sexta-feira, 8 de junho de 2012

Resenha do livro Do marxismo ao pós-marxismo? de Goran Therborn (Parte III - final)

 [Augusto Machado]


O século XX marca o ápice de influência política e cultural do marxismo em todo o mundo. Sob esta bandeira se organizaram partidos e movimentos de massa que realizaram as revoluções e revoltas que caracterizam o século onde o fim do capitalismo parecia enfim decretado. Mas a era das revoluções proletárias subitamente se corroeu e “a maré recuou e deu lugar a um tsunami neoliberal”, hoje hegemônico e de forte apoio cultural e político em diversos cantos do mundo. Eis retorno triunfal de uma ofensiva do imperialismo.

Depois das duas últimas décadas do século XX a esperança de uma alternativa sistêmica e concreta ao capitalismo parece ter sumido do horizonte político e teórico em grande parte. “O trabalho perdeu sua força”, como diz o autor, suas organizações e ideologias foram desmanteladas, ao mesmo tempo em que o capital se reestruturava no centro e retomava as regiões antes do bloco socialista. A esquerda, segundo o autor, sobrevive timidamente através dos novos Fóruns Mundiais, cúpulas, congressos, movimentos antiglobalização, de imigrantes, da resistência árabe, ou em alguns governos mais experimentais como na América Latina etc. Mas a velha política socialista (e até mesmo social democrata), esta está bem apagada, aproximando-se a um conjunto de seitas sem expressividade de massa e poder social efetivo, com poucos indícios de retorno. “Nos países onde o sistema permite, o apoio a esse tipo de política varia entre 5% a 20% [...] o subdesenvolvimento da teoria política marxista, juntamente com a reestruturação das sociedades capitalistas, torna improvável que uma política socialista ascendente possa ser marxista. O zênite de classe trabalhadora industrial acabou, enquanto sujeitos políticos antes ignorados agora tomam a dianteira [...] Os antigos mapas da rota para o socialismo perderam suas coordenadas. Novas buscas precisam ser feitas; é de se esperar que levem algum tempo”.

Essa análise desiludida a um retorno da política socialista e marxista perpassa todos os capítulos do livro, mas agora o objetivo do autor é ver quais respostas estão sendo dadas no nível teórico a esse desastre.

Nesse quadro histórico sombrio, como pensar e o que aconteceu com a teoria marxista? Para o autor o marxismo é uma “ideologia” que se enquadram no cenário histórico da modernidade, como já vimos. Mas nesse capítulo o autor propõe um esquema “triangular” interessante para caracterizar o marxismo. Os três pólos são: 

“Intelectualmente, o marxismo é, antes de tudo, uma ciência social histórica [...] que foca a operação do capitalismo e, mais em geral, os desenvolvimentos históricos determinados, “em última instância, pela dinâmica das forças e relações de produção. Em segundo lugar, o marxismo é a filosofia das contradições ou dialética, com ambições epistemológicas e ontológicas, assim como com implicações éticas. Em terceiro lugar, é um modo de política da classe trabalhadora socialista; ele forneceu a bússola e o mapa para a derrubada revolucionária da ordem existente. A política é o vértice dominante do triângulo, o que torna o “ismo” uma corrente social e não apenas uma linhagem intelectual. O materialismo histórico, com a crítica da economia política marxiana, e a dialética materialista, com a filosofia social da alienação e o fetichismo da mercadoria, tinham seus atrativos intelectuais intrínsecos, mas estão em geral conectados a [...] uma política de classe socialista.”

Esse triângulo será fundamental para entender o pós-marxismo e outras variantes do marxismo “tardio” do Norte, que provém em grande medida do marxismo ocidental já comentado.

Para o autor a partir dos anos 80 a política socialista se desintegra e o triângulo é desfeito, de maneira “irremediável”, completa. Assim, o tapete do pensamento marxista é puxado. A atração Marx talvez não suma, assim como respostas críticas anticapitalistas, mas os novos desafios “pós-modernos” parecem por em xeque o triângulo antes vigoroso.

Pós-modernidade aqui aparece como o cansaço (temporal-histórico) do progresso moderno que, após avançar ao máximo e se consolidar pelo mundo, minando os moldes culturais tradicionais, enfim seu significado começa a perder credibilidade (ou seja, suas narrativas e promessas de futuro emancipador de esclarecimento através de uma coletividade) dando lugar ao ceticismo e busca de outras vias (o slogan do fórum social mundial, “não queremos desenvolvimento mas sim...” e os diversos ambientalismos são exemplos claros dessa perda de credibilidade).Ora, o marxismo está encharcado por uma dialética da modernidade, no sentido que não a abandona por completa, e bebe dela para sua teoria e ação.

O pós-modernismo é exatamente o abandono da dialética da modernidade (continuidade crítica do projeto moderno): em vez do futuro as pessoas voltam para suas raízes identitárias primárias (raça-etnia, gênero, religião, sexualidade). Como já sugerido no capítulo I, Goran diz que a modernidade hoje parece ser só de direita.

Diante da emergência da pós-modernidade, que no quadro social se refere a um processo de desindustrialização e fim da política socialista, novos autores do pensamento radical buscam “reviver” o marxismo, o socialismo e a esquerda, cada um a sua maneira. Goran nos traça um panorama de diversos autores, entre a filosofia, a economia, a sociologia e adiante que se dividem inicialmente tipos de respostas e características centrais, são elas:

Virada teológica (Europa): inclui autores pós e neomarxistas na filosofia social e política como Badiou (que substitui Lenin por Paulo, na tentativa de uma nova figura militante para a nova fase da hipótese comunista); Zizek, seguindo os passos de Badiou, ao comparar Lenin com Paulo; Hardt e Negri, com seu São Francisco e o militante comunista “feliz”, oposto ao tristonho militante do Comintern. Essa resposta também inclui autores que retornaram para a religião e para o cristianismo, como Habermas, ou como Terry Eagleton, que voltou para a militância católica. 

Pode-se dizer que o nome de Carl Schmitt, que também era teólogo, é referência implícita ou explícita aqui.

Futurismo (norte-americano): inclui utopistas como Jamenson, Harvey, e outros mais apocalípticos e otimistas como Wallestein e Arrighi. Em vez de retornarem às figuras teológicas, esses autores se voltam para um pensamento do futuro, o colapso do capitalismo e o retorno da importância utópica. 

Deslocamentos de classe: apostando na tese da pós-industria pelo menos nos países centrais, o autor demonstra como a classe perdeu muito sua centralidade:  “Classe continua a ser a principal categoria descritiva em muitas arenas [ciências humanas “empíricas”, sobretudo] Mas a maioria das conexões entre essa corrente descritiva principal, de um lado, e a ação social política e a teorização radical dessa ação, de outro, foi cortada. [...] a classe e a emancipação de classe não são mais as preocupações principais”. Gênero, raça, cidadania (Direitos humanos), ocupam lugares de destaque para a nova teoria social e política, e uma análise de classe profunda e mundial como era feita até os anos 70 não existe mais.

Pode-se notar com isso o aparecimento de teorias de classe sem luta (sobretudo na sociologia), e teorias de luta sem classe (mais comum na Europa e no terreno da filosofia). Nessa última “corrente” destacam-se os nomes de Laclau e Mouffe, com talvez o trabalho mais importante de filosofia política de nossa época, e Balibar, ex-aluno de Althusser que se mantem menos herético ao marxismo mais clássico. Em Laclau e Mouffe a classe é substituída pela noção de antagonismo e política pura, de disputas de hegemonia de interesses particulares, influenciada pelas pesquisas sobre populismo e a psicanálise lacaniana. Em Balibar a luta de classes permanece como estrutura determinante, mas não mais a única.

Saídas do Estado: a pós-modernidade também traz a perde a problemática soberania estatal, e, já com a luta de classes posta de lado, agora é o próprio objetivo desta (poder de estado) que é abandonada. No lugar do Estado vemos surgir as noções de império, globalização etc. Como propostas temos o retorno da sociedade civil e da democracia radical, as colaborações de ação comunicativa de Habermas, ou até mesmo a pretensa resposta ortodoxa de Zizek, com seu anticapitalismo que mescla crítica cultural “pop” com clássicos do marxismo tradicional.

Retorno à sexualidade: aqui temos o surgimento da teoria queer e o resgate da psicanálise, sobretudo lacaniana (alguns chegam a chamar de esquerda lacaniana).

Homenagem às redes: substituição do conceito de estrutura por redes, com respectivos impactos políticos organizacionais (exemplo: Casttels).

Economias políticas: terreno pouco visitado pelos principais teóricos marxistas de hoje, fato que já se podia identificar no marxismo ocidental. Basicamente a crítica da economia política continua a ser feita pelos próprios economistas acadêmicos de vertente neoricardiana. Também se destacam as teorias da globalização, a economia institucional e a teoria da regulação e outras tentativas progressistas em era neoliberal de aproximação entre economia, história e o social, mas com um tratamento não tão comum ao marxismo clássico.

O autor reorganiza essas respostas e características centrais num outro esquema que reproduzimos abaixo:






Pós-socialismo: consiste basicamente na centro esquerda, nas reivindicações para a sociedade-civil, no reformismo, na crítica ao “comunismo autoritário”; Giddens, terceira via, novo trabalhismo.
Esquerda não-marxista: consiste na centro esquerda, social democracia, anti-neoliberalismo/globalização: Bourdieu, Mangabeira Unger, Boaventura.

Marxologia e marxismo científico: sem comprometimento político, cientistas na economia, sociologia ou na filosofia que utilizam o poder analítico de Marx sem levar em conta seu legado político.

Pós-marxismo: “referência a escritores com formação explicitamente marxistas, cujos trabalhos recentes foram além da problemática marxista e não reivindicam publicamente um engajamento marxista contínuo. Não equivale ao ex-marxismo nem é denúncia ou negação.” É mais distante do marxismo clássico do que o neomarxismo, porém a relação entre neo e pós não é tão rígida, podendo haver autores que se encaixam nos dois (exemplo dado pelo autor: Balibar). Teoria crítica talvez seja apontada como pioneira do pós-marxismo. Laclau, Offe, Honneth, Bauman, Habermas são autores destacados dessa corrente. Talvez o nome de Badiou “esquecido” por Goran esteja nesse espectro teórico-político. 

Neomarxismo: Zizek, Negri e Hardt, são apontados como principais neomarxistas. Se caracterizam por escritos e propostas radicais, porém ainda abstratas e com novas roupagens (multidão, teologia política etc.), e retomam clássicos do marxismo.

Esquerda resistente (marxismo resiliente): Revistas teóricas críticas como NLR, o nome de Alex Callinicos com sua vasta obra e o chamado marxismo analítico (Burawoy, Wrigth) são considerados aqui como os mais ortodoxos, na tentativa de manter conceitos e problemáticas centrais do marxismo.

A crise é profunda, e como podemos ver, muitas respostas em muitas direções ainda não tão consolidadas estão sendo realizadas nos últimos anos. No final de seu livro Goran propõe uma humildade desafiadora para a esquerda, uma espécie de paciência ainda resistente.


Mais alguns apontamentos finais

Os ensaios do livro foram realizados num intervalo do início do século XXI que antecede as crises econômicas e explosões políticas que se deram a partir de 2008, com interessante protagonismo europeu. Estariam os fatos de 2008 para cá afirmando ou indo ao contrário das teses de Goran sobre o fim da política socialista? Não haveria agora um retorno ao ideário, mesmo que tímido, que inclui classes sociais, retorno da noção de luta de classes, luta contra um modo de produção, superação do capitalismo para além de reformas estatais fragmentadas? Seria arriscado dizer qualquer conclusão nesse sentido sem uma análise mais detalhada desses fatos políticos e movimentos recentes.  Porém, pode-se dizer que pelo menos a visão hegemônica neoliberal do fim da histórica ficou um pouco abatida, abrindo novas brechas para uma política radical anticapitalista.

E essa política poderia ser de novo marxista? O triângulo está desfeito com a crise e não apresenta nenhuma forma superior? Para Goran as modificações ocorridas na sociedade mundial nas últimas décadas do século XX parecem dizer que não. O abandono tanto desse autor, quanto dos autores pós, ou neo, de alguma influência marxista, de categorias centrais do materialismo histórico (luta de classes, por exemplo), a tendência ao ecletismo no materialismo dialético (sua “renovação” via cristianismo é um exemplo) e a secundarização de modelos mais claros de política socialista/proletária, parece ser uma aproximação “realista” ao pós-modernismo imperante academicamente, como dissemos na primeira parte da resenha.

O chamado marxismo resiliente de Goran inclui autores diversos, mas aponta um interessante campo de estudo sobre renovação do marxismo.

Sem dúvida poderíamos tirar as respostas cada vez mais distantes do marxismo e do socialismo como um sintoma de ausência de organizações políticas da classe trabalhadora em nível internacional após a derrubada do bloco socialista e degeneração de suas principais focos de resistência de massa. Isso o próprio Goran concorda. Mas seria o retorno da classe trabalhadora, que ainda sobrevive, seja nos canteiros de superexploração das novas periferias, seja sob novas formas ainda no centro do sistema, tão impossível assim? A nova política radical se basearia agora em contradições outras que não as da classe? 

Essas perguntas são as perguntas que todo aquele que pretende participar de um projeto revolucionário deve-se fazer. Percebemos que o livro ao se focar na realidade e teoria do Norte não condiz com o resto da realidade mundial. Se a “desindustrialização” pode ser realidade em certos centros urbanos europeus, isso não significa para o resto do mundo “subdesenvolvido”.  Por isso as conclusões categóricas que o autor do livro chega devem ser vistas de maneira mais relativa, temporal e espacialmente. 

Como comentamos anteriormente, o marxismo é útil enquanto o modo de produção capitalista continuar existindo. As mais inúmeras alterações deste nos últimos anos não se configuraram de forma alguma num fim da história, ou num pós-capitalismo, como querem muitos reacionários, e que por vezes concordam (implicitamente) as análises pós e neo marxistas. Permanecendo, mesmo que sob novas formas, a existência do capital, temos irremediavelmente os espaços das classes sociais e sua disputa de interesses objetivos (luta de classes). Se o quadro é hoje sombrio e "sem sujeito" para a revolução isso não deve significar uma visão de crise eterna. A análise concreta da realidade que claramente ainda possui contradições deve apontar tarefas a se fazer que ainda girem a roda da modernidade, mesmo esta tendo sido abandonada por niilistas e céticos de todo o tipo, dado o angustiante mundo unidimensional do pós guerra fria que infelizmente hoje temos que viver.

Só a história, que é feita pelas massas sob condições objetivas-estruturais pré-estabelecidas, pode chegar a uma conclusão mais cabal. As apostas devem ser lançadas, mesmo sem muitas garantias de vitória. E arriscar, para as massas exploradas e oprimidas, não é uma opção, mas é por excelência uma necessidade de sobrevivência.

PS: Se dermos uma olhada no índice onomástico do livro, não encontraremos nenhum vestígio do nome de Meszáros (que é europeu, contemporâneo e filho tardio do marxismo ocidental). Parece que acertamos em nossos apontamentos sobre seu principal livro (para além do capital) ao dizer o quão desproporcional é sua influencia e recepção no marxismo brasileiro se comparado aos países do norte, que andam ultimamente por outras trilhas teóricas.

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