quarta-feira, 6 de junho de 2012

Resenha do livro Do marxismo ao pós-marxismo? de Goran Therborn (Parte II)

 [Augusto Machado]

Dando continuidade à análise do livro de Goran Therborn nesta modesta resenha em três partes (cada qual se encarregando de um capítulo do livro), postamos a parte II: O marxismo do século XX e a dialética da modernidade.  

O título do capítulo já é bem esclarecedor: trata-se de um ensaio que visa traçar as principais características e tendências do marxismo no Velho e no Novo Mundo, enfocando suas relações com a modernidade. A maior parte, cumprindo o principal objetivo do livro que é uma análise do marxismo contemporâneo do Norte, volta-se ao marxismo no velho mundo.  

Modernidade, Velho mundo e marxismo 

O marxismo não é apenas um corpo teórico antigo. Como perspectiva cognitiva distintiva a respeito do mundo moderno, é superado em importância social – em termos de números de adeptos – apenas pelas grandes religiões. Como polo moderno de identidade, é superado pelo nacionalismo. O marxismo ganhou essa importância histórica muito especial porque dos anos 1880 até os anos 1970 foi a principal cultura intelectual dos dois maiores movimentos sociais da dialética da modernidade: o movimento trabalhista [proletário] e o movimento anticolonial. Em nenhum desses casos, o marxismo deixou de ter concorrentes importantes ou sua difusão foi universal, uniforme e vitoriosa, porém nenhum de seus competidores tinha alcance e persistência comparáveis. 
Trecho do Capítulo  

Goran começa sua análise da relação entre modernidade e marxismo com um termo emprestado do mundo parlamentar: “oposição leal a sua Majestade”. Ora, essa parece ser um termo que esclarece bem o marxismo enquanto agente de uma dialética da modernidade. Essa dialética tem como objetivo “pegar os dois chifres da modernidade, o emancipador e o explorador”, o lado progressista e o lado perverso, mas sem sair do solo da própria modernidade, como pretendem outros críticos, vide os nietzschianos. “O marxismo defendeu a modernidade com o objetivo de criar outra modernidade, muito mais desenvolvida”, resume bem o autor.  

As diversas correntes do marxismo se diferenciavam nesse tocando ou por enfocar nos aspectos positivos (exemplo II internacional, oportunista), ora por enfocar seus aspectos meramente negativos do progresso capitalista (exemplo o esquerdismo da III em alguns aspectos). Aqui também se pode encaixar vertentes mais “positivas” ou pessimistas.  

Marx e Engels nasceram e foram formados num ambiente europeu propriamente moderno, no pensamento e na vida social que se transformava rapidamente (consolidação do capitalismo, revoluções burguesas e proletárias). Em grande parte foram herdeiros, e de certa forma, “radicalizadores”, da tradição crítica, do criticismo, que se tornou possível com a secularização da cultura, e teve expoentes no pensamento alemão como Kant e o hegelianismo. Essa tradição que é oposta ao feudalismo quase que por completo já tombado, identificava crítica, verdade e ciência como um só fenômeno.

Para o autor, é nítida um conceito e uma influência da modernidade em Marx: sua obra prima teórica, uma crítica à economia política, traz em seu próprio nome a herança radical da tradição crítica moderna de influência iluminista. Sem falar nas obras juvenis de Marx e Engels, quando ainda estavam fortemente influenciados pelo “paradigma” hegeliano de esquerda.  

A modernidade e marxismo foi tema central de uma corrente do marxismo autointitulada como teoria crítica. Essa teoria formada na primeira metade do século XX, normalmente é ligada ao nome “Escola de Frankfurt” e inclui autores como Horkheimer, Adorno e Marcuse. A teoria crítica se opunha à  teoria tradicional, cuja primazia era a divisão do trabalho teórico em disciplinas específicas e uma suposta neutralidade sócio-política do conhecimento, com um projeto de crítica global da sociedade capitalista moderna de fortes influências marxistas.  

“A teoria crítica acolhe, reflete e elabora filosoficamente a crítica da economia política de Marx, situada no contexto dos eventos traumáticos de 1914 a 1989: o massacre da Primeira Guerra Mundial, a revolução abortada no Ocidente e seu nascimento deformada na Rússia, a Depressão e a vitória do fascismo […], o surgimento das grandes organizações, a Segunda Guerra Mundial e a unidimensionalidade da Guerra Fia. Com seu tom próprio e muito especial, a teoria crítica expressa um veio de reflexividade radical no caminho da Europa através da modernidade."

Apesar de continuar com uma tentativa de dialética da modernidade, a maior parte dessa corrente foi marcada pelo pessimismo (paradoxalmente, sua obra teve impacto explosivo e politicamente ativo nas novas gerações europeias dos anos 60). Sua tentativa dialética de "destruir para salvar" o Iluminismo caminhava, contudo em Adorno, para um afastamento cada vez maior da realidade e engajamento político.  

Essa tendência se modifica com a figura de Habermas, “herdeiro” autocrítico da teoria crítica, que, sob uma forte influência weberiana, realizará uma tentativa de atualização do marxismo clássico, seguindo a tendência dessa corrente de retificação das teses marxistas tradicionais a partir de outros aportes teórico-conceituais. De forças e relações produtivas, Habermas trará para a teoria as noções de trabalho (esfera da ação racional com respeito a fins, “razão instrumental”, hegemônico na modernidade, seja capitalista, seja “socialista”) e ação comunicativa (referente ao “mundo da vida”, mediado simbolicamente, portador de uma razão emancipadora, democrática). Esses esforços darão luz a uma nova teoria do direito, influente em muitas áreas do conhecimento hoje, com respectivos impactos políticos. 

Habermas se diferenciará também da teoria crítica tradicional ao primar pela estudo e embate de correntes de pensamento contemporâneas ao estilo ensaístico quase poético comum em grande parte ao seu mestre e professor Adorno. Vários autores, incluindo Goran, em seu artigo da NLR citado no livro “Jürgen Habermas: A New Eclecticism” defendem que Habermas tende a ter um viés conciliador (ou talvez “dialético demais”...) em relação aos diversos ismos e correntes filosóficas e científicas que aparecem no século XX. Essa tentativa de atualização, em um momento histórico mais recente, mais uma vez, liga e diferencia Habermas de seus antecessores. 

A ambígua relação do marxismo e posteriormente da teoria crítica com a modernidade possui seus pontos fortes e fragilidades. Se no marxismo tradicional e seus correntes mais próximos vemos um otimismo referente ao desenvolvimento europeu pela modernidade, na teoria crítica a sombra pessimista que indica um futuro muitas vezes sombrio, ou quando não aponta, abandona quase que por completo o “paradigma” propriamente marxista. Para entender melhor a proliferação do marxismo no Norte no século XX, cuja, sem dúvida alguma, a modernidade foi um dos principais temas para pensar a sociedade, a política socialista, e o porvir histórico e onde a teoria crítica foi apenas uma expressão (não a única, mas nem por isso de extrema importância e influência), precisamos lançar mão, como faz o autor, de um conceito cunhado por Ponty e depois desenvolvido por outros historiadores como Perry Anderson: o marxismo ocidental. Compreender o chamado marxismo ocidental é compreender um conjunto importante de linhas de pensamento marxista de solo europeu que perdurou até meados dos anos 60 e se inicio com o impacto da revolução de outubro.  

Para o autor, o marxismo ocidental é “mais uma tradição que um movimento”. Tem como nomes centrais e iniciais Lukacs, Krosch e de certa forma Gramsci. Perry Anderson, comentado pelo autor, afirma que o marxismo ocidental é marcado pela derrota do movimento operário em diversos momentos e países, ou a deterioração de sua vitória (daí se explicaria seu “pessimismo”), possui um forte viés acadêmico (e não mais político, de cultura partidária) e tenta se exilar na filosofia. Assim o marxismo ocidental é o oposto do marxismo de Oriente, “institucionalizado” ou partidário, mais ortodoxo, sobretudo soviético “stalinista”, ou até mesmo trotskista ou maoista.  

Mas Goran questiona um pouco essa visão tão dicotomizada entre Oriente e Ocidente. O ocidente acadêmico crítico se formou a partir do impacto da revolução russa, e em grande parte era seu simpatizante, apesar das críticas e divergências. Além disso, figuras taxadas como marxistas ocidentais tiveram militância em papeis centrais do movimento comunista (muitos dos filósofos faziam parte ou apoiam partidos comunistas de seus países). O ranço pessimista, se daria como uma espécie de escape heterodoxo à hegemonia da terceira internacional.  

Logo após a onda do marxismo ocidental, surge o que o autor chama de neomarxismo, cujas características são um viés mais científico que filosófico, significando assim um certo amadurecimento dos departamentos de humanidades no velho mundo, e tem como evento político marcante o famoso 68 (Vietnã, movimento estudantil e de direitos civis no primeiro mundo, a revolução cultural etc.). “Mas quando o impulso político radical começou a perder força na segunda metade dos anos 1970, o marxismo político desapareceu rapidamente. O marxismo acadêmico também recuou de forma significativa, em alguns casos, substituído por “ismos” teoricamente mais novos e, em outros, submerso em práticas disciplinares ecumênicas. Manteve-se melhor na sociologia e na historiografia.”  

O desenvolvimento do marxismo enquanto pensamento e enquanto política na Europa (Velho mundo) é um assunto complexo, que apresenta diversas polêmicas em cada momento e espaço histórico específico. A análise do autor que perpassa quase todo o século XX pretende dar conta das principais influências, sobretudo intelectuais, teóricas e acadêmicas do marxismo europeu no século XX, período onde este apresentou seu apogeu de influência e produção teórica e cultural seguido de sua caída e substituição por outras correntes de pensamento (o pós-modernismo, o pós-estruturalismo, os estudos culturais e suas tendências anti-modernas, como é sabido, vieram com força retirar o marxismo de seu hegemonia do pensamento crítico a partir da década de 70).  

E o Novo Mundo (América, África, Ásia...)?  

Resume o autor: 

“Em países cuja modernização foi induzida de fora, era de se esperar que o marxismo tivesse uma existência marginal [na cultura], fosse deixado de lado como facção modernizante instalada no poder e se distanciasse amplamente das massas empurradas para a modernidade pelos governantes. Por outro lado, a abertura para a importação de ideias deveria levar a uma importação precoce do marxismo e de outras ideias radicais pelas facções pró-modernidade que estivessem fora do poder. A importância relativa dessas duas tendências deveria depender da continuidade da modernização e da repressão. Quanto mais peso tivessem esses dois fatores menos marxismo haveria.”  

Como dito a recepção do marxismo no Novo Mundo é diferenciada e menos impactante e profunda, pelo menos inicialmente, pelo fato de a modernidade (capitalista), realidade tratada pelo marxismo ser uma realidade “imposta” de fora, muitas vezes de maneira traumática. A dinâmica então era outra .  O marxismo começa a ganhar corpo no novo mundo com a própria modernização do novo mundo, a academia (norte americana, latino americana e alguns casos isolados asiáticos não-socialistas) e os movimentos políticos e sociais (destaca-se fortemente os movimentos anticoloniais e anti-imperialistas) foram as duas portas de entrada principais e que posteriormente geraram alguma consolidação teórica, política e cultural.   

Apontamentos finais  

As questões levantadas pelo autor nesse capítulo mais “histórico” podem se desdobrar em diversos debates e polêmicas: o quão o marxismo é continuidade e o quão é ruptura da modernidade? Como podemos identificar isso nas obras dos clássicos do marxismo? O qual danoso ou acertado as “atualizações” realizadas pela teoria crítica e o marxismo ocidental? Sob qual base política e social se desenvolveu o marxismo ocidental e o marxismo acadêmico de todo o mundo? Dentre tantas outras perguntas e problematizações. Aqui, não há espaço, e nem o capítulo oferece contribuições suficientes, para responder essas perguntas. Mas vale a pena analisar brevemente o posicionamento final do autor sobre as relações entre modernidade e marxismo do século XX.  Para o autor, na atual conjuntura histórica, de novas contradições, a dialética da modernidade marxista clássica deve ser repensada. Vemos assim uma continuidade na argumentação do autor em sua análise de conjuntura realizada no capítulo anterior (fim do bloco socialista e falência da política comunista do século XX, “sumiço” da classe operária, configuração social mais complexa de novas contradições etc.).  

Apesar do espectro de Marx estar possivelmente longe de desaparecer, “falta no contexto científico de classe”, ou seja, no paradigma “clássico” do marxismo e do socialismo (sua filosofia, ciência e política), elementos que contemplem as novas contradições que vão além do desenvolvimento da modernidade prevista por esse mesmo paradigma. Sendo assim, e o autor vê de maneira positiva, o marxismo/socialismo sai do século XX deixando de ser “ciência” para se tornar utopia (tese bem próxima da chamada hipótese comunista badiousiana).  

Vimos na parte I da resenha o abandono sutil da análise de classe e de sua centralidade para a teoria e para a política na atual conjuntura defendido pelo autor. Algumas críticas já foram esboçadas nas postagens anteriores, inclusive com o texto de Boito Jr. contra o economicismo. Mas vale a pena destacar ainda alguns pontos.  

O autor assume e reconhece a crise no movimento comunista mundial, que é acompanhado também por importantes mudanças econômicas, sócio-culturais e geopolíticas em âmbito mundial, o que já é um importante passo que o afasta do dogmatismo, doença que assola muitos marxistas. Mas como vimos também, há o abandono sistemático de vários aspectos fundamentais da teoria marxista e da política socialista. Com isso nos perguntamos: que significa atualizar o marxismo, questão essa que se arrasta desde os embates no seio da II internacional? O marxismo, que deve primar pela análise concreta da situação concreta, como dizia Lenin, pode ainda sobreviver a atual conjunta? Diferente das respostas dadas por Lenin e Rosa na II internacional, onde confirmavam a justeza das teses centrais do marxismo mesmo em tempos de mudanças aparentes no sistema, Goran, objetivamente diz não à segunda pergunta, em grande parte, pelo menos ao Marx(ismo) que conhecemos.  

O marxismo, mesmo enquanto teoria finita e de constante avanço, como as corrente anti-dogmática (que não são de forma alguma iguais às correntes revisionistas, oportunistas ou ecletistas) sempre frisaram, possui sua justeza historicamente situada: a existência de formações sociais capitalistas possuem uma "essência", e ela foi analisada pelo marxismo de maneira magistral. E essa essência só pode ser superada por outro modo de produção, por outros modelos de formações sociais radicalmente diferentes. É isso que Goran parece querer negar em nome de uma atualização que se mostra muito mais como um abandono do marxismo em última instância.

Nenhum comentário:

Postar um comentário