quarta-feira, 12 de setembro de 2012

"Fora o poder, tudo é ilusão"



Por que tomar o poder? O poder, que é necessariamente poder de Estado (controle de classe sobre os aparelhos e instituições da sociedade), já existe. Parte-se, portanto, nas sociedades de classe, sempre de uma posição de dominação. 

Para os de baixo, toma-se poder como forma de sobrevivência, como forma para derrubar o inimigo e para controlar as instâncias da vida social e individual (produção, circulçação, consumo, serviços). A tomada do poder pelas classes populares inaugura uma nova experiência de poder, o poder popular (comunas, soviets etc.), o poder/Estado de novo tipo, o poder/Estado das amplas massas, a real democracia (de novo tipo). Esse poder/Estado que já não é mais o mesmo, é uma contradição em si mesmo, é o passo necessário para uma nova era na qual é a vontade da coletividade entre iguais que impera, ou seja o comunismo.

O ponto de partida nunca é puro. A realidade é um acúmulo e sobreposição de realidades, de contradições, de sobrevivências históricas. Não existe técnica de assepsia na história. Parte-se, portante, do que está dado.

O desafio histórico é encontrar agarrar as sinuosas possibilidades que passam por nós. Dedicação e intransigência devem andar junto com abertura e unidade.

Lenin foi um homem que compreendeu muito bem a questão do poder. Juntamente com a experiência revolucionária das massas oprimidas da Rússia, ele nos apresentou lições essenciais. Reproduzimos um trecho do livro de Zizek "Às portas da revolução", publicado no Brasil pela Boitempo (2005):

Quando, em suas “Teses de abril” (1917), Lenin identificou a Augenblick – a oportunidade única para uma revolução –, suas propostas foram inicialmente recebidas com estupor ou desdém pela grande maioria de seus colegas de partido. Nenhum líder proeminente dentro do Partido Bolchevique apoiou seu chamado à revolução, e o Pravda deu o extraordinário passo de dissociar o partido, assim como seu conselho editorial como um todo, das “Teses de abril”. Lenin estava longe de ser um oportunista que procurava lisonjear e explorar a atmosfera prevalecente entre o populacho; seus pontos de vista eram altamente idiossincraticos. Bogdanov caracterizou as “Teses de abril” como “o delírio de um louco”, e a própria Nadejda Krupskaia concluiu: “Temo que Lenin tenha enlouquecido”.
Esse é o Lenin de quem ainda temos o que aprender. A grandeza de Lenin residiu em, nessa situação catastrófica, não ter medo de triunfar – em contraste com o páthos negativo discernível em Rosa Luxemburgo e Adorno, para quem o ato autêntico em última instância era a admissão do fracasso que traz à luz a verdade da situação.
Em fevereiro de 1917, Lenin era um emigrante político quase anônimo, perdido em Zurique, sem contatos confiáveis na Rússia, informando-se sobre os eventos basicamente pela imprensa suíça; em outubro de 1917, ele liderava a primeira revolução socialista bem-sucedida no mundo. O que aconteceu entre esses dois momentos? Em fevereiro, Lenin percebeu imediatamente a possibilidade revolucionária, o resultado de singulares circunstâncias contingentes – se o momento não fosse aproveitado, a possibilidade da revolução seria postergada, talvez por décadas. Em sua insistência obstinada de que se deveria correr o risco e prosseguir para o próximo estágio – ou seja, repetir a revolução –, ele estava só, ridicularizado pela maioria dos membros do comitê central de seu próprio partido; [...] o que a intervenção pessoal de Lenin tenha sido indispensável, contudo, não devemos transformar a história da Revolução de Outubro na história de um gênio solitário, confrontado com as massas desorientadas e gradualmente impondo suas ideias. Lenin triunfou porque seu apelo, ao mesmo tempo que passava por cima da nomenklatura do partido, encontrou eco naquilo que se poderia chamar de micropolítica revolucionaria: a incrível explosão da democracia popular, de comitês locais surgindo em torno de todas as grandes cidades da Rússia e, ignorando a autoridade do governo “legitimo”, tomando a situação em suas próprias mãos. Essa é a história não contada da Revolução de Outubro, o oposto do mito de um pequeno grupo de revolucionários implacavelmente dedicados que deram um golpe de Estado.
Em seus escritos de 1917, Lenin reserva sua ironia mais cruel para aqueles que se empenham na interminável busca de algum tipo de “garantia” para a revolução; essa garantia assume duas formas principais: tanto a noção reificada da Necessidade social (não se deve arriscar a revolução tão cedo; deve-se esperar pelo momento certo, quando a situação estiver “madura” de acordo com as leis do desenvolvimento historico: “E cedo demais para a revolução socialista, a classe operária ainda não está madura”) ou a legitimidade (“A maioria da população não está do nosso lado, então a revolução não seria realmente democrática”) normativa (“democrática”). Como Lenin repetidamente afirma, isso seria como se, antes que o agente revolucionário arriscasse a tomada do poder de Estado, tivesse de pedir permissão para alguma figura do grande Outro (organize um referendo que irá garantir que a maioria apóia a revolução). Para Lenin, assim como para Lacan, a questão é que a revolução nes’autorise que d’elle-même [se autoriza por si só]: deveríamos arriscar o ato revolucionário sem o aval do grande Outro – o medo de tomar o poder “prematuramente”, a busca da garantia, e o medo do abismo de agir. Essa é a máxima dimensão do que Lenin incessantemente denuncia como “oportunismo”, e sua premissa e que “oportunismo” é uma posição que, em si mesma, é inerentemente falsa, mascarando o medo de realizar o ato com uma tela protetora de fatos, leis ou normas “objetivos”.
A resposta de Lenin não é uma referência a um conjunto distinto de “fatos objetivos”, mas a repetição de um argumento levantado uma década antes por Rosa Luxemburgo contra Kautsky: aqueles que esperam pelas condições objetivas da revolução irão esperar para sempre – tal posição de observador objetivo (e não de agente engajado) é em si mesma o maior obstáculo para a revolução. O argumento de Lenin contra os críticos democráticos formais do segundo passo é que essa opção “democratica pura” é utópica: nas circunstâncias concretas russas, o Estado democrático-burguês não tem possibilidade de sobrevivência – a única forma “realista” de proteger os verdadeiros ganhos da Revolução de Fevereiro (liberdade de organização e da imprensa, etc.) é seguir adiante e passar para a revolução socialista, do contrário os reacionários tsaristas vencerão.
Aqui temos dois modelos, duas lógicas incompatíveis, de revolução: aqueles que esperam pelo momento teleológico maduro da crise final, quando a revolução irá explodir “em seu tempo certo” de acordo com a necessidade da evolução histórica; e aqueles que estão cientes de que a revolução não tem “tempo certo”, aqueles que percebem a possibilidade revolucionária como algo que emerge e deve ser apreendido nos próprios desvios do desenvolvimento historico “normal”. Lenin não é um “subjetivista” voluntarista – sua insistência é sobre o fato de que a exceção (o extraordinário conjunto de circunstâncias, como aquelas na Russia em 1917) oferece uma maneira de abalar a própria norma.


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