quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Uma interpretação do Manifesto Comunista

[Augusto Machado]
Manifesto: capa original

O Manifesto foi escrito por Marx e Engels em 1848, ano marcado por uma efervescência na luta de classes na Europa devido à obsolescência do regime política e às agudas crises econômicas, que culminou em processos revolucionários em vários países. O capitalismo e sua classe dominante, a burguesia, davam passos decisivos para sua estruturação e consolidação. Os dois escritores, que há alguns anos tinham começado a se engajar na luta política socialista, já haviam produzidos conjuntamente algumas obras críticas-teóricas contra o hegelianismo de esquerda, como ‘A Sagrada Família, ou a crítica da crítica crítica’ e o início do que seria ‘A ideologia alemã’, obra abandonada depois de concluída e não publicada pelos autores. Seria dessa parceria que surgiriam as bases do comunismo científico, o marxismo, e sendo o Manifesto um dos pilares atéhoje insuperáveis dessa teoria. 
A obra significou, além da aliança mais firme entre os dois pensadores, a síntese (e superação) de uma fase em que os autores (sobretudo Marx) ainda permaneciam no campo no hegelianismo de esquerda e da filosofia (ou antropologia filosófica), jogando-os num campo epistemológico mais histórico e científico a caminho da crítica da economia política, com um viés fortemente revolucionário. Essa mudança qualitativa foi nomeada por Althusser de ruptura epistemológica, onde o jovem Marx deixa de lado o vocabulário hegeliano, presente principalmente nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, e começa a formular com Engels suas próprias categorias (que dariam origem ao Materialismo histórico e dialética) e a se engajar mais fortemente na luta política socialista.
Durante os anos que se decorreram desde sua publicação, muitas foram as interpretações e aplicações da obra. Apesar de sua curta extensão, o Manifesto é de uma extrema densidade e cada tese lançada nele acarreta conseqüências teóricas e políticas profundas. Para uma avaliação mais segura de sua atualidade e aplicabilidade é necessário primeiramente avaliar a questão da historicidade e da universalidade do Manifesto. Ora, ao fazer isso, também se estará analisando as próprias bases do marxismo, que o tem como uma de suas obras mais significativas.

Historicidade e universalidade: limitações e atualidade do Manifesto
Discutir sobre a historicidade das obras marxistas é ao mesmo tempo entender como se dá o próprio método dialético aplicado no marxismo. E talvez, seja a falta compreensão desse próprio método que leve os cientistas e apologistas burgueses a fazerem interpretações mecânicas, simplistas e por vezes apocalípticas.
É próprio do método dialético trabalhar sob a tensão entre o particular e o universal, entre o relativo e o absoluto, já que a dialética nada mais é do que o estudo do fenômeno que carrega em si seu próprio oposto, daí a primazia da unidade entre os opostos e seu desenvolvimento. Essa maneira superior de se trabalhar a realidade e o conhecimento nunca é utilizada pelas classes conservadoras e reacionárias e seus intelectuais pois, estes, num determinado período histórico, quando deixam de ser progressistas, passam a ser apologistas do status quo e não mais lhes interessam demonstrar as contradições e o desenvolver dos objetos de estudo (no caso a sociedade).
Já nesse ponto, onde identificamos o método dialético como revolucionário e específico da classe revolucionária e progressista de uma época, demonstramos sua historicidade (conhecimento relativo a uma certa classe, num certo período histórico) ao mesmo tempo que provamos sua validez e objetividade. Mesmo sendo histórica e socialmente delimitado, esse conhecimento também carrega um germe de universalidade, simbolizando a maior objetividade possível naquele momento histórico. Sendo assim, também as outras obras burguesas, por exemplo, também possuem uma validez científica, dependendo do período histórico em que elas foram escritas. Vale lembrar que toda a economia política marxista foi construída sobre o pensamento de Smith e Ricardo, assim como a filosofia marxista se utilizou do pensamento de Hegel. Todo o obreirismo então deve ser entendido enquanto errôneo e prejudicial para a classe trabalhadora, já que reduz o campo de conhecimento e impossibilita esta de se utilizar dos progressos e contribuições das outras classes no passado.
Nesse sentido, ao analisar uma obra marxista, como o Manifesto, deve-se compreender dialeticamente suas limitações e sua universalidade, que significa a validez atemporal daquela obra se as bases sociais que esta analisa ainda não foram superadas (ou seja, se permanece ao mesmo período, no caso no sistema capitalista, na sociedade de classes). Por isso mesmo o método dialético marxista escapa tanto do relativismo quanto do positivismo, alcançando a objetividade necessária sem excluir a subjetividade histórica: consegue analisar em seu objetivo sua própria relatividade que também é comum a outros relativos, sendo de certa maneira e em alguns pontos, absoluta.

Limitações do Manifesto: sua historicidade
O Manifesto foi escrito a partir de um estudo histórico específico: do desenvolvimento da luta de classes e do capitalismo na Europa. Publicado em meados do séc. XIX, a obra trazia uma configuração de como o capitalismo se deu lá. Podemos perceber assim duas limitações: temporal e espacial.
A espacial diz respeito à especificidade da Europa, dos países desenvolvidos e colonizadores. O modo como o capitalismo de desenvolveu no velho continente não será o mesmo do resto do mundo, principalmente nos países colonizados. O risco de ampliar um modo de desenvolvimento para todos os continentes é extremamente nefasto e ahistórico e pode implicar diversos erros políticos, como, por exemplo, a importação mecânica da categoria européia de feudalismo para o Brasil. Apesar de sua característica global, tendo em vista o impulso expansionista do capital, o sistema capitalista se desenvolverá de maneira diversa pelo mundo, e não podia ser diferente, frente à necessidade de acumulação e suas limitações.
No Manifesto encontramos explicitamente o movimento expansionista do capital pelo globo, de como este destrói todas as formas anteriores de produção e reprodução social, porém não de maneira tão aprofundada: o foco é a Europa, sobretudo os países mais avançados desta, de onde viria a revolução, já que a classe operária lá já estaria consolidada, assim como o desenvolvimento do capitalismo. Nesse ponto encontramos um ponto polêmico do marxismo, principalmente no séc. XX: a dialética centro-periferia, e de onde a revolução deve se iniciar.
Temporalmente a obra tem suas limitações que podem ser resumidas na não captação do que se tornaria o imperialismo. Este fenômeno e suas conseqüências só seriam analisados cientificamente pela segunda geração marxista, da 2ª Internacional. Apesar de conter trechos que parecem “prever” que seria imperialismo e o que a burguesia chama hoje de globalização, o Manifesto não consegue apontar os entraves que este fenômeno causaria nos países periféricos (uma industrialização tardia, burguesia reacionária etc.) assim como nos países do centro (principalmente a cooptação dos operários, a formação de uma aristocracia operária e de um sindicalismo de barganha e reformista).
Sendo limitados por um período histórico, os autores lançam uma avaliação de conjuntura e um programa político segundo a constituição de classes daquela época nos países europeus, caracterizado pelo capitalismo industrial, o Estado moderno, o operário fabril e a recente urbanização. A tese de fundo é que esse cenário, cedo ou tarde, se repetiria em todo o globo e se aprofundaria: a proletarização seria cada vez mais eficaz e profunda, não restando à massa despossuída e miserável outra coisa a não ser a realização imediata da revolução.
Talvez essa tese, em muitos períodos históricos não se concretizou (os reformistas e revisionistas apontam principalmente o surgimento da ‘classe média’ e um crescente poder de consumo como fatores que a invalidam, assim como da diminuição do nível cínico de exploração através dos direitos trabalhistas, direitos humanos, novas formas de gerência etc.), mas é preciso ressaltar o caráter da totalidade dessa análise, não a entendendo no sentido literal, mas sim como regra geral, abstração de um movimento histórico, tendência que não se realiza de imediato pois depende das diversidade de contradições e da ação histórica (luta de classes).
Assim, vemos que apesar das limitações, os movimentos gerais do capital que são analisados no Manifesto permanecem atuais mesmo na periferia do capital, ou seja, há uma esfera universal geográfica e temporalmente.

Atualidade do Manifesto: sua universalidade
 O Manifesto lança, juntamente com a Ideologia Alemã, as bases teóricas do que se tornaria o Materialismo histórico: neles encontramos as categorias conceituais utilizadas pelo marxismo. Esse método e ciência histórico comprovaria sua validez séculos depois por ser uma forma científica de lidar com todo nosso período histórico que Marx chamava de pré-história: a sociedade de classes. As teses centrais do Manifesto, como a inevitabilidade da luta de classes, fazem-se universais e atuais, já que ainda não superamos as bases materiais das sociedades de classes (propriedade privada, divisão social do trabalho). Então, independente do quão distante estivermos o “capitalismo industrial inglês” de Marx e Engels, a leitura do Manifesto ainda se faz válida e esclarecedora de muitos pontos.
Outro ponto importante e universal é a descrição e avaliação do ímpeto do capital e suas limitações estruturais, tão visíveis em tempos de crises. Sendo o capital um modelo estrutural de reprodução social, não importa se estamos analisando sua atuação na África ou na Oceania, da burguesia dos EUA ou da França, este de comportará da mesma forma: buscando sua sobrevivência através da exploração do trabalho, o roubo de seu excedente, a acumulação e expansão. O capital é a força social incontrolável que a tudo submete seu imperativo e para sobreviver.

Algumas conseqüências do Manifesto dentro do marxismo:
Como foi dito, as análises realizadas no Manifesto são muitas delas polêmicas e marcaram profundamente a política comunista do séc. XX, abaixo segue algumas teses e suas conseqüências políticas.
-A inevitabilidade do sumiço da média propriedade, ou seja, a inevitável polarização da sociedade entre proletários e burgueses. De certa forma a tese se confirmou pela expansão do capital nos setores que antes não se relacionavam com este, mas ao mesmo tempo não previa as consequências do imperialismo (industrialização tardia, permanência de relações pré-capitalistas e suas classes).
-Internacionalismo: noção do internacionalismo da classe e fim do fetichismo da noção de nação burguesa. Uma arma contra os chauvinistas e desenvolvimentistas, mas ainda não capta a dialética sobre nacional x internacional da era imperialista.
-O proletariado como uma não-classe, que, ao subir ao poder, tornar-se dominante, anulará a estruturá de classes (Estado não-estado, ditadura que é democracia para a maioria)
-"O governo moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa. O proletariado não pode conquistar o poder por meio das leis promulgadas pela burguesia.”

Conclusão
Lidando com fenômenos históricos, deve-se descobrir as lei gerais que regem tal período, mas sem esquecer que essas leis gerais não terão muitas vezes suas conseqüências diretas, empiricamente verificáveis, pois, estando no terreno da história, da luta de classes e de sobredeterminações, que pode acelerar, retardar ou superar certas tendências descobertas a partir da abstração teórica. Ao mesmo tempo não se pode cair num relativismo irregular e irracional que vê a história sempre como um terreno novo e totalmente aberto à atuação e criação humana: estamos limitados materialmente e dessa limitação que gera liberdade que nasce a concepção materialista e dialética da história. “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.Se para alguns parece um paradoxo essa “liberdade determinada”, citemos Marx: “Parece também paradoxal que a Terra gire ao redor do Sol e que a águas seja formada por dois gases altamente inflamáveis. As verdades científicas serão sempre paradoxais, se julgadas pela experiência de todos os dias, a qual somente capta a aparência enganadora das coisas.”

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