Big Bang: a ausência de uma Causa Primeira? |
O texto não será sobre Mallarmé,
mas tomará emprestado o trecho de seu famoso poema que colocamos no título. Isso porque tanto esse título quanto o conteúdo (enigmático) do poema, mas também seu formato, ainda mais enigmático,
nos leva ao "estranho" ambiente teórico que Althusser tenta construir ao final de
sua vida, que colocamos sobre a definição de filosofia do vazio, expressão que o próprio autor atribui ao seu esforço. No poema de Mallarmé, as palavras e frases, quase que de forma desconexa,
aparecem e dançam; as possibilidades de existência e articulação se avolumam,
mas também se escondem, se findam. Um lance de dados, um ato do poeta; mas que
resiste a algo muito maior, a essa força da realidade que não encaixa nunca no
querer e controle humano – apesar deste encaixe ser o sonho ocidental mais profundo. Exatamente como Althusser vê o mundo em sua filosofia do vazio, em seu novo (talvez não tanto
assim, como mostraremos) modo materialista de ver o mundo, que ele chama de materialismo
aleatório (ou do encontro).
Mas de cara um marxista, e com
razão, pode questionar: se já temos um materialismo, aliás dois, o histórico e
o dialético, que servem como armas de mudar o mundo, e tão atacado esses dias, porque lançar mão
de outro? Não seria jogar a toalha? E outra, como confiar num suposto
materialismo que inclui nomes "idealistas" de carteirinha, como o
reacionário Heidegger, ou o hermético Derrida, que mais confundem e
atrapalham do que ajudam a causa do proletariado?
De fato, são questionamento
pertinentes, que nós compartilhamos. Se Althusser em vários momentos buscou
solidificar o marxismo-leninismo, através de várias contribuições (como a
defesa do marxismo como ciência, da ruptura de Marx com o legado burguês
humanista e da dialética hegeliana etc.), com limitações obviamente, é visível que sua última fase
contradiz ao que o próprio buscava: não uma filosofia nova, mas uma nova
prática filosófica, que não estivesse mais no estatuto da velha filosofia. Entrar no mesmo terreno dos antigos filósofos é negar a revolução efetuada
pelo materialismo histórico, que enterrou a filosofia enquanto tal, desde a
Ideologia Alemã (e fez surgir a possibilidade do materialismo dialético).
Mas se é possível “usar”
minimamente, alguma contribuição de teóricos fora do campo marxista – desvios
muito comuns na construção do próprio marxismo, que é dialética, e se efetua na
apropriação/destruição do saber “do outro lado” (de outra classe), talvez uma
análise sobre esse último Althusser, mais propriamente seu pequeno livro
inacabado A corrente subterrânea do Materialismo do Encontro se faça necessário – livro publicado só postumamente
em 1994, e no Brasil, presente na revista Crítica Marxista 20 (2005, utilizaremos desta edição).
Além disso esse texto é
contemporâneo a uma problemática do “pós-marxismo” de hoje, quer seja, a busca de elementos que consigam romper com
a reprodução/estrutura da ordem vigente. Nele, sujeito, acontecimento, evento, são tantos
nomes usados para buscar a possibilidade teórico de uma ruptura revolucionária, já que a proposta “bem
planejada” do leninismo não conseguiu (de forma bem simplista mesmo) romper com
as cadeias da reprodução capitalista e sua superação em direção ao comunismo. O refúgio na
filosofia parece ser o caminho para reiniciar uma nova diretriz teórica. Exemplo disso é o influente “pós-marxista” de hoje, Alain
Badiou, que busca unificar a proposta do althusserianismo com outros projetos
(da psicanálise lacaniana, do existencialismo, principalmente). Essa articulação possibilitaria uma visão do
sujeito e da ação "livre", ou seja, uma intância fora da estrutura social e seu processo de reprodução, radicalmente nova e
consistente (ao contrário império de um processo sem sujeito, presente no althusserianismo). Essa visão, compartilhada e construída por outros pensadores, implicaria numa nova forma de encarar a política hoje, e
assim encher de esperanças e possibilidades movimentos contra-hegemônicos que se veem de todos os lados
presos à dramática hegemonia global do capital pós bloco socialista.
Isso de
maneira bem resumida, sem entrar nas consequências outras dessa teoria, que
inclui por exemplo um novo conceito de comunismo (por demais platônica, por vezes liberal e até
cristã). Mas o que nos chama atenção, e nos faz voltar a Mallarmé, e a
Althusser tardio e a atualidade de sua problemática, é a persistência no aspecto contingente da história; da primazia da
surpresa, do encontro não planejado, em oposição à suposta sede leninista
de buscar “organizar” a revolução. Em Badiou, o evento é “impossível” de
organizar, de forma bem grosseira. O que podemos fazer é entrar nele e nos sentirmos
felizes por ele aparecer - sendo fiel a ele, em seu linguajar. Não é por outra razão que os “novíssimos movimentos sociais” pós crise de 2008, a
la occupys, e sua brutal ausência de organização e estratégia
são vistos com bons olhos por teóricos do “pós-marxismo”.
Voltemos de vez a Althusser. Já
vimos uma possível utilidade e contemporaneidade das questões que coloca em seu livro já citado. Continuemos.
Resumidamente, o que ele propõe nesse livro? Uma
visão materialista que se fundamenta no primado do contingência em oposição à forma; do
vazio ao ser; do encontro à causa necessária. Essa visão suporta um mundo guiado não só
pela “contingência da necessidade”, mas também pela “necessidade da
contingência”.
Para ele, no fundo, o idealismo seria exatamente a crença
humana, moderna, de que o real seja controlável, e segundo a razão humana, ou segundo uma causa maior (teológica etc.). Isso
não é novo, pois sua crítica à teleologia hegeliana no marxismo "não-marxista" é mais ou menos
por essa razão: tentar colocar à história e ao mundo uma finalidade que esteja
de acordo com nossa razão, nossa pretensão, ou qualquer pretensão universal (da Razão, de Deus etc.). Nessa filosofia essencialista, teleológica, onde uma grande Finalidade ordenaria a existência, lógica e
realidade se casam no final, após um período de desencontro. E aí estaria o mais
profundo idealismo: a primazia desta filosofia seria das ideias, da consciência (humana) do
mundo, e não do mundo em si, do real. Althusser com isso nada mais faz que confirmar o diagnóstico da dialética hegeliana como idealista e prejudicial ao pensamento materialista.
Um
materialismo consequente, continua, seria a aceitação da contingência do mundo que vai
além do controle humano e de qualquer pretensão de contorná-lo segundo um princípio único e eterno (o problema, como vamos ver, é até que ponto vai esse
descontrole e essa falta de princípios...). É na história da filosofia que Althusser buscará nomes que contribuíram
para esse materialismo do encontro. Esse materialismo teria existido até o momento de forma assistemática, implícita, subterrânea, perpassando os séculos: começa
definitivamente com Epicuro (o mesmo estudado por Marx em seu doutoramento). Epicuro (depois de
Demócrito, e antes de Lucrécio) acreditava que o mundo é feito de unidades
fixas, os átomos, mas que além e antes deles havia o vazio. No vazio, sempre-já havia uma
chuva de átomos, que não se articulam. Assim, o elemento de tudo
sempre-já existe, ao mesmo tempo que não há nada. Nesse lance de dados paralelos, sem início
nem fim, é preciso a emergência de uma pequena mudança de rumo para que um
encontro apareça, e apareça uma forma/unidade: as gotas de átomo tendem ao infinito se não houver um desvio. Essa mudança no entanto existe, apenas (ela é a possibilidade da existência das coisas): mas sem grande causa ou razão anterior,
sem sujeito que a opere segundo uma finalidade, permanecendo no marco da objetividade e da aleatoriedade.
Ou seja, no materialismo do encontro, é o vazio, e não
a forma que surge do encontro (que pode ser fugaz e infinitamente mutável), o
constante, o elemento central. Heidegger, segundo o autor, seria outro nome tardio dessa corrente, porque
valorizaria o aspecto do “se deu assim” do mundo, não buscando suas origens e as causas por trás delas; o mundo aparecendo como dom,
diferente da corrente ocidental hegemônica (exemplo, aristotélica) que buscaria
uma causa maior para tudo que existe.
Maquiavel, que Althusser estudou
de forma destacada no final da vida, também está presente nessa corrente. No caso concreto da
Itália ainda fragmentada do século XVI, com vários pedaços que ainda não se encontraram, nem
se fixaram, Maquiavel lançou um chamado genérico a qualquer homem, que de um
lugar qualquer poderia efetuar essa unificação. Unificação essa, que da mesma
forma dos átomos, não se tem garantia de realização, nem de sua continuidade.
O próximo "materialista" seria
Espinosa, esse outro predileto do althusserianismo (em oposição a Hegel para
boa parte do marxismo). Espinosa, em vez de começar pelo mundo ou pelo homem,
como seus contemporâneos, e acabar montando uma causa último (Deus), começa
logo por Deus. A operação que ele faz é, no fundo, desmontar a noção de criação
presente na cultura ocidental, pois para ele Deus é tudo, é substância única de
tudo, é ele próprio a natureza, e não uma causa externa e anterior a ela. Se
Deus é tudo, nada é – nada o diferencia, e este é diluído. De uma forma meio
irônica afirma que fora de Deus não há nada, mas esse Deus é o existente, a
objetividade, a natureza – e a multiplicidade de formas que surgem disso: uma
universalidade/diversidade, o todo e suas inúmeras formas provindas do encontros aleatórios. Da mesma forma, destrói a garantia a priori do conhecimento,
de um humano sempre racional, como demonstrava o racionalismo.
Depois Hobbes, que por sua vez destrói a
garantia e a fixidez da vida social pelo medo generalizado que faz a condição
humana. O lobo do homem, em Hobbes, é o "demônio" que espreita a sociedade e pode tudo destruir
– tudo que era sólido, se desfaz – e gera a guerra geral, e infinita. À maneira
de um átomo na chuva de Epicuro, um indivíduo pode encontrar e matar qualquer outro
violentamente, a qualquer momento. Nessa insegurança eterna, “o inferno são os outros”, já que estes impedem nossa
pretensão individual de domar o mundo a nossa semelhança, só possível a priori num mundo
totalmente vazio, sem outras forças e desejos.
Da mesma forma, Rousseau, sendo outro representante "materialista", projeta um
estado de natureza puro onde os indivíduos se cruzam, mas não constituem
sociedade, até que uma força que não controlam (catástrofe natural, por
exemplo) os obriguem a tal (semelhante ao Leviatã de Hobbes, que surge de um
acordo “calculado”, e espreitado pelo medo da morte violenta). A recaída, ou o desfazer dessa obra (encontro não controlado), também é presente de forma constante aqui.
E por esse longo caminho entramos em Marx. No fundo, a pretensão última do texto é apresentar uma contribuição ao marxismo, como vemos, a sua maneira. O último tópico do texto é sobre a relação entre modo de produção e transição, ou seja, sobre o ponto central do materialismo histórico, cujo materialismo dialético engendra ferramentas que busca posições justas nesse terreno científico.
Para Althusser, toda essa corrente materialista por ele exposta é marcada por uma característica geral: o
fim de qualquer garantia histórica (e mais, “ontológica”). Ora, para o autor, esse abandono é exatamente o que
possibilita pensar a conjuntura (um conjunto aleatório de “coisas”, que
existem momentaneamente, mas que poderiam ter existido de forma diferente) e propor, de uma forma genérica a
possibilidade de superação – a ser efetuada, por sua vez numa situação também
concreta, singular e não garantida totalmente a priori. Segundo ele, Marx foi “forçado a pensar dentro (desse) horizonte
desfalecido entre o aleatório do Encontro (na história) e a necessidade da Revolução”.
Esse horizonte estaria presente em todos aqueles que buscam não só entender a
realidade, mas mudá-la; não só pensar, mas fazer política; buscam “não só a essência da
realidade, mas sobretudo a essência da prática, e a ligação entre estas duas
realidades no momento do seu encontro: na luta [...]”. Ou seja, esse seria o quadro sob o qual o materialismo (o consequente) ganharia ares de revolucionária. E assim como Espinosa, Marx buscaria “pensar
seu pensamento, e como é pensamento da prática, pensa a prática através do
pensamento”.
De fato Althusser consegue gerar um raciocínio que vai do primado do vazio sob a forma, da contingência sobre segurança, na história, para a importância central do marxismo: a prática revolucionária. A falta de garantia ontológica, de uma grande Razão que se realiza na história, possibilitaria a própria luta na história, e a necessidade de uma avaliação e transformação concreta, segundo uma determinado forma posta. A mesma operação de "desmonte" das velhas pretensões filosóficas e o primado de uma prática numa conjuntura já está presenta nas teses contra Feuerbach, de Marx:
"2- A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica.
11- Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo."
O primado do vazio sobre a forma, traduzindo para o marxismo,
da contradição sobre a unidade, nos remete sem dúvida a Mao. A contribuição de
Mao na dialética marxista, e que Althusser valorizou tanto, foi a
universalidade/diversidade da contradição, que quer dizer: o aspecto provisório da unidade, e a universalidade da contradição, que nunca é única,
mas apresenta de forma singular, móvel e hierarquizada de contradições numa
conjuntura específica (sobrecontradição). Nesse sentido, até sob os olhos estranhados de Althusser
nessa fase, a dialética maoísta se mostra materialista, pois não se fixa em
ideais, mas num terreno material, histórico e singular, num constante e verdadeiro processo de
criação/destruição (onde realmente podem surgir novas formas, a surpresa pode aparecer, e não um retorno quase idílico a fase pré-alienação como na dialética hegeliana e sua negação da negação). Em vários momentos Mao busca acrescentar a categoria de
novo/velho no materialismo dialética, para além da luta de classes (que inclusive pode não se concluir, com o fim da humanidade por exemplo, mas este não é um problema para o verdadeiro materialismo, que não é nem humanismo nem pragmatismo): a luta de classes um dia pode findar-se
– mas isso não significaria o fim das lutas, conflitos, e transformações
(novamente, ordem/unidade instável, desordem/contradição constituinte e permanente). Nessa visão dialética materialista, a
humanidade é um fenômeno "insignificante" frente ao natural, ao universo infinito,
e seu própria fim poderia significar inclusive uma superação (com outras espécies, etc.).
O humanismo e racionalismo ocidental – ideologia burguesa, cuja religião é o
culto do “índivíduo geral” - que tanto impregnou e impregna o marxismo, é
lançado ao lixo e fica uma visão científica e de acordo com a luta proletária,
que busca uma nova página da história e o papel das massas nesse processo. Não
faz nenhum sentido, a não ser para a ideologia burguesa, que lutou contra o
absolutismo e o poderio da Igreja, que a natureza ainda tenha uma grande
finalidade/sentido, como crê as religiões, e muito menos que esta se guie pela razão e consciência humana
“universal”.
Então valeria perguntar: porque priorizar uma "desconstrução" de
Derrida e não a dialética marxista, como presente em Mao? Eis uma pergunta que fica. Em partes do
livro o autor chega a comentar que é ridículo buscar um fundo político único para esses
"novos" autores "materialistas" (exemplo sobre Maquiavel: monárquico ou republicano?), assim como em outra obra
criticou o simplismo de reduzir todo saber em ciência burguesa e ciência
proletária. Tais teóricos contribuiriam, com limitações e com outra linguagem,
ao materialismo. No entanto, isso não responde o “grau” de uso que faz desses
autores fora do marxismo. E veremos que é exatamente nesse grau onde está todo o risco da filosofia do vazio de Althusser, que nos lança para terrenos não tão marxistas assim.
Foquemos então nesse risco, assim como na crítica que Althusser dedica a Marx no final do livro. Ponderando suas posições veremos melhor sua justeza.
Deve ter se tornado visível até aqui que a filosofia do vazio pode desembocar numa visão muito prejudicial à prática revolucionária. Há um claro risco de
“niilismo” nela, onde tudo é fluido e contingente ao extremo,
numa infinita desordem ontológica, onde o mundo tem “uma constituição aleatória”. Essa concepção pode facilmente levar ou ao imobilismo político, ou a perde de prioridades e organização na política. Esse inclusive é todo o "mal" pós-moderno, cujo ceticismo faz abandonar a luta revolucionária e a aliança com os trabalhadores.
Eis seu risco maior: se tudo é incerto, não
garantido, posso preferir (mais “lógico”) nada fazer, ou fazer qualquer coisa. Não tendo nada em minhas mãos, esperarei, não a razão primeira, mas a não-razão primeira!
Contra isso devemos
colocar em primeiro lugar a capacidade tecno-científica de controlar vários aspectos da natureza, e que
esse saber e técnica, prático, é possível de ser progredido, a história nos prova isso; e
que a ciência da história, o marxismo, possibilita ao proletário sim uma
atuação segura e sem ser totalmente
refém dos acasos, conhecendo para isso as circunstâncias, a estruturas e suas tendências. Como já dizia Engels, e Mao completa, a liberdade é saber e atuar segundo a necessidade - para depois transformá-la radicalmente.
Ou seja, a unidade, inclusive da vida, da humanidade, não é permanente, mas ela se firma sob uma forma/conjuntura, um encontro já realizado (uma possibilidade em milhões...), com um grau específico de garantia e "duração", sendo possível traçar probabilidades, cujas realizações não são 100% garantidas, mas mais ou menos prováveis, segundo sua posição. De fato, somos jogados, como diz Marx, num mundo e numa história (conjuntura) que não escolhemos, que está aí, poderia ser diferente, e bem provável que seja transitório. Mas o grau de contingência maior ou menor possibilita tanto o conhecimento quanto atuação segura sobre a realidade específica.
Ou seja, a unidade, inclusive da vida, da humanidade, não é permanente, mas ela se firma sob uma forma/conjuntura, um encontro já realizado (uma possibilidade em milhões...), com um grau específico de garantia e "duração", sendo possível traçar probabilidades, cujas realizações não são 100% garantidas, mas mais ou menos prováveis, segundo sua posição. De fato, somos jogados, como diz Marx, num mundo e numa história (conjuntura) que não escolhemos, que está aí, poderia ser diferente, e bem provável que seja transitório. Mas o grau de contingência maior ou menor possibilita tanto o conhecimento quanto atuação segura sobre a realidade específica.
Sem cair nos
excessos das origens e efeitos aleatórios por completo, sem explicação externa
ou interna, discordamos de Althusser ao dizer que nenhuma determinação
(lei) nem mesmo é esboçada (!) num encontro. Ora se isso pode ter certa lógica se nos
transportamos no infinito do universo, onde as possibilidades de fato são ainda além do conhecimento humana, isso não condiz com um terreno limitado
e específico, como a história, uma formação social, um modo de produção etc. Na
história da evolução das espécies, por exemplo, o número de possibilidades de formações
genéticas diminui cada vez que focamos mais um ramo evolucional ou grupo
taxonômico. Isso não impõe a necessidade de uma causa primeira: a própria vida surgiu certamente de um encontro de circunstâncias favoráveis e "não-planejadas", e também é um encontro provisório (a possibilidade do fim da vida em nosso planeta é uma possibilidade sempre real), e que poderia nunca ter ocorrido (como não ocorreu em vários locais do universo que "conhecemos"). Assim como há a constante possibilidade de fim de uma
espécie/de sua transferência genética, o fato dessa espécie ter surgido em meio a tantas
outras que desapareceram e não vingaram etc. Mas esse fundo sempre existente que possibilita o fim de uma unidade, de acordo com as contradições da realidade, se apresenta não de forma única a todo instante, mas sob força quantitativamente diferenciada, dependendo das circunstâncias. Mutações muito “contingentes” podem acontecer a qualquer espécie, mas estas só surgem sob
uma forma já dada e consolidada, que ainda persiste e produz seus efeitos.
Outro exemplo seria o encontro entre o espermatozóide e o óvulo. Não é nada garantido, porém as circunstâncias que os dois se encontram dentro de um organismo feminino, forma já constituída, aumenta e consolida as probabilidades deste acontecer.
Outro exemplo seria o encontro entre o espermatozóide e o óvulo. Não é nada garantido, porém as circunstâncias que os dois se encontram dentro de um organismo feminino, forma já constituída, aumenta e consolida as probabilidades deste acontecer.
O encontro feliz de tudo que existe e pode deixar de existir, que versa a filosofia do vazio, não é tanto ao
acaso assim, como Althusser tenta mostrar alguns momentos. O acaso espreita, existe, mas em menor ou maior grau, dependendo das formas já constituídas e do ponto/momento específico levado em consideração.
No entanto, no final
Althusser parece apresentar teses mais coerentes sobre esse aspecto, detectando o risco da contingência extremada. Comenta “concordamos com que não haja nenhuma
lei que presida o encontro (...), porém
acrescentaremos também que, uma vez “tendo pego” o encontro, isto é, uma
vez constituída a figura estável do mundo, do único que existe (porque o
advento de um mundo dado exclui evidentemente todos os outros possíveis), nós temos
a ver com um mundo estável cujos acontecimentos obedecem, na sua
sucessão, a “leis”. Pouco importa, então, que o mundo, o nosso (não conhecemos
outro, só conhecemos, da infinidade de atributos possíveis, unicamente o
entendimento e o espaço, “Faktum”,
poderia ter dito Espinosa), nasceu do encontro de
átomos caindo na chuva epicurista do vazio, ou do “big bang” do qual falam
os astrônomos; é um fato que temos a ver com este mundo
e não com um outro; é um
fato que este mundo é “regular” (como
se diz de um jogador honesto: pois
este mundo joga e zomba bem e belamente de nós), é submetido a regras e
obedece a leis. [grifo nosso]. Daí a grande tentação, mesmo para aqueles de nós que aceitariam as
premissas deste materialismo do encontro, de refugiar-se, uma vez que o
encontro “pegou”, no exame das leis surgidas desta “pega” de formas, repetindo
estas formas no seu fundo indefinidamente. Porque é também um fato, um “Faktum”,
que há ordem neste mundo e que o conhecimento deste mundo passa pelo conhecimento de suas “leis” (Newton)."
Ou seja, o vazio seria o "princípio" (o não-princípio), ao mesmo tempo o risco constante. Porém, com um encontro constituído, uma unidade vindo a toda, ele é regido por leis específicas, duráveis até seu fim. O medo de Althusser é a generalização ad infinitum dessas leis, da impossibilidade de mudança qualitativa radical - retorno da filosofia idealista/essencialista. E Althusser infelizmente não desenvolve sobre o "tamanho" desse encontro, o que colaboraria para por fim aos riscos de sua construção teórica. Com "tamanho" gostaríamos de dizer exatamente a complexidade e perenidade desse encontro, que diria por sua vez as características e importância de suas leis. Uma unidade "universo", é muito diferente de uma unidade "pessoa": as contradições que atuam sobre as duas possuem níveis diversos, e a segunda é muito mais propícia de ser destruída por um evento aleatório. Mais uma vez vemos a importância de estabelecer os estatutos dessas formas/encontros/unidades: a generalidade nesse aspecto pode muito bem levar essa filosofia para uma boa justificativa teórica do pós-modernismo vulgar e reforçar as correntes pós-estruturalistas (que inclusive namoram bastante com muitas categorias althusserianas).
Um exemplo usado por Althusser desse encontro que emana leis, para entrar na polêmica propriamente dita do materialismo histórico, seria o próprio capitalismo:"Em inúmeras
passagens, Marx, e não acontece certamente por acaso, nos explica que o modo de
produção capitalista nasceu do “encontro”
entre o “homem com dinheiro” e o
proletário desprovido de tudo, exceto de sua força de trabalho. “Acontece” que esse
encontro ocorreu e “pegou”, o que significa que não foi desfeito tão logo realizado,
senão que durou e se tornou um fato consumado; o fato consumado desse
encontro provoca relações estáveis e uma necessidade cujo estudo fornece “leis”,
tendenciais, evidentemente: as leis do desenvolvimento do modo de produção
capitalista (lei do valor, lei da troca, lei das crises cíclicas, lei da crise e da decomposição do
modo de produção capitalista, lei de passagem – transição – ao modo de produção
socialista sob as leis da luta de classes etc.) [...] Podemos avançar ainda e
supor que o encontro
aconteceu na história numerosas vezes antes de sua “pega” ocidental,
mas, por falta de um elemento
ou da disposição dos elementos, não “pegou”, então. Servem de prova os
Estados italianos do vale do rio Pó nos séculos XIII e XIV, nos quais havia
evidentemente homens com dinheiro, tecnologia e energia (máquinas movidas pela força
hidráulica do rio) e mão-de-obra (os artesãos desempregados), e, no entanto, o
fenômeno não “pegou”. Faltou, sem dúvida (talvez esta seja uma hipótese), aquilo que
Maquiavel buscava desesperadamente sob a forma de um apelo para um Estado
nacional, isto é, um mercado interior adequado
para absorver a possível produção."
Mas novamente, mesmo considerando uma unidade durável, esse encontro não recebe o estatuto necessário. Os trabalhadores e burgueses parecem se encontrar assim como duas moléculas numa solução - sem levar em conta uma fixação num terreno histórico conjuntural de alternativas mais ou menos prováveis. "Elementos flutuantes
que se encontram", diz. “Esses elementos não existem na
história para que exista um modo de produção" (sic, qual seria a possibilidade deles não resultarem em um modo de produção qualquer? qual queria a probabilidade daquelas formações sociais desaparecem naquele momento histórico de transição, caso não concluíssem nenhum modo de produção? muito pequena, arriscariamos),
"eles existem em estado “flutuante” antes de
sua “acumulação” e “combinação”, sendo cada um o produto de sua própria
história e não o produto teleológico dos outros ou da história deles.”. Ao lançar fora a garantia absoluta de uma alternativa, de uma forma, segundo uma razão e finalidade transcendente, exterior e necessária à história que não existe de fato, Althusser acaba lançando fora também toda e qualquer garantia, ou seja, as probabilidades e leis que emanam da hierarquia de formas cujos elementos aleatórios estão relacionados. O encontro do proletário com burguês, a transição de um modo de produção para um outro, parecem se realizarem no vácuo, só encontrado em locais específicos do universo ou laboratórios científicos. As tendências anteriores são apagadas por completo: são só dois átomos num choque feliz e incontrolável.
Por isso sua recriminação a Marx, na tese
de decadência feudal, por ver o proletariado e burguesia surgindo do
capitalismo (estrutura anterior aos elementos, razão antes do encontro), e não
como elementos que se encontram ao acaso e possibilitam o capitalismo, possui um tom enviesado. Buscando garantir a existência do aleatório, desprende-se da conjuntura. A surpresa existe na história, mas ela seria o fator central da transição de um modo de produção ao outro? Achamos muito arriscado tal afirmação. Essa recriminação a Marx pode muito bem ser transposta na busca marxiana de impor uma finalidade à história em alguns momentos (levada “necessariamente
a ditadura do proletariado”).
Tentando colocar o marxismo sob uma maior influência de sua filosofia do vazio, estranhamente Althusser comenta ao extremo "Se a burguesia, longe de ser o produto contrário ao
regime feudal, fosse seu acabamento e sua culminância, sua
mais alta forma e, por assim dizer, seu aperfeiçoamento?". A contingência aqui, se torna paradoxal: o elemento de desordem é tão contingente que serve à própria ordem que o fundou!
Muitas questões profundas sobre a dialética exigiriam ser continuadas aqui. Mas buscaremos findar nossa contribuição.
Nossa crítica buscou demonstrar que as probabilidades, as tendências mais ou menos duráveis de uma unidade/encontro não negam a permanência da contradição/contingência. Não tira de toda forma existente sua instabilidade radical,
rodeada de abismo (como o contrato de Rousseau que paira no abismo e como diz Mallarmé no poema referido “PORQUE o Abismo Branco se expõe furioso sob uma
inclinação desesperadamente plana d’ asa”). No entanto, é preciso levar em consideração o estatuto e a articulação dessas unidades, que dependendo da diferença podem estar mais suscetíveis a mudanças, surpresas ou não.
Afinal, nosso planeta não pode muito
bem ser destruído, em um período historicamente breve, inclusive pelas bombas humanas como dizia Mao? Isso só afirma que as leis e unidades de agora, podem mudar (a história que é da luta de classes,
desde o surgimento das classes, pode acabar, e se iniciar novas formas de lutas
e leis), como Marx já dizia.
Vale a pena trazer de volta a crítica pós-marxista em relação ao leninismo. Vimos que a dialética marxista, e toda a história das revoluções comunistas, demonstra que são as
circunstâncias e a conjuntura que são a base de qualquer ação política, e estas não se reduzem a aspectos controlados por sujeitos específicos. O
fluxo do movimento de massas se inicia muitas vezes por “coisas pequenas”, “inesperadas”,
“contingentes”, de repente (mudança qualitativa), como um movimento grevista, a
libertação político-militar de uma região etc., várias vezes não controladas diretamente por uma vanguarda, mas que deve ser disputada e apoiada por ela. E essas surpresas eventuais também nãos surgem no vácuo feliz de uma chuva epicurista, de um encontro puramente eventual, pois tem
por trás de si toda uma estrutura e toda uma soma de unidades/efeitos contraditórios que
possibilita a base de sua existência, aqui ou ali. E esse "estourar" não tem nada de
metafísico, mas está na materialidade da vida das massas em sua constante
resistência.
Como também já está presente nas teses... de Marx: somos fruto da nossa educação e das circunstâncias, mas estas também são transformadas por nós, e o educador também precisa ser educado.
Como também já está presente nas teses... de Marx: somos fruto da nossa educação e das circunstâncias, mas estas também são transformadas por nós, e o educador também precisa ser educado.
Esperamos ter colaborado com algo. Acreditamos que a crítica sincera e não dogmática são os passos que indicam a saída da crise do marxismo. Assumir essa crise, assim como a reconstrução constante do marxismo são essenciais para o atual momento.
*****
Althusser começa seu livro com a chuva. Chove – acontece. E não necessariamente nos
lugares que mais precisam, na hora que queremos, acontece. Eis o caráter do
universo, que para nós parece irregular, exatamente por não controlarmos
totalmente suas circunstâncias. A chuva, assim como a natureza, e a vida, que
surgiu nesse planeta (e possivelmente em outros) através de vários “encontros”
e caminhos sinuosos e muitos deles ao puro acaso, tem sua beleza e seu lado “enigmático”,
mas que isso não nos imobilize, na posição de contemplação do absurdo da
existência (tal qual o existencialismo, pequeno burguês, onde o mundo parece
caótico, à maneira dos padres, exatamente por não existir transcendência, por
nada e nenhum Deus garantir de antemão nada, inclusive a valiosa “vida” pequeno burguesa!).
Pois é exatamente na prática que podemos ver os dados serem lançados, o acaso
de novo acontecer ou não – e tomar a decisão, de resistir e lutar, ou ser levado
passivamente pela chuva dos acasos. Porque, para um marxista, não há outra razão de
existir nesse universo infinito a não ter a honra de resistir. Brasileiramente falando: não adianta existir sem ser teimoso, pois
teimosia é o fundamento próprio da existência, como já dizia o ditado popular “quem
não chora não mama”.
Em texto que
reproduzimos aqui no Blog, “a morte é uma exagerada”, encontramos:
“Transformar
o mundo e mudar de vida, como exigiam Marx e Rimbaud, parece muita vezes sem
sentido. Mas há algum sentido em estar parado? Nos seus Provérbios do Inferno,
William Blake garantia: “O que deseja e não age gera pestilência.”
A
guerra dos anjos revoltados contra o poder de Deus é uma guerra perdida. Mas é
um grito contra a adversidade.”
Como escrevia Giambattista de Marino, no seu Satã, “[…] e mesmo
se tombarmos vencidos, ter tentado tão alto feito é ainda um triunfo…”"
Mas, pelo
contrário, a guerra do povo não é uma guerra perdida a priori, e nem seu prazer está nas derrotas! Das derrotas ela
cresce em experiência, de fato, e assim soma sua possibilidade de vitória. Uma vitória não
garantida por uma causa primária, mas historicamente aberta, que em uma mão tem as circunstâncias e na outra
a atuação, a luta – como se é toda a história, diferente da teologia.
Que nossa pequenez frente ao universo não seja mais que um
argumento para criarmos um mundo mais justo, buscar o novo, ao invés de nos
prender a estruturas históricas tomadas como eternas e verdadeiras. Que o encontro que possibilitou o capitalismo nos dê certeza de sua historicidade e nos encha de esperança para construir uma alternativa a ele, que se avizinha, e vingará bem provavelmente. Como o
próprio Althusser comenta ao final do texto: “se não há Sentido da história [ou da existência] (um Fim
que a transcenda, de suas origens até seu término), pode haver sentido na
história, porque este sentido nasce de um encontro efetivo e efetivamente feliz
ou catastrófico, que é, também, sentido.”
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