[Konstantinov]*
*Colaborador da revista “Brado!”, historiador.
Ilustração 1: Ezio Flavio Bazzo |
Ao observar a figura do flâneur se abre a uma colocação teórica que apreende e interpela a cidade. Quem ou que é flâneur? Flâneur é um conceito vazio. A existência em si deste aventureiro que se joga ao percalço de Paris não é o aporte nuclear para entender a questão iniciadora e labiríntica: “É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?”1. A interseção entre a sincronia e diacronia temporal é esta mesma da “flanagem”, movimento que evidencia a fragilidade e fragmentação do espaço urbano. A urbe assim não é em si mesma, não é ontológica, mas pode ser analisada à luz de diversas temporalidades nela incrustadas pelo descolamento que o corte longitudinal torna possível. É neste marco, neste par-ordenado no eixo cartesiano situado nas coordenadas (0,0), onde está o flâneur: referencial vazio que auxilia a articulação da “flanagem”.
Tal articulação teórica ainda não explica ou dá resposta à questão iniciadora. Porém, ela virá aqui a seu tempo tendo claro que este artigo possibilita um encontro com a figura literária de Ezio Flavio Bazzo, literato marginal de Brasília. Se deixa claro aqui a “figura literária” visto que há dois Ezios. Este já mencionado, o da fabulação literária, o flâneur propriamente dito, e o escritor marginal que detêm a narrativa das obras diversas por ele publicadas.
Valeria observar levemente a “flanagem” realizada por Bazzo que esteve a realizar uma rapsódia Samuel Rawet2, ou vadiando na China3, ou perambulando nos subterrâneos do Conic4 “nauseabundo” como ele mesmo dizia, ou perscrutando os mortos em Paris como se obssesivamente os perseguisse em seu “roteiro turístico de cemitérios”5. Bazzo aqui é o flâneur por excelência digerindo por entre uma blasfêmia e outra uma colocação bem memorada e outra o rancor e as neuroses típicas do pequeno-burguês citatino contemporâneo. A cenografia ganha assim um ar marginal dentro das reflexões constantes da urbe. A questão do trabalho perpassa por um dos seus relatos:
“É imensamente revoltante passar pelos fundos das construções, ali na Asa Norte, lá pelas três horas da tarde, na hora em que o sol derrete o cérebro, e ver a dedicação e o martírio desses homens que dão suas vidas em troca de uns grãos de arroz e da promessa falsa de que o trabalho dignifica e empurra para a cidadania. (...)
(...) As calças suadas no traseiro, 120.00 reais, olheiras de abatimento, uma falsa seneridade na fala enquanto lá na calçada, um carro forte espera, para transportar ao banco os lucros do dia... Nos Ministérios, o tédio e a solidão tornam a jornada de oito horas ainda mais vil. O relógio, o calendário, a folha de ponto, a cumplicidade com governos que, de tão tenebrosos, nem sequer permanecem na história, tudo isso se chama trabalho. (...)
E é impressionante observar que praticamente todas as sociedades, tanto as primitivas como as ditas modernas, padecem deste mal! Do mal de trabalhar e de fazer-trabalhar! (...) Para isto, lógico, existem os sociólogos, os psicólogos, os administradores, os psiquiatras e os vigias que o condicionamento e a ordem, para que o teatro produtivo não se degenere em “vagabundagem”. No lugar da paixão, a produção!”6
De modo a cotejar com as devidas proporções todo este desprezo ora aristocrático, ora pequeno-burguês ao mundo do trabalho pode-se muito bem se encaixar na mesma dialética que Rouanet aponta sobre o fetichismo da mercadoria. Bazzo, assim como o flâneur, se depara com uma realidade objetiva indesejável onde o fetichismo da mercadoria ganha um tom aviltante e onde o esteticismo burguês de Ezio sublima a imagem do “operário-escravo”, do servo da honra pelo trabalho e pelo sacrifício, como uma antítese se si mesmo: o passante hedonista que a tudo denuncia e aponta, uma metralhadora verborrágica giratória por assim dizer. Este movimento dialético existe no sentido de a reafirmar a si mesmo, afirmar um eu. Este eu é o bazzo-flâuneur, investido de sonhos de grandeza e megalomania que podem ser compreendidos à luz do sonho da cidade que o habita. Visto por este prisma a pergunta iniciadora pode ser refeita: “ É a cidade que habita Bazzo ou é ele que mora nela?”.
Para Rounet a resposta seria no sentido, como foi exposto acima, de verificar que esta esteticização de Ezio sobre a paisagem do Conic, dos trabalhadores e da cidade ao seu redor são parte dos sonhos que habitam a consciência do bazzo-flâneur que estabelecem um relação expressiva com o corpo real da cidade. O sono repleto de sonhos de Bazzo caminhariam na utopia de suas realizações e nos os mitos da temporalidade do eternamente idêntico, das “fantasmagorias”.
A figura do bazzo-flâneur seria o agente privilegiado da enunciação e que realiza as fantasias aprisionadas na sua temporalidade real. A lascívia sexual irrealizada na uma vida de acadêmico frustado e esquecido despontam no sono povoado de sonhos:
Ilustração 2: Capa de "Lenin nos subterrâneos do Conic." |
“(...) A conheci no caixa eletrônico do Conjunto Nacional. Por acaso, sem nenhuma intenção. Estávamos na fila, nos olhamos, trememos dos pés à cabeça. Incrível. Ela bem mais jovem do que eu, uns vinte e cinco, no máximo. Aquele tipo de menina que você sabe de antemão o que leva por debaixo das roupas. Ali mesmo beijei-lhe as costas nuas. (...)
(...) Ela mordia minhas mãos minhas mãos e depois as levava para o meio de suas pernas. Abria com meus dedos a porta de seu tesouro para que eu sorvesse suas riquezas ... Dizia frases perdidas, apaixonadas e desconexas... Ah, e foi naquele momento que descobri que as mãos não foram, em hipótese nenhuma, feitas para o trabalho...”7
Logo reaparece o desprezo pelo mundo vil do trabalho presente na realidade objetiva onde as mãos cumpririam outro papel que não expresso no sono do bazzo-flâneur, o da produção material.O mundo material finca seus pés no Ezio real que projeta suas falastranices, seus ataques verbais e seu apetite sexual na utopia de seus sonhos.
A pergunta que não cala: seria inteligível este sonho? Tais indícios seriam passíveis de compreensão? Segundo o debate travado por Rouanet8 os sonhos são passíveis de interpretação e é exatamente onde o materialista histórico centra seu objetivo: o despertar do sono. Por entre os desejos utópicos de prazer do bazzo-flâneur o mito sempre deforma, falsifica e dissimula a realidade malquista. A seqüência das obras refletem um eterno escapismo das horas numa brutal fuga da realidade objetiva e a conseqüência permanência do mesmo:
“- Ei, ei Bazzo você que contesta toda essa merda burguesa-intelectualóide, mas que ao mesmo tempo vive uma vida idêntica a de todos esses idiotas, no coração da
pocilga, me diga: você te esperança em algo e como proceder diante de toda essa palhaçada?(...)
-Você está certo de estar falando com um idiota, pedante e presunçoso, não é? Ou com um “orientador de noivos”?... Mas não seja cretino, essa é uma pergunta que só se faz a um guru iluminado ...(...)
- Guru, nada, não queira tirar o cu da reta . (...)
-Esse puto tem razão. Já que você insiste, -digo-lhe visivelmente chateado -vou recitar umas palavras do guru das limousines, preste atenção:
A esperança é fútil. Além disso , uma coisa é tão má quanto a outra . O importante é que você saiba de tudo e saia fora. Escorregue para fora sem fazer ruído. È isso que se chama rebelião.”9
O chamado à resposta encarnado na figura de um personagem decadente e solitário é um empurrão, um suspiro que desperta do sono que Ezio sufoca e faz calar. A metralhadora verborrágica é então engasgada em seu municiamento? Ao ser contestado em sua crítica logo se coloca na defensiva: é um questão de gurus, saia fora eis a rebelião, a esperança é uma futilidade. A utopia se esbarra com o mito da deformação estética que é construída na cenografia da urbe e sonho parece não querer despertar.
A conclusão que pode se aferir da reflexão estabelecida por meio deste artigo poderia enveredar por dois caminhos possíveis. Em sua primeira acepção a flânerie não consegue despertar do sono e fica retida numa eterna sublimação pequeno-burguesa que esteticiza a miséria e o proletário ao mesmo tempo que deforma sua utopia. Assim este flâneur brasiliense, estando na China ou nos cemitérios de Paris, não desperta nem individual ou coletivamente estando condenado ao eterno aprisionamento do mesmo, do repetível, do aparato da técnica que curiosamente ele condena tão duramente em seu lugar mítico de enunciação. Na segunda acepção tal como definiria Brissac10 nem a cidade, sem história, habita Ezio e nem Ezio, que não sabe mais ver, habita a cidade. Pois a “tendência no mundo moderno, da reprodução técnica, da cópia, é se apropriar das coisas.”11. Assim a construção da distância e estranhamento do familiar é falsa, os toscos engenhos paisagísticos não passariam de meros mecanismos de ilusão. É muito provável que a segunda concepção seja a mais correta e que flânerie de Bazzo não seja nada além da construção destes aparatos ilusórios que fabricam uma dimensão de distância que se quer existe mais. É o aprisionamento do sono, é mais do mesmo com novas ilusões, é literatura pseudo-marginal pequeno- burguesa escapista que, independente das concepções acima expostas, consegue falhar nas duas. É Ezio Flavio Bazzo em sua passagem infinita de um sono que, entre o sonho e a realidade objetiva, não consegue despertar.
1BRISSAC P. E ROUANET, P. S. “É a cidade que habita os homens ou eles são habitados por ela?” . In: Revista USP. Dossiê Walter Benjamin, set./out./nov. 1992. n. 15, São Paulo: EDUSP, 1992, p. 49-75.
2BAZZO, EZIO FLAVIO. Rapsódia a Samuel Rawet. Brasília: Anti-editor publicadora,1997.
3BAZZO, EZIO FLAVIO. Vagabundo na china. Brasilia: Lilith, 1991.
4BAZZO, EZIO FLAVIO. Lenin nos subterraneos do conic. Brasilia: Anti-Editor, 1999.
5BAZZO, EZIO FLAVIO. Necrocídio. Brasília: Da casa da Anta Editora, 1992. pg. 13.
6 BAZZO, Obr. Cit. pp. 46,47.
7BAZZO, Obr. Cit. pp. 84,85.
8BRISSAC P. E ROUANET, P. S. Obr. Cit. pp. 71.
9BAZZO, Obr. Cit. pp. 74.
10BRISSAC P. E ROUANET, P. S.. 72.
11BRISSAC P. E ROUANET, P. S. pp. 73