[Augusto
Machado]
Dando continuidade
à análise do livro de Goran Therborn nesta modesta resenha em três partes (cada
qual se encarregando de um capítulo do livro), postamos a parte II: O
marxismo do século XX e a dialética da modernidade.
O título
do capítulo já é bem esclarecedor: trata-se de um ensaio que visa traçar as
principais características e tendências do marxismo no Velho e no Novo Mundo,
enfocando suas relações com a modernidade. A maior parte, cumprindo o principal
objetivo do livro que é uma análise do marxismo contemporâneo do Norte,
volta-se ao marxismo no velho mundo.
Modernidade,
Velho mundo e marxismo
O
marxismo não é apenas um corpo teórico antigo. Como perspectiva cognitiva
distintiva a respeito do mundo moderno, é superado em importância social – em termos
de números de adeptos – apenas pelas grandes religiões. Como polo moderno de
identidade, é superado pelo nacionalismo. O marxismo ganhou essa importância
histórica muito especial porque dos anos 1880 até os anos 1970 foi a principal
cultura intelectual dos dois maiores movimentos sociais da dialética da
modernidade: o movimento trabalhista [proletário] e o movimento anticolonial.
Em nenhum desses casos, o marxismo deixou de ter concorrentes importantes ou
sua difusão foi universal, uniforme e vitoriosa, porém nenhum de seus
competidores tinha alcance e persistência comparáveis.
Trecho
do Capítulo
Goran
começa sua análise da relação entre modernidade e marxismo com um termo
emprestado do mundo parlamentar: “oposição leal a sua Majestade”. Ora, essa
parece ser um termo que esclarece bem o marxismo enquanto agente de uma
dialética da modernidade. Essa dialética tem como objetivo “pegar os dois
chifres da modernidade, o emancipador e o explorador”, o lado progressista e o
lado perverso, mas sem sair do solo da própria modernidade, como pretendem
outros críticos, vide os nietzschianos. “O marxismo defendeu a modernidade com
o objetivo de criar outra modernidade, muito mais desenvolvida”, resume bem o
autor.
As
diversas correntes do marxismo se diferenciavam nesse tocando ou por enfocar
nos aspectos positivos (exemplo II internacional, oportunista), ora por enfocar
seus aspectos meramente negativos do progresso capitalista (exemplo o
esquerdismo da III em alguns aspectos). Aqui também se pode encaixar vertentes
mais “positivas” ou pessimistas.
Marx e
Engels nasceram e foram formados num ambiente europeu propriamente moderno, no
pensamento e na vida social que se transformava rapidamente (consolidação do
capitalismo, revoluções burguesas e proletárias). Em grande parte foram
herdeiros, e de certa forma, “radicalizadores”, da tradição crítica, do
criticismo, que se tornou possível com a secularização da cultura, e teve
expoentes no pensamento alemão como Kant e o hegelianismo. Essa tradição que é oposta
ao feudalismo quase que por completo já tombado, identificava crítica, verdade
e ciência como um só fenômeno.
Para o
autor, é nítida um conceito e uma influência da modernidade em Marx: sua obra
prima teórica, uma crítica à economia política, traz em seu próprio nome a
herança radical da tradição crítica moderna de influência iluminista. Sem falar
nas obras juvenis de Marx e Engels, quando ainda estavam fortemente
influenciados pelo “paradigma” hegeliano de esquerda.
A
modernidade e marxismo foi tema central de uma corrente do marxismo
autointitulada como teoria crítica. Essa teoria formada na primeira metade do
século XX, normalmente é ligada ao nome “Escola de Frankfurt” e inclui autores
como Horkheimer, Adorno e Marcuse. A teoria crítica se opunha à teoria
tradicional, cuja primazia era a divisão do trabalho teórico em disciplinas
específicas e uma suposta neutralidade sócio-política do conhecimento, com um
projeto de crítica global da sociedade capitalista moderna de fortes
influências marxistas.
“A teoria
crítica acolhe, reflete e elabora filosoficamente a crítica da economia
política de Marx, situada no contexto dos eventos traumáticos de 1914 a 1989: o
massacre da Primeira Guerra Mundial, a revolução abortada no Ocidente e seu
nascimento deformada na Rússia, a Depressão e a vitória do fascismo […], o
surgimento das grandes organizações, a Segunda Guerra Mundial e a
unidimensionalidade da Guerra Fia. Com seu tom próprio e muito especial, a
teoria crítica expressa um veio de reflexividade radical no caminho da Europa
através da modernidade."
Apesar de
continuar com uma tentativa de dialética da modernidade, a maior parte dessa
corrente foi marcada pelo pessimismo (paradoxalmente, sua obra teve impacto
explosivo e politicamente ativo nas novas gerações europeias dos anos 60). Sua
tentativa dialética de "destruir para salvar" o Iluminismo caminhava,
contudo em Adorno, para um afastamento cada vez maior da realidade e
engajamento político.
Essa
tendência se modifica com a figura de Habermas, “herdeiro” autocrítico da
teoria crítica, que, sob uma forte influência weberiana, realizará uma
tentativa de atualização do marxismo clássico, seguindo a tendência dessa
corrente de retificação das teses marxistas tradicionais a partir de outros
aportes teórico-conceituais. De forças e relações produtivas, Habermas trará
para a teoria as noções de trabalho (esfera da ação racional com respeito a
fins, “razão instrumental”, hegemônico na modernidade, seja capitalista, seja
“socialista”) e ação comunicativa (referente ao “mundo da vida”, mediado
simbolicamente, portador de uma razão emancipadora, democrática). Esses
esforços darão luz a uma nova teoria do direito, influente em muitas áreas do
conhecimento hoje, com respectivos impactos políticos.
Habermas
se diferenciará também da teoria crítica tradicional ao primar pela estudo e
embate de correntes de pensamento contemporâneas ao estilo ensaístico quase
poético comum em grande parte ao seu mestre e professor Adorno. Vários autores,
incluindo Goran, em seu artigo da NLR citado no livro “Jürgen Habermas: A New
Eclecticism” defendem que Habermas tende a ter um viés conciliador (ou talvez
“dialético demais”...) em relação aos diversos ismos e correntes filosóficas e
científicas que aparecem no século XX. Essa tentativa de atualização, em um
momento histórico mais recente, mais uma vez, liga e diferencia Habermas de
seus antecessores.
A ambígua
relação do marxismo e posteriormente da teoria crítica com a modernidade possui
seus pontos fortes e fragilidades. Se no marxismo tradicional e seus correntes
mais próximos vemos um otimismo referente ao desenvolvimento europeu pela
modernidade, na teoria crítica a sombra pessimista que indica um futuro muitas
vezes sombrio, ou quando não aponta, abandona quase que por completo o
“paradigma” propriamente marxista. Para entender melhor a proliferação do
marxismo no Norte no século XX, cuja, sem dúvida alguma, a modernidade foi um
dos principais temas para pensar a sociedade, a política socialista, e o porvir
histórico e onde a teoria crítica foi apenas uma expressão (não a única, mas
nem por isso de extrema importância e influência), precisamos lançar mão, como
faz o autor, de um conceito cunhado por Ponty e depois desenvolvido por outros
historiadores como Perry Anderson: o marxismo ocidental. Compreender o chamado
marxismo ocidental é compreender um conjunto importante de linhas de pensamento
marxista de solo europeu que perdurou até meados dos anos 60 e se inicio com o
impacto da revolução de outubro.
Para o
autor, o marxismo ocidental é “mais uma tradição que um movimento”. Tem como
nomes centrais e iniciais Lukacs, Krosch e de certa forma Gramsci. Perry
Anderson, comentado pelo autor, afirma que o marxismo ocidental é marcado pela
derrota do movimento operário em diversos momentos e países, ou a deterioração
de sua vitória (daí se explicaria seu “pessimismo”), possui um forte viés
acadêmico (e não mais político, de cultura partidária) e tenta se exilar na
filosofia. Assim o marxismo ocidental é o oposto do marxismo de Oriente,
“institucionalizado” ou partidário, mais ortodoxo, sobretudo soviético
“stalinista”, ou até mesmo trotskista ou maoista.
Mas Goran
questiona um pouco essa visão tão dicotomizada entre Oriente e Ocidente. O
ocidente acadêmico crítico se formou a partir do impacto da revolução russa, e
em grande parte era seu simpatizante, apesar das críticas e divergências. Além
disso, figuras taxadas como marxistas ocidentais tiveram militância em papeis
centrais do movimento comunista (muitos dos filósofos faziam parte ou apoiam
partidos comunistas de seus países). O ranço pessimista, se daria como uma
espécie de escape heterodoxo à hegemonia da terceira internacional.
Logo após
a onda do marxismo ocidental, surge o que o autor chama de neomarxismo, cujas
características são um viés mais científico que filosófico, significando assim
um certo amadurecimento dos departamentos de humanidades no velho mundo, e tem
como evento político marcante o famoso 68 (Vietnã, movimento estudantil e de
direitos civis no primeiro mundo, a revolução cultural etc.). “Mas quando o
impulso político radical começou a perder força na segunda metade dos anos
1970, o marxismo político desapareceu rapidamente. O marxismo acadêmico também
recuou de forma significativa, em alguns casos, substituído por “ismos”
teoricamente mais novos e, em outros, submerso em práticas disciplinares
ecumênicas. Manteve-se melhor na sociologia e na historiografia.”
O
desenvolvimento do marxismo enquanto pensamento e enquanto política na Europa
(Velho mundo) é um assunto complexo, que apresenta diversas polêmicas em cada
momento e espaço histórico específico. A análise do autor que perpassa quase
todo o século XX pretende dar conta das principais influências, sobretudo
intelectuais, teóricas e acadêmicas do marxismo europeu no século XX, período
onde este apresentou seu apogeu de influência e produção teórica e cultural
seguido de sua caída e substituição por outras correntes de pensamento (o
pós-modernismo, o pós-estruturalismo, os estudos culturais e suas tendências
anti-modernas, como é sabido, vieram com força retirar o marxismo de seu
hegemonia do pensamento crítico a partir da década de 70).
E o
Novo Mundo (América, África, Ásia...)?
Resume o
autor:
“Em
países cuja modernização foi induzida de fora, era de se esperar que o marxismo
tivesse uma existência marginal [na cultura], fosse deixado de lado como facção
modernizante instalada no poder e se distanciasse amplamente das massas
empurradas para a modernidade pelos governantes. Por outro lado, a abertura
para a importação de ideias deveria levar a uma importação precoce do marxismo
e de outras ideias radicais pelas facções pró-modernidade que estivessem fora
do poder. A importância relativa dessas duas tendências deveria depender da
continuidade da modernização e da repressão. Quanto mais peso tivessem esses
dois fatores menos marxismo haveria.”
Como dito
a recepção do marxismo no Novo Mundo é diferenciada e menos impactante e
profunda, pelo menos inicialmente, pelo fato de a modernidade (capitalista),
realidade tratada pelo marxismo ser uma realidade “imposta” de fora, muitas
vezes de maneira traumática. A dinâmica então era outra . O marxismo
começa a ganhar corpo no novo mundo com a própria modernização do novo mundo, a
academia (norte americana, latino americana e alguns casos isolados asiáticos
não-socialistas) e os movimentos políticos e sociais (destaca-se fortemente os
movimentos anticoloniais e anti-imperialistas) foram as duas portas de entrada
principais e que posteriormente geraram alguma consolidação teórica, política e
cultural.
Apontamentos
finais
As
questões levantadas pelo autor nesse capítulo mais “histórico” podem se
desdobrar em diversos debates e polêmicas: o quão o marxismo é continuidade e o
quão é ruptura da modernidade? Como podemos identificar isso nas obras dos
clássicos do marxismo? O qual danoso ou acertado as “atualizações” realizadas
pela teoria crítica e o marxismo ocidental? Sob qual base política e social se
desenvolveu o marxismo ocidental e o marxismo acadêmico de todo o mundo? Dentre
tantas outras perguntas e problematizações. Aqui, não há espaço, e nem o
capítulo oferece contribuições suficientes, para responder essas perguntas. Mas
vale a pena analisar brevemente o posicionamento final do autor sobre as
relações entre modernidade e marxismo do século XX. Para o autor, na
atual conjuntura histórica, de novas contradições, a dialética da modernidade
marxista clássica deve ser repensada. Vemos assim uma continuidade na
argumentação do autor em sua análise de conjuntura realizada no capítulo
anterior (fim do bloco socialista e falência da política comunista do século
XX, “sumiço” da classe operária, configuração social mais complexa de novas
contradições etc.).
Apesar do
espectro de Marx estar possivelmente longe de desaparecer, “falta no contexto
científico de classe”, ou seja, no paradigma “clássico” do marxismo e do
socialismo (sua filosofia, ciência e política), elementos que contemplem as
novas contradições que vão além do desenvolvimento da modernidade prevista por
esse mesmo paradigma. Sendo assim, e o autor vê de maneira positiva, o
marxismo/socialismo sai do século XX deixando de ser “ciência” para se tornar
utopia (tese bem próxima da chamada hipótese comunista badiousiana).
Vimos na
parte I da resenha o abandono sutil da análise de classe e de sua centralidade
para a teoria e para a política na atual conjuntura defendido pelo autor.
Algumas críticas já foram esboçadas nas postagens anteriores, inclusive com o
texto de Boito Jr. contra o economicismo. Mas vale a pena destacar ainda alguns
pontos.
O autor
assume e reconhece a crise no movimento comunista mundial, que é acompanhado
também por importantes mudanças econômicas, sócio-culturais e geopolíticas em
âmbito mundial, o que já é um importante passo que o afasta do dogmatismo,
doença que assola muitos marxistas. Mas como vimos também, há o abandono
sistemático de vários aspectos fundamentais da teoria marxista e da política
socialista. Com isso nos perguntamos: que significa atualizar o marxismo,
questão essa que se arrasta desde os embates no seio da II internacional? O
marxismo, que deve primar pela análise concreta da situação concreta, como
dizia Lenin, pode ainda sobreviver a atual conjunta? Diferente das respostas
dadas por Lenin e Rosa na II internacional, onde confirmavam a justeza das
teses centrais do marxismo mesmo em tempos de mudanças aparentes no sistema,
Goran, objetivamente diz não à segunda pergunta, em grande parte, pelo menos ao
Marx(ismo) que conhecemos.
O
marxismo, mesmo enquanto teoria finita e de constante avanço, como as corrente
anti-dogmática (que não são de forma alguma iguais às correntes revisionistas,
oportunistas ou ecletistas) sempre frisaram, possui sua justeza historicamente
situada: a existência de formações sociais capitalistas possuem uma
"essência", e ela foi analisada pelo marxismo de maneira magistral. E
essa essência só pode ser superada por outro modo de produção, por outros
modelos de formações sociais radicalmente diferentes. É isso que Goran parece
querer negar em nome de uma atualização que se mostra muito mais como um
abandono do marxismo em última instância.
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