quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Darwinismo: contexto histórico e marxismo

Reproduzimos aqui o artigo de André Levy publicado originalmente aqui: http://www.omilitante.pcp.pt/pt/300/Ciencia/327/Darwinismo-contexto-hist%C3%B3rico-e-marxismo.htm

No século XIX, na Grã-Bretanha, trava-se uma intensa luta de classes a dois níveis: entre o antigo regime feudal, aliado à igreja anglicana conservadora, e a classe capitalista ascendente; e entre esta classe exploradora e a classe proletária, explorada e oprimida.  
Marx descreve no início de O Capital a espoliação do campesinato, obrigado a deslocar-se para os centros urbanos e a alistar-se na nova classe social, o proletariado, cujo único recurso para sobreviver era vender a sua força de trabalho. As políticas contrárias a um maior apoio social do Estado aos pobres recebiam apoio em trabalhos como os de Thomas Robert Malthus, que entre 1798 e 1826, publicou várias versões do seu tratado Um Ensaio sobre o Princípio da População. Neste postulava que a população humana crescia a uma taxa maior que o crescimento da produção alimentar, originando inevitavelmente, segundo Malthus, a pobreza observada (1) . Seria portanto contra natura o Estado subsidiar os pobres. Ao apoiar a sobrevivência dos mais pobres, o Estado apenas estaria a prolongar condições de competição por recursos limitados e incapazes de sustentar a totalidade de toda a população.  
Um dos primeiros movimentos de reacção às transformações em curso por parte dos alienados do poder foi o movimento cartista, assim designado por ter como plataforma política a Carta do Povo (2) , que exigia mais direitos democráticos. Fundado em 1837, tornou-se nos anos 1840 um movimento político da classe trabalhadora, que veio a dar origem ao primeiro partido político desta classe: a Associação Nacional Cartista (3) . A sua táctica principal desenvolveu-se em torno de três petições apresentadas ao Parlamento, em 1838, 1842, e 1848, cada uma com milhões de assinaturas, e acompanhadas de manifestações massivas, de greves, e alguns levantamento de armas. O Estado reagiu com dureza, prendendo muitos dos seus líderes, alguns dos quais condenados à morte, e transportando outros para a Austrália. A 10 de Abril de 1848, isto é, durante a insurreição de Paris, o movimento cartista preparava-se para apresentar de novo a petição e reunir mais de 150 mil cartistas em Kennington Common. O Governo levou a ameaça a sério, tendo despachado a família real para a Ilha de Wight, recrutado 85 mil polícias no espaço de poucas semanas, mobilizado 7 mil tropas e prendeu antecipadamente vários líderes, tentando por todas as vias evitar que em Londres se repetissem as ocupações de edifícios que tiveram lugar em Paris. O dia acabou por ser pacífico, a petição foi entregue, e, à semelhança das anteriores, rejeitada. O movimento cartista, em grande medida, perdeu o seu vigor depois desse dia. Mas contribuiu para a formação de uma cultura política que veio mais tarde a dar origem a outras forças políticas; e, em 1918, todos os pontos da Carta do Povo, com excepção das eleições anuais, haviam sido instituídos.    

Charles Darwin e a Origem das Espécies    

Foi neste contexto de grande luta de classes que, a 12 de Fevereiro de 1809, nasceu Charles Robert Darwin. A sua família era relativamente abastada, o que permitiu a Darwin uma juventude dedicada aos seus prazeres favoritos: a caça e o coleccionismo. Tal era a preocupação do seu pai pela falta de orientação profissional do filho que o enviou, quando este tinha 16 anos, para a Universidade de Edimburgo e depois para Cambridge, para aí obter a formação mínima para seguir a carreira eclesiástica. Em Cambridge, Darwin fez amizade com alguns docentes que vieram a influenciá-lo profundamente, em particular com o botânico John Henslow e o geólogo Adam Sedgwick.  
Findado o curso, Darwin recebeu a oferta de fazer uma viagem no H. M. S. Beagle. A viagem tinha a missão de precisar a cartografia hidrográfica da América do Sul, uma tarefa cada vez mais importante para o Império «onde nunca se vê o pôr do sol». A viagem durou quase seis anos, e constituiu a experiência mais marcante da vida de Darwin. Ao longo da circum-navegação Darwin recolheu inúmeras observações e espécimes da fauna e flora viva, de fósseis, e da geologia. Nas suas notas de viagem, encontramos também observações sobre as populações humanas, como expressões de revolta contra a forma como os escravos eram tratados no Brasil, e sobre as condições de extrema miséria e fome em que viviam os fueginos, os habitantes das Tierras del Fuego, no sul da Argentina.  
As centenas de espécimes vivos e fósseis que Darwin foi recolhendo iam sendo enviadas para o Museu Britânico. Alguns dos achados eram de tal forma surpreendentes que Darwin foi ganhando reputação enquanto naturalista, ainda durante a sua viagem. O tempo passado a bordo foi dedicado a conversas e discussões, por vezes acérrimas, com Fitzroy, e à leitura. Uma das suas leituras mais marcantes terá sido os Princípios da Geologia de Charles Lyell, onde este avança com a ideia da transformação gradual de formações geológicas, modificações acumuladas ao largo de um longo período de tempo, segundo processos que podemos observar em pequena escala actuando no presente (uniformitarismo). Darwin coleccionava, portanto, não apenas espécimes, mas também notas e ideias da literatura, aproveitando por vezes apenas alguns fragmentos inspiradores. Foi o caso da sua leitura fortuita da obra de Malthus, já depois do seu regresso a Inglaterra.  
Darwin já se vinha convencendo de que as espécies haviam evoluído, e compilado evidências a seu favor, mas consciente do impacto com que seriam recebidas as suas ideias, tinha receio de as publicar. Queria também complementar as evidências com um mecanismo responsável pela transformação das espécies. Parte da inspiração para esse mecanismo proveio de Malthus, em particular da sua descrição de um ambiente onde, sendo os recursos limitados, nem todos os indivíduos seriam capazes de sobreviver. Aliado ao seu contacto (e experiência pessoal) com a modificação e geração de novas variedades de pombos, ovelhas, etc., Darwin postulou um mecanismo análogo à selecção artificial de variedades, que fosse capaz de explicar a adaptação dos organismos e estruturas ao desempenho de uma função. Explicando sumariamente o mecanismo de selecção natural: sendo uma população variável, os indivíduos com características que favorecem a sua sobrevivência e reprodução serão responsáveis pela geração da maioria dos indivíduos da geração seguinte. Se essas características forem herdáveis (embora Darwin desconheçesse os mecanismos da hereditariedade, esta era reconhecida), a prole da geração seguinte será diferente da ancestral e estará mais bem adaptada às condições do meio. Se esta selecção entre indivíduos persistir ao longo de várias gerações, a população irá gradualmente modificando-se e adaptando-se ao meio. Munido deste mecanismo, Darwin tinha já uma rede de teorias capaz de explicar a origem da diversidade e a adaptação orgânica.  
Darwin não foi o primeiro a desenvolver ideias evolutivas (4) , mas tinha sem dúvida uma maior acumulação de evidências e um mecanismo material viável. Em 1844, já havia escrito um longo ensaio com as suas ideias e argumentos. Mas enquanto membro da burguesia, Darwin não queria entrar em conflito, nem com a nobreza e Igreja, nem com os trabalhadores da sua propriedade e paróquia (que poderiam ver na sua obra uma extensão política do malthusianismo – embora, para que seja claro, Darwin apenas colheu inspiração da obra de Malthus, não partilhando das suas posições políticas).   
Só em 1856, devido à pressão de Lyell, Darwin voltou a pegar no seu manuscrito sobre evolução. Mas a eventual publicação foi precipitada pela recepção de uma carta de um jovem naturalista, Alfred Russel Wallace, na qual esboçava ideias muito semelhantes às de Darwin sobre evolução e selecção natural (curiosamente também inspirado após a leitura de Malthus). Lyell e Hooker sugeriram a leitura simultânea de obras de Wallace e Darwin, após o que Darwin publicou a sua obra Sobre a Origem das Espécies. Esta teve um impacto tremendo na comunidade científica e no público em geral, e foi recebida com alguma resistência pelos sectores mais conservadores da comunidade científica e da igreja anglicana. Darwin manteve-se sempre distante do confronto directo, preferindo comunicar por correspondência, e deixando a defesa pública das suas ideias nas mãos de outros, como Hooker e Thomas Henry Huxley, que recebeu a alcunha de «buldogue de Darwin».    

Darwinismo e marxismo    

Com a Origem das Espécies, a ideia de evolução caiu num terreno social fértil e tornou-se num frequente tema de debate, trocas de opiniões e comentários, nem sempre de forma fiel às teses avançadas por Darwin. Foi usado como arma pelos sectores sociais que estavam em luta com o statu quo: tanto foi elogiado pelos intelectuais revolucionários, como aproveitada por sectores da burguesia para justificarem o capitalismo. Engels e Marx elogiaram o contributo científico de Darwin, mas consideraram que as suas ideias não se aplicavam à evolução social do Homem. No funeral de Marx em 1883, Engels proclamou que «tal como Darwin descobriu a lei da evolução na natureza orgânica, assim Marx descobriu a lei da evolução na história humana.»  
Na Origem das Espécies, Darwin evitou estrategicamente desenvolver a evolução da nossa espécie, e só em 1871, quando as ideias de evolução, incluindo a do Homem, haviam sido mais largamente aceites, é que Darwin publica A ascendência do Homem, onde trata marginalmente a evolução social humana. Publicamente, foi Spencer quem se apropriou das ideias darwinianas e as aplicou à evolução social do Homem, combinando-as com ideias teleológicas de progresso (o que é algo de anátema das ideias do próprio Darwin), defendendo que a competição entre seres humanos era uma condição natural e necessária para o progresso social (darwinismo social). A leis da história social humana não eram tema de ambição científica de Darwin. Foi por via de Spencer e outros que as ideias de Darwin foram associadas à justificação do capitalismo, numa falácia lógica de extrapolação de algumas das leis responsáveis pela evolução orgânica para advogar que a competição capitalista reflectia leis naturais.  
Esta apropriação foi tão eficaz que o termo darwinismo passou coloquialmente a servir de equivalente às ideias redutoras de «sobrevivência dos mais aptos», expressão criada por Spencer, e «competição na luta pela sobrevivência». Mas Darwin não atribuiu um papel central à competição – sobretudo como usada no contexto económico – como motor da evolução, mas apenas uma das forças capaz de promover a selecção. Darwin considerou outras interacções, incluindo a cooperação. Em 1902, o anarquista Peter Kropotkine, procurou contrariar esta distorção num texto sobre a importância da cooperação como factor evolutivo. Só em meados do século XX é que a biologia evolutiva desenvolveu uma teoria para explicação de sociedades animais (5).  
Anton Pannekoek, astrónomo e marxista, numa obra de 1909 intitulada Marxismo e Darwinismo (6) demonstrou como o uso do darwinismo para justificar a competição capitalista é contraditório: «Os Socialistas provam que ao contrário do mundo animal, a luta competitiva entre homens não favorece os melhores e mais bem qualificados, mas destrói muitos dos mais fortes e frágeis devido à sua pobreza [ao não possuírem capital e meios de produção], enquanto os ricos, mesmo os fracos e doentes, sobrevivem. […] é a posse de dinheiro que determina quem sobrevive.»  
Mas entre marxistas, estabeleceu-se uma divisão na evolução do Homem: entre a sua evolução biológica, explicada pelo darwinismo, e a evolução das suas relações sociais, explicada pelo marxismo. Porém o ser humano não parou de evoluir biologicamente, nem descartou características e comportamentos sociais de fases pré-históricas. O comportamento social humano é condicionado por uma interacção complexa e dialéctica entre a transformação das relações sociais e materiais, e a sua evolução biológica (7) . A importância de cada um destes processos varia consoante o comportamento, mas não devemos assumir, por exemplo, que transformando as relações económicas da sociedade se irão alterar facilmente os comportamentos individuais, que podem estar condicionados por factores biológicos. Mas alterando as condições sociais (o ambiente), alteram-se também as forças de evolução biológica, que podem resultar em alterações de comportamento social.  
O Homem possui capacidades naturais para a cooperação e para a competição e violência. As condições sociais têm um impacto na expressão de cada uma destas tendências, mas a biologia prevê que haja sempre alguns indivíduos que procurem «furar» os pactos sociais de cooperação. Enquanto marxistas, cabe-nos acompanhar os avanços científicos no estudo da psicologia humana. Por exemplo, em que medida factores biológicos condicionam a tendência para os seres humanos se organizarem socialmente de forma hierárquica é um tema em aberto e objecto de estudo científico, do qual os marxistas não se podem manter alheios.  
Ter em atenção estes estudos, não implica aceitar formas reaccionárias e conservadoras de, por exemplo, determinismo genético, isto é, que o nosso comportamento social está meramente determinado pelos genes e portanto não é sujeito a modificação. A visão que reduz o comportamento social aos genes é necessariamente incompleta (8) . Há obviamente uma grande componente ambiental na determinação do comportamento humano. Não devemos nem cair no extremo de um determinismo inflexível, nem no extremo oposto, de que uma criança nasce como uma tábua rasa. Há certamente diferenças genéticas entre os seres humanos, responsáveis por variação entre os seus potenciais físicos e intelectuais. Mas são depois as condições ambientais, e muito particularmente as sociais, que permitem o desenvolvimento mais ou menos acentuado desse potencial. São as relações sociais que condicionam que facetas naturais do Homem são prevalecentes.    


Notas    
(1) Estas ideias foram então criticadas pela esquerda, mais tarde no contexto português dos meados século XX, por Álvaro Cunhal na Contribuição para  Estudo da Questão Agrária, e continua a ser verdade que a nossa produção agrícola é suficiente para sustentar a população humana: a questão fundamental é a da distribuição destes recursos. Haverá limites à capacidade de produção alimentar, mas até hoje esses limites não foram atingidos nem explicam a fome de vastas camadas da população mundial.  
(2) Em inglês, Chartism e People's Charter.  
(3) Em inglês, National Charter Association.  
(4) Buffon, Lamarck, e Erasmus Darwin (avô de Charles) já haviam formulado teorias evolutivas.  
(5) Dando azo a novas extrapolações falaciosas em relação ao Homem, com a publicação do livro Sociobiologia de Edward O. Wilson, em 1975.  
(6) Disponível online, em inglês, em: http://www.marxists.org/archive/pannekoe/1912/marxism-darwinism.htm  
(7) A interacção destes dois níveis está bem patente na história do uso das vacas domesticadas e na tolerância (genética) à lactose entre culturas humanas.  
(8) Basta pensar no seguinte: o estudo do Genoma Humano revelou que este possui cerca de 20-25 mil genes, enquanto o córtex cerebral humano, centro da cognição, possui 10 mil milhões de neurónios e cerca de 150 triliões de ligações neuronais. É inconcebível que os genes determinem toda a rede neuronal.

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