Goya, O sonho da razão produz monstros: e as derrotas da esquerda, viria da "alienação" das massas? |
No texto anterior Por uma nova teoria da ideologia: crítica à noção de conscientização e à “política racionalista” de esquerda, tentamos colocar o dedo em feridas intocáveis da esquerda brasileira baseadas num paradigma crítico e racionalista, ainda bastante hegemônico em diversas organizações e correntes. Esse paradigma, que está longe do marxismo revolucionário, se consolida como uma práxis da conscientização das massas através do primado da crítica na política.
Nessa política racionalista de esquerda, a crítica teria o poder de quebrar o encanto ideológico e possibilitar uma "revolução mental" nas massas alienadas, pré-requisito para a construção revolucionária. A luta de classes ganharia um contorno iluminista, da disputa entre as luzes (razão) e a escuridão (ideologia). O marxismo viria assim para "realizar" as pretensões burguesas já antigas e largadas por sua classe de origem.
Sob essa linha política subjaz uma certa teoria da ideologia como falsa consciência que precisa ser eliminada. Em Lukács, por exemplo, encontramos esse paradigma sob diversos aspectos: o problema da consciência do proletariado, um problema quase moral, seria quase o principal entrave da continuidade da revolução proletária. Nesse caso, a ação política revolucionária dependeria da consciência totalizadora e esclarecida, fora do âmbito reificado das relações dominantes.
Tentamos por fim apresentar uma alterativa teórica e prática da ideologia que prime pela prática e estrutura sobre a consciência, o coletivo sobre o individual, a partir sobretudo da noção althusseriana de ideologia como "eterna" (ideologia sendo subjetivação em si, formadora de relações sociais essenciais no nível cultural), e da contribuição de Safatle baseada em Marx sobre a diferença de nível entre crença e saber. Elas possibilitam enxergar a política muito mais como campo de forças do que como discursos racionalmente construídos vs. obscurantismo ideológico e fetichista; a importância maior da influência prática e cotidiana de massas frente à disputa, via razão, de consciências individuais. Grosso modo, e sabendo do risco anti-científico se esta tese for radicalizada: em vez de buscar destruir a crença (não-racional) em si, construir novas crenças, através de relações contra-hegemônicas.
Aqui pretendemos continuar nessa linha, agora baseando-se no famoso discurso de Lenin "A doença infantil do "esquerdismo" no comunismo". Já utilizamos tal texto para criticar o anarquismo, no ensaio "O caminho do inferno é pavimento de boas intenções", e lá já está também argumentos que utilizaremos aqui, de uma forma não tão sistemática. A experiência prática e revolucionária de Lenin reforça e afirma de forma objetiva os pressupostos de uma outra teoria da ideologia que tentamos elaborar através de outros paradigmas não hegemônicos na esquerda hoje.
Sobre o texto esquerdismo... de Lenin
Sobre o texto esquerdismo... de Lenin
No texto, Lenin discursa em 1920 sobre os presentes desvios de esquerda presente no movimento comunista internacional. Esses desvios apontam críticas justas à traição dos oportunistas (desvio de direita) que levam o movimento revolucionário do proletariado para o reformismo, mas como alternativa prática pecam ao tentar realizar a revolução a partir de princípios (e preconceitos) radicais, eleitos fora de uma conjuntura concreta, e nesse sentido não retirando a lição central da prática bolchevique vitoriosa. Através de motes que condenam qualquer desvio tático, qualquer conciliação, qualquer compromisso com o inimigo e os traidores do movimento, os "esquerdas" pretendem realizar uma caminho puro e reto para a revolução.
Essa solução "fácil" é infantil pois é fora da realidade e não consegue efetivar as imensas tarefas que uma revolução exigem. O esquerdismo possui base ideológica pequeno-burguesa, e por isso, apesar de ser um problema muito menor que o oportunismo (aliás, Lenin demonstra que o esquerdismo é muito mais uma infância do pensamento revolucionário, ainda ingênuo, mas um primeiro passo, e não uma traição), deve ser combatido.
E nessa crítica política, prática, encontra-se uma teoria da ideologia que os comunistas devem se basear.
Colaboração à teoria da ideologia de Lenin no esquerdismo...
Colaboração à teoria da ideologia de Lenin no esquerdismo...
Segundo as características que Lenin elenca sobre o esquerdismo, podemos arriscar e dizer que esse desvio é uma manifestação de "política racionalista de esquerda", que tentamos antes definir, através do anarquismo e da posição de Trotsky, como um escape da realidade objetiva (nível da prática imediata) e a construção de uma linha baseada nos princípios já claros pela vanguarda e que se nega a se "inferiorizar" taticamente. Sob essa coordenada, em Humanismo e Terror, Ponty critica Trotsky exatamente por pensar fora da conjuntura, negando as arbitrariedades e ambiguidades da história, e no fundo se isolar num nível especulativo, de uma consciência (pseudo)revolucionária abstrata, assim mais valendo cumprir o imperativo moral revolucionário "puro" que vencer o inimigo através de desvios. Na política racionalista, a única via de contato com as massas, que estão sob a égide da ideologia dominante e suas instituições, é a via discursiva, na busca de convencimento "de fora" das práticas dominantes e reacionárias, através de argumentos racionais e que dizem respeito à totalidade não vista no nível ideológico.
Criticando o egocentrismo do oportunismo e seu carreirismo parlamentar, assim como o centralismo e o papel de chefe políticos de massa, o esquerdismo acaba alimentando um outro tipo de egocentrismo, por negar a participar e disputar das lutas de caráter não-revolucionário imediato. A vanguarda se torna aquele sujeito que anuncia a verdade, via panfletos e programas, e a massa deve segui-los. O poder da razão é central aqui.
Em oposição a essa primazia da razão, e do saber, fora de uma conjuntura concreta, Lenin propõe a primazia da prática sobre o presente, como as revoluções russas e o poder soviético vitorioso à época ensinou à teoria. Segundo ele, a ideologia não é um erro teórico, ou uma consciência ainda não-esclarecida, recuperável através da propaganda revolucionária e disputa teórica. A ideologia age em outro nível: é um risco constante, para além da consciência, que emana da força "terrível" (p. 296) do "costume" (p. 281). Essa força possui, por sua vez, bases materiais para se perpetuar, como a pequena propriedade, a vigência da lei do valor, ainda presente inclusive no período de transição, um período em que o poder político e instituições são dirigida por revolucionários.
A vitória sobre a ideologia dominante, nesse sentido, não é nada fácil - exigindo assim, muito mais que uma arma, um formato de luta, "puro" e defendido infinitamente sem nunca mudar. Lenin enfatiza várias vezes que essa vitória só será conquistada, seja no período pré ou pós revolucionário para além da propaganda/agitação, em luta prática prolongada e sistemática. As massas tem necessidade de aprender pela prática, num conjuntura concreta, "sofrendo" as contradições e limites na própria pele. Há uma diferença radical entre saber teórico e saber prático (nível das crenças práticas, ideologia): comentando sobre os riscos da ideologia (pequeno-burguesa, no caso) invadir a política do Partido, Lenin comenta: "o reconhecimento teórico, abstrato, de tais verdades não é suficiente" para incorrer no erro (na prática).
Esse "para além da consciência", do saber teórico racional, ou seja, o nível ideológico persistente, que emana das práticas e não é apreendido pela totalidade do saber a todo instância pelos agentes sociais, colocado na citação anterior como problemático para a vanguarda pode ser facilmente transferido analiticamente para as massas.A consciência da exploração, da opressão, da traição dos partidos e organizações reformistas, de que "tudo está errado" de forma alguma é suficiente para gerar uma prática revolucionária, ou seja, romper de vez com as crenças ideológicas. Precisa-se muito além de "saber" isso, seja instintivamente ou teoricamente, possibilitar experimentar na prática a efetividade dessas verdades.
"Sem uma mudança de nas opiniões da classe operária (e da massa progressista) a revolução é impossível, e essa mudança consegue-se através da experiência políticas das massas, nunca apenas com a propaganda." (p.324), conclui Lenin.
O papel dos comunistas frente às massas é de convencimento, é pedagógico, Lenin não nega: mas essa pedagogia é da prática, e da não conscientização (segundo o paradigma educacionista de que "a educação liberta o povo da alienação"). A própria prática tem um peso enorme da própria formulação teórica e racional, como Lenin demonstra com o ascenso do idealismo e pessimismo na cultura russa após a derrota da primeira revolução (p. 283).
O papel dos comunistas frente às massas é de convencimento, é pedagógico, Lenin não nega: mas essa pedagogia é da prática, e da não conscientização (segundo o paradigma educacionista de que "a educação liberta o povo da alienação"). A própria prática tem um peso enorme da própria formulação teórica e racional, como Lenin demonstra com o ascenso do idealismo e pessimismo na cultura russa após a derrota da primeira revolução (p. 283).
E sobre esse ponto também completa Lenin: o nível educacional e cultural das massas não é empecilho determinante para uma tática correta e a vitória sobre a ideologia dominante. As massas russas eram muito mais "alienadas" que as ocidentais na época da revolução, ainda esmagadas pela cultura semi-feudal, pelo capitalismo atrasado etc. e mesmo assim "as massas compreenderam os bolcheviques" (p. 327) e sua linha tática de recuo quando necessário, sem significar traição. A vitória, sem dúvida, é a prova mais cabal dessa compreensão de poder prático e não meramente especulativo.
E Lenin vai mais longe. Essa compreensão não é uma compreensão "individual". É uma compreensão coletiva, através das classes e das organizações ativas que os sujeitos integram. Lenin comenta que "em qualquer classe, mesmo nas condições do país mais culto, mesmo na classe mais avançada [...] há sempre - e enquanto existirem classes, enquanto a sociedade sem classe não se tiver afirmado, consolidado e desenvolvido completamente sobre os seus próprios fundamentos, haverá inevitavelmente - representantes de classe que não pensam e que não são capazes de pensar. Se assim não fosse o capitalismo não seria o capitalismo opressor das massas" (p. 313). Mais uma vez, o nível cultural e educacional não é o empecilho central. Aliás, é até esperado e normal o desnível entre os sujeitos, por isso mesmo a necessidade de concentração/centralização política da classe ou da massa que consiga superar essa fragilidade. Efeito esperado inclusive porque obedece as estruturas sociais que organizam a prática social em ampla escala da massa.
Concorda-se com Cueva, em texto publicado também nesse blog: "ao ser a cultura uma criação dos homens, é, quer se queira ou quer não, um produto social; não pode compreendê-la a margem de suas condições sociais de produção e, consequentemente, da estrutura social a partir da qual é produzida. Contrariamente ao que postula o pensamento idealista, não é a cultura que confere sentido à sociedade mas sim esta, através de suas estruturas e processos, que confere sentido à cultura; em outras palavras, a sociedade é que a determina."
Os esquerdistas e "racionalistas canhotos" tem razão em dizer que uma ideia que toma a massa realmente torna-se uma força material, fundamentando-se em Marx. Mas é preciso lembrar que essa tomada só é efetiva quando se largam as velhas ideias. E as massas não são passivas, como nos ensina o leninismo: mudam quando entendem por si só, aos olhos vistos, através de incontáveis exemplos vivenciados, que é preciso largá-las. E tudo isso com os pés num solo histórico e material, numa conjuntura específica em que a vanguarda deve também estar, e não no terreno escorregadio das ideias.
Referência:
Lenin: A doença infantil do "esquerdismo" no comunismo. No livro Obras escolhidas (3), Alfa-Omega, 2 ed. 2004.
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