domingo, 7 de julho de 2013

Muitos dias em poucos: uma esquizofrenia anunciada?







O complexo mês de junho último balançou a luta de classes no Brasil. Em dias, é preciso bater nessa tecla, de jogos de futebol da seleção brasileira em casa, o povo, de maneira história (primeiro aos milhares, depois às centenas de milhares, enfim na casa do milhão), foi às ruas de maneira tão retumbante que nem mesmo a repressão, os engôdos do Estado e seus "intelectuais" de gabinete e a manipulação midiática o pode conter: em poucos dias, todas essas facetas da classe dominante se viu recuada, e em alguns casos, completamente na defensiva. Afinal, onde já se viu a PM brasileira distribuir flores e fotos antes dos atos, ou a mídia monopolista não levantar o direito de ir e vir do cidadão de bem a cada segundo de rua fechada?

No entanto, as muitas "variáveis" que estiveram envolvidas nos protestos de massa exigem uma séria análise por parte dos setores progressistas em nosso país. Até esses recuos do inimigo, não são vitórias absolutas, mas formas de luta/resistência em outro nível de correlação de forças. Sem a compreensão mais ampla da luta, e dos elementos "positivos" e "negativos" que se apresentaram nesse período, ou se cairá num otimismo ingênuo e cego - de que vivemos um período de pré-revolução "proletária" e coisas do gênero, que só meia dúzia de grupelhos autistas creem - ou ficaremos presos na sedutora teia do oportunismo da "esquerda majoritária" - que alarma o risco de um "golpe da direita" aos quatro ventos, e chega ao ridículo de twittar #dilmallende.

Tentaremos apontar alguns elementos. Cabe ao esforço coletivo, e não individual, das diversas organizações que participaram desse processo, construir um histórico não só de datas mas também de explicações sobre o fenômeno, de extrema importância para os próximos passos da luta de classes no país.

Contradições e antagonismos (latentes): 20 centavos + vinagre e tudo se desmancha pelo ar

Dia 17 de junho, El País, perplexo, afirmava que o Brasil estava vivendo uma esquizofrenia. Como pode, estourar uma revolta daquela população, sempre pacífica, cordial e simpática; naquele país, que nos últimos anos é exemplo de política social e crescimento econômico capitalista sustentável e "inclusivo"; e naquele momento, no qual recebia em casa um mundial do esporte que mais adorava e voltava sobre si os olhos do mundo todo (dos investidores e países dominantes, sobretudo)? Sobrevoando o país a jatinhos luxuosos, o governo se perguntava o mesmo, de posse de seus assessores e dados estatísticas (levemente maquiadas). As coisas não estariam melhor do que nunca? Mesmo a economia desde 2011 de forma geral não apresentou lá bons índices, e a inflação comendo pelas beiradas, o fato é que os empregos estavam sendo segurados, assim como a "vontade do povo", aprovação do governo sem questionamentos, ainda mais depois das eleições municipais que reafirmarão a hierarquia político-partidária da nação. Por que logo agora, ano antes das eleições?

Intriga da oposição, ou doença mental contagiosa?

Também não sabiam explicar os representantes governamentais do movimento popular. Craques em manter a luta do povo dentro do limite "respeitável" - passeatas planejadas, exigências possíveis e construtivas, trabalho político via eleições e fóruns da sociedade civil consultivos e "demandantes" - além disso, detendo a maioria das entidades e representações "oficiais" das classes trabalhadoras e populares, pegaram-se surpresos: algo lhes escapava das mãos. Ou jogavam fogo de verdade na fogueira e tinha-se o risco de se perder o que se tem, ou esperava as coisas acalmarem, lançando um ou outro apoio simbólico aqui e ali, e canalizar essa força para dentro das regras do jogos - ou seja, das eternas mesas de negociação, onde migalhas são distribuídas, quando possível, regularmente.

O cenário foi este: 20 centavos a mais para o transporte caótico da megalópole brasileira. Mobilizações... nada mais comum. Centenas de jovens "desocupados" fazendo barulho tentando impedir meia dúzia de empresários de sugar seu lucro de cada dia na sagrada esfera "pública". Em uma ou outra cidade, também ocorria o mesmo. Nada que uma memória de alguns anos para trás não possa relembrar, e trazer com isso tranquilidade. 

Mas havia algo mais em questão. A política repressiva precisava ali não só se fortalecer para não apresentar riscos aos investimentos bilionários na Copa das Confederações, pré-treino dos próximos megaeventos, como os aparatos repressivos precisavam mostrar serviço após o crescimento e investimento (também bilionário) feito pelo governo nos últimos anos. Nada a temer: a "opinião pública" está do lado da repressão: ocupações militares de favelas, chacinas, vídeos e fotos de irregularidades vazados... Nada disso desmontou nos últimos anos a legitimidade de tais forças. Então, à ação: cortar o mal pela raiz, mandar os meninos para a casa.

Não esperavam dois detalhes: 1- a base social na qual reproduziam seu brutal repertório de técnicas clássicas e arbitrárias (como prisão para averiguação, inclusive de vinagre - afinal, quem não deve, não teme gás) e novas ferramentas "não-letais" (o pau de arara, poderia também ser classificado como não-letal?), e 2- a sociedade do espetáculo em que vivemos, onde um celular, na hora certa, no lugar certo (e nas mãos certas) pode ter mais efetividade "pública" que milhões de vozes anônimas. Pensavam que espancavam pobres, negros e trabalhadores da periferia, como o fazem com frequência. No entanto, estavam ali em sua maioria jovens, brancos, das classes médias - incluindo próprios profissionais da mídia que formata a legitimação policial. Alguns gritavam até "sem violência". Em poucas horas o simbólico olho enxado e ensanguentado da jornalista da Folha se reproduziu em todas as telas e folhas da mídia. A brutalidade policial secular da polícia estava a mostra na pele de um inocente até para as classes dominantes (pelo menos para seus membros mais sensatos). A violência então necessária contra os vândalos, tornou-se, da noite pro dia, inadmissível, e os protestos (desde que pacíficos), cinicamente, toleráveis - e para permanecerem na hegemonia dominante, desejáveis em certos limites, segundo pautas e formatos conversados.

Como outros textos já disseram, ali foi a gota d'agua - o que era quase nada, de repente se tornou tudo. Isso porque, além dos dois detalhes, a repressão e governantes esqueceram de um outro: a situação social, em cidades (sobretudo as "sedes" dos jogos reformadas) cada vez mais sufocantes de se viver, que ganha contorno de insustentável, nos seus aspectos mais essenciais. Situação essa que de fato a maquiagem governamental não mostra, mas que o povo sente, na mais cruel realidade irônica. 

Os protestos começaram a ganhar as primeiras páginas dos jornais, afinal, "gente nossa está apanhando", pensavam e declaravam - e pior, também pensavam e não declaravam, quem não deve/pode se levantar está vendo que é possível e força há de sobra para isso. Se não pode com eles, junte-se, ao seu modo, a eles. E durante duas semanas respiramos rebeldia, através de um efeito dominó, que ia do centro para o interior, de norte ao sul do país. O povo virou protagonista, reconhecido. 

Planejadas nas redes sociais a merce das "uniões, centrais e partidos" dos estudantes, dos trabalhadores, etc. que demonstraram sua incompleta crise de representatividade e organização, sendo só mais uma voz abafada e não ouvida - às vezes, escorraçada nas manifestações - as manifestações se tornaram também um espaço onde tudo pode ser "postado". Os cartazes levantados, com frases irônicas ou demandas de todos os tipos e vertentes ideológicas, indicavam que uma geração de fato "saiu do facebook/twitter": a rede social virtual se tornou real, e os "curti", abaixo-assinados onlines ganharam pernas e voz humanas. Saia e trazia consigo toda sua confusão ideológica de anos na apatia política.

Mas sem fetiches: como vários analistas já demonstraram, a rede nada podia fazer se não houvesse milhões de peixes prontos para serem pescados. As redes foram apenas mais uma ferramenta que o povo usou para se defender, como sempre se defendeu da forma possível.

As passagens abaixaram em vários centros urbanos. O governo se viu obrigado a se reunir com os (possíveis) líderes dos movimentos, a dar respostas e "trabalhar" - a burocracia máxima do estado burgues, o parlamento, dessa vez até não saiu de férias tão rápido assim. Estão se desenhando reformas e programas, que obviamente pouco atende os reais anseios do povo e são muito mais um elemento de desvio e desmobilização, que no caso da desorganização e falta de linha revolucionária das classes trabalhadores, se torna (e vem se tornado até o momento) muito eficaz. Um exemplo foi a "promessa" dos royalties do petróleo em saúde e educação, logo após o vergonhoso leilão que tirou de antemão do Estado a maioria das verbas que dali poderia tirar.

Mas, também ironicamente, são dessas migalhas e ilusões quebráveis em curto tempo que se alimentam essas revoltas.


Os riscos e disputas (reais): a repressão, a pequena burguesia e seus aparatos no movimento de massa

Se por um lado, as manifestações desconcertaram o governo, o aparato político burguês e sua cretinice sem fim, além de outros aparatos, incluindo os vendidos e pelegos do movimento popular, esse desconcerto ainda se deu e está se dando de forma incerta. Além de carregar perigosos formatos.

A radicalidade de ações da massa (nos casos que não foram orquestrado por infiltrados e provocadores, como via de regra acontece nos levantes populares em períodos de pouca organização) sem dúvida educaram muitos jovens lutadores na prática. Os parâmetros de manifestações populares no Brasil, em poucos dias mudou completamente. Diretas Já e Fora Collor ficaram para as páginas sem cores da história, enquanto a resistência juvenil dos centros urbanos do país estão pintadas das mais vivas cores, e seus ganhos são reais - mesmo que pequenos, ainda não articulados, mas reais. O inimigo ficou na defensiva, enfim.

Assim como a capacidade de mobilização, mesmo com todo o aparato repressivo e investigativo do Estado, surpreendeu a todos, e também trouxe importantes lições.

Mas também há de se traçar dois riscos importantes: um interno e um externo ao movimento, quer sejam, a pequena burguesia urbana (sob ideologia conservadora, ou revolucionária pequeno-burguesa) enquanto movimento de massa e a ampliação e refinamento da repressão. Os dois riscos já se desenvolviam seriamente nos últimos tempo, e vários textos do nosso blog também os indicavam. No entanto, tudo ficou mais claro, ou mais obscuro nos dias de junho.

Quanto a repressão, podemos observar nos dias de jogo da Copa das Conf. e nas manifestações o seu novo e gigantesco contingente e aparato - em Fortaleza, uma arma supersônica utilizada para acabar com o occupy wall street, foi "inaugurada" de novo, após  um ato de resistência da Aldeia Maracanã; no Rio, manifestações foram alvos de tiros de armas letais, para só citar dois exemplos. Muitos feridos, alguns mortos, dentre esses casos, provenientes da ação das forças da repressão, diretamente na calada da noite, ou indiretamente nas manifestações - no Pará, uma gari não resistiu ao gás lacrimogêneo, usado sem nenhuma "economia" durante junho; em BH, um metalúrgico que tentava fugir do ataque policial caiu de um viaduto e a ação policial impediu de prestarem socorro a ele. 

E, também perigoso, está a ação invisível da repressão, através do monitoramento dos movimentos, sobretudo no terreno vingativo da internet. Por isso, é preciso ver com olhos críticos "as redes": possibilitaram rápida mobilização e troca de informações entre os movimentos, mas podem ser a armadilha perfeita para num momento chave a "festa acabar".

Quanto ao inimigo interno, que se expressam pelas ideologias do apartidarismo, individualismo, nacionalismo, moralismo etc., seja radical-anárquico (ex: o juvenil anarco-nacionalista anounymous e cia), seja mais conservador (ex: militarismo, e no extremo fascista), elas são uma realidade nas manifestações, sobretudo nos grandes centros urbanos do país. No segundo caso, chegou-se às vias de fato em agredir militantes partidários, utilizando-se da massa para se respaldar. Em vários aspectos a pequena burguesia tem conseguido hegemonizar os movimentos e as pautas, seja na sua versão "esquerda" ou "direita", mas sua incapacidade organizativa e ideológica compromete uma unicidade, pelo menos a curto e médio prazo. Mas é um risco, que está se desenvolvendo, mesmo que de forma não tão expressiva ainda - crescimento de gangues nazi-fascistas no sul-sudeste, o sair da toca de grupos ultra-conservadores e anti-comunista etc.


Alguns passos

Cabe, sobretudo aos marxistas, focalizar nessa conjuntura algumas questões:

- Analisar a infraestrutura econômica que possibilitou esse processo e se basear nela (a atual crise do imperialismo, a inserção cada vez mais difícil e subordinada do Brasil na economia mundial): sem isso, a superestrutura política, os supostos embates entre o projeto petista (nacional, popular, bom, democrático, produtivo) e o projeto do PIG/PSDB (vendido, elitista, de direita, especulativo) - e talvez um terceiro, mais militar-fascista, ganharão relevo frente à realidade concreta das classes brasileiras e sua luta. O único fortalecido, a curto prazo, será o projeto oportunista e conciliador petista, cuja tendência é perder força em períodos mais graves de crise. 

- Travar a luta ideológica, defendendo a ideologia da classe operária enquanto única classe capaz de guiar a sociedade para fora da crise: isso significa penetrar na prática cotidiana da massa e questionar a ofensiva ideológica conservadora (sobretudo de versão pequeno-burguesa) que hegemoniza vários aspectos do protesto popular. Disputar a sede progressista dos setores médios urbanos, assim como dos setores marginalizados também presentes e não sectarizá-lo ou ser instrumentado por ele. Isso inclui expor claramente as limitações da "luta por serviço públicos", que subjaz sob uma tese do Estado neutro e regulador (um dos centros da ideologia pequeno-burguesa), o papel desses serviços na diminuição da força de trabalho, os limites de investimento num Estado que serve primeiro ao capital, a determinação em última instância da base econômica etc. Assim como do radicalismo sem propósito e estético. Caso contrário, por exemplo, cairia no anterior embate fajuto e superficial entre "Bem-estar social" via Estado forte x neoliberalismo.

- Organizar a luta, e aprender com a ação do povo. Pensar a longo prazo. Se o PT se tornou símbolo "vermelho" de traição do povo, só a prática nos próximos anos poderá mudar essa opinião. Caso contrário, outras cores poderão crescer e talvez montar sobre o desejo de mudança do povo uma nova/velha escravidão, que nos é fresca na memória.


Para acabar

Em poucos dias, o Brasil entrou na lista de levantes populares dos último anos. Se essa fama se tornará em um projeto político alternativo, coerente e forte, capaz de gerar uma ruptura política em nosso país, ainda se está para ver. O desafio nesse momento fica nas mãos das classes que pretendem fazer a história andar para trás ou para frente, de tornar a insatisfação contra o caráter anti-popular do atual Estado em Estado popular, ou um de nova fachada "nacional".

Esquizofrênicos? Talvez estejamos mais atravessando por uma nova fase das lutas populares, que poderão gerar belos frutos para um povo já cansado de pseudo-revoluções, simulações de soberania e engôdos para dar e vender na história brasileira. Uma catarse ainda em seu início.

Esquizofrênicos talvez aqueles que estão no governo, e aqueles que estão por trás dele (os que mandam, realmente), pois pensam que gastando milhões em marketing política podem maquiar para sempre a realidade; que com estatísticas onde por alguns reais se sai de uma classe e entra noutra acham que vão calar a todos; que com crédito, mercadorias com valor de uso cada vez mais passageiro e futebol podem iludir o povo. Que chamam de democracia a podridão de eleições vendidas e partidos fantoches; de mérito o direito que justifica a expropriação em massa, o desemprego e a miséria.

Esquizofrênicos eles por crerem eterno, só por hoje ser grande, aquilo que é histórico, temporário, fadado à decadência.

À insanidade do capital, que os trabalhadores imponham a sua mais radical sanidade, mostrando que quem tudo constrói também tem o direito de tudo destruir -  e reconstruir, segundo seus interesses. À utopia deles de continuar o mundo, ou o país, no caminho em que estão guiando, aos trancos e barrancos, imponham seu mais perspicaz realismo, ousando mudar o já muito inquestionável.



A história nos reservou dias interessantes. Saibamos então "aproveitá-los".

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