[Carlos Rios]
Referência: ALTHUSSER, Louis. A transformação da filosofia, seguido de Marx e Lenin perante Hegel.
Edições Mandacaru: São Paulo, 1989.
Fruto
de uma conferência de 1976, Althusser lança como temário a filosofia marxista
partindo da seguinte tese: “(...) a filosofia marxista existe e, contudo, nunca
foi produzida como ’filosofia’”. Filosofia “produzida enquanto filosofia” é um
termo enigmático que traduz a seguinte relação: ela produz a sua própria prova
de existência. Ou seja, articulada em um sistema teórico racional que implica
num objeto próprio. O próprio discurso filosófico sustenta a sua existência.
O
papel da filosofia “produzida enquanto filosofia” é de cunho ideológico e neste
papel residem basicamente aspectos marcantes.
a) A filosofia como “ciência do todo”: esta terminologia quer dizer
que ela resguardaria para si a histórica missão de dizer a “verdade” sobre as
práticas e ideias humanas;
b) Porém, a filosofia tem um “exterior”. A questão do “exterior” da filosofia
surge no texto como uma indagação sobre como se processa esta operação de
abarcar “o todo”. Resumindo, a filosofia opera esta “verdade” por meio de uma
“dupla deformação”: ela desmembra as práticas e ideias humanas e depois as
reorganiza de maneira que “caibam” na almejada “unidade” por ela edificada. Ou
seja, a filosofia impõe a sua “verdade” às demais áreas do conhecimento tal
como uma “superciência”.
Althusser
atenta para o fato de que a filosofia realiza uma inversão, visto que para ela
se diferenciar de outros gêneros discursivos elas se vale de discursos
científicos. Ao fazê-lo ela sofre com as condições de possibilidade
estabelecidas por tais ciências. Ou
seja, limitada por tais condições ele abarca “tudo” e impõe sua “verdade” não
deixando nada escapar, não tendo por isso “exterior”, nada escapa da “verdade”
filosófica.
Porém, como foi mencionado no tópico “b”, a
filosofia tem sim um “exterior”. Aquele que lançou esta elucidação foi Karl Marx
com suas considerações sobre as bases infraestruturais da determinação social (relações
sociais de produção, forças produtivas) e a correspondente superestrutura
(formas do direito, jurisprudência, Estado e ideologia) onde atua a ideologia. A obra central de tais contribuições é “O
Capital”. Se tal obra defende a tese da existência de um “exterior” para a
filosofia restam outras questões, estas seguirão a ordenação por tópicos:
c) Se a filosofia tem “exterior” em que sentido ela atua?
De modo sumário, a
imposição da sua “verdade” filosófica cumpre um papel ideológico e político
como visto acima. Ela fomenta uma unicidade entre as principais tendências
ideológicas de seu tempo para formular a ideologia da classe dominante que
possui papel essencial no que tange à hegemonia cultural. Althusser busca
demonstrar como o papel de instrumentos de dominação tem importância no jogo de
legitimidade, “consuetudinariedade” e consenso na dinâmica ao lado da repressão
buscando interlocução com outros autores, dentre eles Gramsci.
Assim, a ação de Marx na sua formulação ao lado da “I
tese sobre Feuerbach” denunciariam esta operação da filosofia produzida
“enquanto filosofia” revelando seu “exterior”: a prática social. “Esse exterior
(que a filosofia quer fruir a ilusão de o submeter a verdade) é a prática, são
as práticas sociais.” (pg.25) Ou seja apoderar, justificar e velar por
determinadas práticas sociais é o papel da filosofia mostrando sua função no
campo da luta de classes, ainda que esta operação de poder não seja meramente
consciente e voluntária no fazer social humano. Ao mesmo tempo “(...) que o
‘poder’ não significa nunca um ‘poder pelo poder’, nem sequer no âmbito
político”.
d) Se o Marxismo não é filosofia elaborada “enquanto filosofia”, então do
que se trata?
Althusser
ressalta que nesta luta ideológica existiram ideologias dominadas que se
formularam “‘enquanto filosofia” para combater certas ideologias dominantes. No
entanto, o autor destaca que este não é o papel do marxismo visto que a
dinâmica deste pensamento é crítica e revolucionária. Desta forma, por meio da
analogia do processo de extinção do estado alicerçado nos conselhos, nos
sovietes, nas comunas, em um “não estado”, embriões da prática social sem
repressão, a filosofia marxista, tal como na tarefa organizativa do
proletariado, deveria fomentar uma “nova prática filosófica“ crítica e
revolucionária capaz de armá-lo. Como afirma o autor: “(...) também Marx legou
aos filósofos marxistas a tarefa de inventar novas formas de intervenção
filosófica que acelerem o fim da hegemonia ideológica burguesa. Em suma: a
tarefa de inventar uma nova prática filosófica” (pg. 58)
Teria sido por isso, segundo Althusser, que Marx formado
como filósofo teria recusado-se a elaborar uma filosofia “tal como filosofia”.
Este é o motivo do texto realizar crítica sobre a busca por ontologias,
terminologia que compreendida aqui de forma didática e provisória como
categorias a-históricas, para o marxismo. É fundamentado nesta crítica que o
autor divide duas alas de concepção filosófica do marxismo: a primeira aquela
da formulação do marxismo “enquanto filosofia” na luta ideológica, da qual
pertencem Plekhanov, Bodagov e Stalin; a segunda aquela da filosofia enquanto
“nova prática filosófica”, da qual se destacam Marx, Lenin e Gramsci.
e) Apontamentos gerais para uma reflexão.
Poderíamos
agora nos questionar até que ponto a crítica de Althusser é em certo aspecto
ingênua? Em certo aspecto sua analogia entre o papel organizativo do
proletariado e o papel da filosofia reflete mero anseio ou meramente uma panaceia
democratista? Este tipo de posição ou formulação não deve ser compreendido à
toa, o debate do autor se reporta ao período da Guerra Fria de ofensiva
ideológica à URSS. Por isso as afirmações sobre a “nova prática filosófica”
devem ser encaradas também criticamente.
A
analogia entre formas organizativas e do proceder filosófico podem redundar em
mero formalismo democratista e metafísico. Não devemos nos esquecer que a luta
pelos sovietes e pela comuna são parte de uma tática para a estratégia
comunista, uma verdade. Porém também é verdade que essa formulação não será
sempre válida para todos os percalços do proletariado. Se observarmos o século
XX percebemos que diversas táticas adotadas na luta de classes complicariam a
analogia política de Althusser: lutas de liberação nacional, alianças com a
burguesia anti-imperialista, construção de um bloco socialista, etc. A dimensão
da complexidade e do que não é totalmente previsível na transição socialista
colocariam em risco as pretensões de uma ou outra forma ideal pela qual a
estratégia socialista seria alcançada.
É claro que o texto de Althusser tem enorme mérito e nos
traz esta importante reflexão. Como podemos pensar a filosofia marxista diante da
luta de classes? Pode ela ser formulada “enquanto filosofia”? A diferença
estabelecida pelo autor nos dois ramos citados “d” seria fruto de um desvio da
nova “prática filosófica”? Ou seriam caminhos diferenciados tomados por
lideranças que não mais se viam diante de tarefas destrutivas (Marx, Lenin, por
exemplo) e sim de tarefas construtivas da transição socialista (sobretudo
Stalin)?
Althusser não poderia esquecer a dimensão política da
filosofia por ele mesmo destacada e o papel não meramente eventual exercido por
esta nos estados da transição socialista. Por fim, a reflexão ainda está em
aberto para as questões vindouras na luta de classes que hoje, sobretudo, se
encontra desfavorável para o proletariado em saldo geral. E fica o apontamento
final de que, se quisermos nos valer das analogias bíblicas muito usadas por
Stalin, não há caminho perfeito ou único “para a terra prometida” nem na luta
de classes e, por isso mesmo, nem na filosofia.
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