais, o movimento operário foi, na maior parte do tempo, um movimento por reformas, cujo resultado foi a extensão da cidadania do plano civil, no
qual a burguesia procurava confiná-la, para os planos político (democracia) e social (Estado de bem-estar). O movimento operário dos países capitalistas centrais converteu-se em movimento revolucionário em conjunturas específicas de crise, propiciadas, no mais das vezes e de modos variados, por disputas e guerras entre as burguesias nacionais imperialistas e neocoloniais (revoluções russa e alemã) e pelas lutas de libertação nacional nas colônias (Revolução Portuguesa). As guerras exigem muito das massas, degradam suas condições de vida, provocam um crescimento "desmesurado" e brusco da base "proletária e popular" do Exército burguês e podem dividir e desmoralizar as classes dominantes. Os Estados Unidos, potência capitalista cujo território nunca foi palco de conflito bélico interimperialista, jamais estiveram ameaçados por um movimento operário socialista revolucionário.

Nos países periféricos, as revoluções, nacionais ou populares, sempre estiveram vinculadas à luta contra a dominação imperialista e, principalmente nos casos da África e da Ásia, contra a dominação de tipo neocolonial. Essas revoluções tiveram, no mais das vezes, o campesinato como principal força motriz. O que variou de uma para outra dessas revoluções foi a sua força dirigente: ora a burguesia nacional, ora a pequena burguesia e as camadas médias urbanas, ora núcleos reduzidos da classe operária que agiam representados por um tipo particular de partido político operário, forjado pela III Internacional. Do mesmo modo que a luta pela independência nacional, que foi prolongada em toda a periferia do sistema, levou a crise política para o centro
do sistema imperialista, propiciando oportunidades de ação mais ofensiva e mesmo revolucionária aproveitadas pelo operariado dos países centrais, assim também, na periferia, as classes populares e as burguesias nacionais foram beneficiadas pelas contradições e lutas que dividiam os países centrais. De um lado, a luta de libertação nacional pôde jogar com as contradições que dividiam as potências imperialistas e, a partir da Segunda Guerra Mundial, essa luta pode explorar a contradição que opunha as duas superpotências - EUA e URSS. De outro lado, o movimento de libertação apropriou-se, à sua maneira, da crítica social e do conhecimento estratégico acumulado pelo movimento operário europeu. Apropriação que, de resto, criou uma das figuras ideológicas típicas deste século: uma ideologia "socialista periférica", que era, em realidade, expressão de um movimento nacional e popular. Talvez apenas na China e na União Soviética tenha existido, de fato, e mesmo assim apenas nas primeiras fases dessas revoluções, uma linha socialista proletária diferenciada das linhas nacional e popular.

É certo que o processo revolucionário na União Soviética e na China, após um período de lutas, redefinições e retrocessos, tomou o caminho do capitalismo burocrático – sem revogar, convém lembrar, todas as conquistas da revolução. Mas o resultado mais geral, e em muitos casos indireto e involuntário, dessa vaga revolucionária e dos movimentos reformistas que, de diversas maneiras, foram favorecidos pelas revoluções, esse resultado geral foi positivo para as classes populares: o fim do neocolonialismo (China, Egito, Argélia, Guiné-Bissau, Moçambique, Angola etc.), a democratização do acesso à terra em inúmeros países (México, China, Vietnã, Nicarágua etc.), a expansão do capitalismo nos mais importantes países da periferia (Índia, Brasil, México, Argentina etc.), a criação do Estado de bem-estar nos países centrais, a democratização do Estado burguês em escala planetária e a integração de grandes contingentes das massas populares ao consumo industrial.

II

Desde o final de Segunda Guerra Mundial, essas transformações, que se processavam em tempos desiguais, foram confluindo, gradativamente, para uma situação nova que
encerrou aquele ciclo revolucionário. As contradições em jogo no conjunto do sistema encontraram, em momentos distintos e de modo desigual de país para país, soluções ou acomodações temporárias, e as novas contradições que surgiram não atingiram, ao menos até agora, um nível crítico.

A expansão da democracia política e do Estado de bemestar no centro capitalista, a ausência de conflitos bélicos importantes entre as potências imperialistas, a formação de novos Estados nacionais na Europa, permitindo a organização em Estado-nação de nacionalidades oprimidas, a desagregação da União Soviética e a conseqüente eliminação da bipolaridade no sistema internacional, o fim do neocolonialismo na África e na Ásia, a industrialização capitalista dependente na América Latina e as reformas agrárias em inúmeros países da periferia solucionaram ou então acomodaram, ao menos temporariamente, as contradições que estiveram na base das revoluções: a) a contradição entre o movimento operário e a burguesia, principalmente nos países centrais; b) a contradição entre as potências imperialistas pela repartição
da periferia; c) a contradição entre as superpotências (EUA e URSS), que, após a Segunda Guerra Mundial, cindiu a política internacional; d) a contradição entre, de um lado, as burguesias nacionais, a pequena burguesia e as camadas médias urbanas dos países periféricos e, de outro lado, o neocolonialismo; e) entre o campesinato e o sistema latifundiário; f) entre as populações urbanas dos países periféricos e a antiga divisão internacional do trabalho que bloqueava o acesso dessas populações ao consumo de tipo industrial; g) entre as burocracias (civil e militar) de Estado da periferia, que aspiravam a autonomia jurídica do Estado que encarnavam, e a dominação neocolonialista, contradição que teve um papel central em revoluções nacionais
como a do Egito.

O topo do sistema imperialista completou a passagem para  um período no qual predomina a unidade política entre as grandes potências - organizadas em torno da hegemonia político-militar solitária e absoluta dos Estados Unidos, a relação do centro com a periferia encontrou uma nova acomodação e as referências político-ideológicas principais da luta revolucionária esvaneceram-se com o rumo capitalista burocrático tomado pelas principais revoluções.

III

O quadro histórico nesta última década do século XX é de estabilidade política relativa do capitalismo e do sistema imperialista. Mais do que isso: assistimos uma ofensiva geral das forças conservadoras. À medida que a luta revolucionária recuava, o declínio e a desagregação final da União Soviética se consumavam e a cena internacional passava a ser ocupada apenas pela alternativa reforma ou reação, o reformismo foi levado de vencida pelas forças conservadoras do neoliberalismo. No que respeita à superação da bipolaridade entre a URSS e os EUA, o resultado foi, para os reformistas, o oposto do que esperavam. Diziam que o fim da guerra fria retiraria o pretexto (sic) do qual dispunham os EUA e a direita para combater as reformas. A esquerda reformista teria melhores condições de avançar. O que se verificou foi o contrário. O fim do "perigo vermelho", isto é, do espectro do capitalismo nacional autônomo de Estado que havia aterrorizado a burguesia privada imperialista ocidental, favorecendo tanto as reformas como a revolução no centro e na periferia do sistema, liberou a direita para partir para a ofensiva. A história não se repete; mas, em condições novas e com características particulares, a burguesia e o imperialismo procuram sim anular boa parte do saldo obtido no período anterior: ameaçam o Estado de bem-estar, a industrialização obtidada na periferia e, até, a descolonização - por que não começarmos a pensar num novo colonialismo comandado pelos EUA sob a bandeira da ONU?

No momento atual, a revolução não se encontra na ordem-do- dia. Isso quer dizer que a revolução está superada historicamente? Pensamos que não. O capitalismo e o imperialismo não resolveram as contradições que podem gerar as revoluções.

Essa nossa convicção, queremos enfatizar, não provem da refutação de argumentos como aqueles que se referem às estatísticas sobre o número de operários. Muitos marxistas raciocinam informados pela tese errônea da polarização sóciodemográfica
entre a burguesia, que tenderia à progressiva redução de seu contingente, e o proletariado, que cresceria incorporando os desclassificados das demais classes sociais,
tese defendida por Marx n' O Manifesto do Partido Comunista. Ignoram a análise mais profunda e sofisticada do volume I d'O Capital, na qual, em ruptura com a tese presente n' O Manifesto, Marx demonstra que o aumento da composição orgânica do capital pode levar a uma diminuição, relativa ou absoluta, da classe operária. Deve-se lembrar que grandes países industriais, como os Estados Unidos, nunca estiveram seriamente ameaçados pela revolução. De resto, o movimento é desigual: com a internacionalização da produção capitalista, o contingente de operários pode diminuir em alguns países do centro e crescer em outros da periferia. Não consideramos decisivo, tampouco, o nível de emprego: a Rússia e a Alemanha revolucionárias não eram uma "sociedade do trabalho", mas de desempregados, e a primeira contava com uma classe operária bastante diminuta.

É necessário ter presente que, se a situação de trabalho e de mercado tem uma incidência direta sobre o movimento sindical, o mesmo não vale para a revolução. Na verdade, parte dos processos que têm afetado a atual situação de trabalho e de mercado da classe operária são muito mais efeito do que causa do recuo da revolução. A questão decisiva no que tange à situação da classe operária e sua possibilidade de dirigir um processo revolucionário consiste em saber se o trabalho manual, coletivo e assalariado está, sim ou não, em processo de extinção - seja pelo desaparecimento ou redução à insignificância do trabalho vivo nos processos produtivos, seja por um processo de regressão ao trabalho parcelar e independente. As pesquisas indicam que nada disso está ocorrendo. Se isso é assim, continua dependendo da política, nacional e internacional, a possibilidade de a classe operária unificar-se num movimento revolucionário.

O novo surto de crescimento das forças produtivas é portador de contradições novas e pode aguçar velhas contradições não resolvidas.

Esse crescimento tem provocado o aumento da pobreza na periferia e no centro. O Estado de bem-estar, que integrou o movimento operário europeu, está em crise. Amplos setores das classes médias encontram-se num processo de degradação sócioeconômica, depois de terem, de modo desigual, garantido alguma melhoria com o Estado de bem-estar no centro, e com a industrialização dependente na periferia. A organização das populações pobres e desenraizadas das grandes metrópoles poderá compensar, para as forças revolucionárias, o refluxo, em parte temporário, do movimento camponês em escala internacional. Refluxo que resultou das vitórias na luta pela reforma agrária e do avanço do sistema de trabalho assalariado no campo. Hoje o capitalismo ocupa sozinho – de fato e, o que é importante, também na percepção dos agentes sociais - a cena histórica. O agravamento das condições de vida poderá mais facilmente ser debitado, pelas massas, a esse sistema.

A unidade no topo do sistema imperialista poderá romperse. Desde os anos 80, a tendência das potências imperialistas tem sido o agrupamento em blocos concorrentes. No interior de cada um desses blocos há grande desigualdade entre as potências associadas. As disputas por mercados e em torno de dívidas, como a norte-americana, não estão isentas de se converterem em conflitos mais graves, e mesmo em conflitos
bélicos. Guerras localizadas, como no Iraque ou na Bósnia, só são localizadas devido ao atual quadro internacional. Somente uma visão idílica da história do século XX e do imperialismo pode desconsiderar a hipótese de um agravamento das relações internacionais. A situação de acomodação entre o centro e a periferia poderá deteriorar-se. As potências imperialistas têm pressionado, dos anos 80 para cá, por políticas de desindustrialização na periferia, e por um processo global de reconcentração financeira e tecnológica no centro do sistema.

Tais pressões poderão reativar, em bases novas, a contradição de setores das burguesias nacionais periféricas, das classes médias e das massas populares com o imperialismo. Pode-se levantar a hipótese de que, na nova situação histórica, as revoluções que poderão surgir estarão apontando muito mais para o futuro do que para o passado, ao contrário do que ocorreu com as revoluções do período 1911-1979, que estiveram às voltas, em grande medida, com o feudalismo e com o imperialismo de velho tipo das potências neocoloniais. Se isso estiver correto, essa é uma razão a mais para os intelectuais socialistas assumirem a tarefa de desenvolver o marxismo, com base no estudo crítico dos textos e da experiência revolucionária do século XX. No século XXI, ao contrário do que ocorreu neste século, o socialismo poderá colocar-se como objetivo prático para um grande número de revoluções.

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