terça-feira, 28 de agosto de 2012

Notas sobre os aparatos repressivos em nosso país: práticas e legitimação

[Augusto Machado]

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. - Sobre a Violência, de Bertold Brecht



Forças repressivas: sempre do mesmo?

Muitos teóricos da cultura vêem na força, física e moral, a espinha dorsal da civilização. No início, era a guerra de todos contra todos. A instauração de uma força provinda de uma instância coletiva e legítima contra os ímpetos individualistas e destrutivas dos indivíduos é o que garante a continuidade da civilização, da cultura. Só assim, na força repressora e criadora, mantemos distância da barbárie e animalidade, que é nossa “origem” e nossa “natureza” que sempre nos espreita. Por isso a necessidade natural da utilização da força por parte do Estado, o locus privilegiado da civilidade.

Isso quer dizer que lobo do homem presente em todos nós só é barrado por um sistema de força moral, cuja base e “último” recurso é a violência.

Mas essa visão bastante contratualista e liberal condiz pouco com nossa realidade. Um exemplo que contradiz a esse cenário, é que no, século vinte, o aumento astronômico dos investimentos e tecnologias militares nos trouxeram um paradoxo mortal, uma verdadeira mudança qualitativa: a “força”, no caso, física, a violência, que garantiria nossa civilidade em última instância, na verdade, se tornou a maior de todas as suas ameaças. Uma guerra nuclear colocaria em risco até mesmo a sobrevivência de nossa espécie. O elemento puramente bom e controlador se tornou a ameaça destrutiva.

Se a concepção mecânica que apresentamos é ingênua, para dizer o mínimo, do problema da repressão e do uso da força nas nossas sociedades, da mesma maneira é insensato pensar em seguida, baseando-se numa suposta visão marxista, que dentro de formações sociais de classe, a diferença entre forças repressivas são meramente quantitativas, já que todas estão no pilar da manutenção do poder de classe indispensável para a continuidade da reprodução das relações de produção, no nosso caso, capitalista, que seja, relações de exploração com fins de acumulação de capital. Uma visão metafísica baseada na natureza humana é substituída por outra visão generalista muito incompleta. Se, de modo didático, é útil e não menos verdadeiro generalizar o papel das forças repressivas (violência do Estado) em todas as sociedades de classe, insistir nessas afirmações torna-se infrutífero para uma atuação política e historicamente situada.

Essa tese “marxista”, que também é um tipo de reducionismo, pois vê as forças repressivas como um objeto fixo, é semelhante a outra reducionismo cuja teoria marxista foi vítima por muito tempo: a redução do Estado à violência organizada e legítima a favor, unicamente e em todas as circunstâncias, das classe dominante. Ambas reduções são incapazes de lidar com o complexo de determinantes comum a qualquer realidade social; logo incapaz de transformá-las, pois não chegou-se em seu âmago e particulariedade. Se torna mais uma condenação moral, politicamente grave, que impossibilita a ação revolucionária.

O fato é que a visão marxista também vê na força, moral e física, essenciais para a manutenção de um sociedade. Não é que as teorias liberais estejam completamente errôneas. Porém, o marxismo se vale de uma visão histórica e dialética, negando os fatalismo de naturalizações de qualquer tipo.

Se é preciso captar teoricamente, no marxismo, as funções centrais e mais gerais das forças repressivas, isso não significa dizer que estas mesmas apareçam “de modo puro” na realidade. Pelo contrário. As forças repressivas são passíveis de mudanças, contradições, transições, assim como variam de formação, estrutura e tamanho de período um histórico para outro, assim como de um país para o outro etc. Logo as forças repressivas e seus aparatos tem particularidades, em constante mudança.

Entendendo essa forma peculiar e histórica que as forças repressivas aparecem nas formações sociais, através de seus aparatos, é possível analisar concretamente uma conjuntura e traçar panoramas de desenvolvimento das contradições.


Forças repressivas tupiniquins: ontem e hoje

Sem entrar em detalhes na estrutura estatal e das relações de produção que foram características de nossa nação, e se focando mais nas corporações policiais e forças armadas, é visível notar que o histórico das forças repressivas aqui no Brasil é um tema sombrio. O processo de colonização e depois de modernização conservadora e oprimida pelo imperialismo, primeiro inglês depois norte-americano, deu o tom de um Estado genocída dos povos nativos, dos escravos e dos pobres. Nosso “evento histórico” recente mais reacionário nos deixou marcas ainda visíveis que impactam fortemente na estrutura ainda extremamente autoritária e com traços fascistas das forças repressivas: a ditadura militar iniciada em 64 e sua dissolução parcial e passiva. A violência policial, as condições de nosso sistema carcerário, a estrutural corrupção e constante uso da tortura[1] nos aparatos repressivos, sejam estatais, ou “privados”, como é comum no campo, tem índices alarmantes e são uma das características principais do capitalismo salvagem de clima tropical. 

Nesse contexto, é de se deduzir, com toda a certeza, de que a cultura e instituições democráticas passam longe daqui. Pensar em outra formação social capitalista, onde o tamanho e modelo do aparato repressivo é muito menor e menos brutal, é quase impossível para muitos. Um exemplo é falar da polêmica sobre a reivindicação de vários movimentos pelo fim da PM, corporação específica das forças repressivas de nosso país: proposta por vezes nem levada em consideração. A recepção dos relatórios da ONU desse ano sobre o Brasil em relação à violência policial alarmante, utilização sistemática de tortura etc. são tomadas como “fenômenos inevitáveis”, ou mesmo, de ações isoladas praticadas por "maus policiais".

Um artigo de julho do filósofo da USP Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo, com o título “Pela extinção da PM” causou alvoroço e confusão, para não dizer ódio de muitos leitores. O artigo se baseava numa proposta do Conselho de Direitos Humanos da ONU desse ano que indicava a extinção da PM no Brasil. Na justificação está a postura autoritária da PM e sua descabida extensão e atuação na sociedade brasileira. Longe de servir à comunidade, age contra civis como se fossem inimigos externos[2].

Para nós a função que beira à guerra civil, esse estado de sítio constante, entre os aparatos repressivos e as camadas sejam pauperizadas em luta por melhores condições de vida, sejam já criminalizadas, é tão essencial para a continuidade de nossa formação social que chega a ser uma identidade. Estamos “acostumados”, pois crescemos vendo nos noticiários, ou sentindo em nossas peles, os mais diversos abusos dos aparatos repressivos contra a população. Logo tal proposta parece-nos irracional, utópica, impossível[3]: sem o Caveirão, paladino que combate os vagabundos a favor dos cidadãos de bens, como o filme de sucesso Tropa de Elite (2007) nos mostrou, estaríamos perdidos. Os culpados de tudo isso seriam aqueles que insistem em desrespeitar as leis e incitir, infelizmente, a fera, que no fundo são bons homens com coragem, disciplina e senso de sacrifício, mas precisa espancar, torturar e matar a favor do bem de todos.

Sem dúvida essa "identidade nacional" é híbrida, de traços não unitários, com vários níveis, variando a classe, a região do país etc.: isso tudo ameaça ou fortalece a legitimidade e a confinança das práticas e estrutura autoritária dos aparatos. No próprio artigo de Safatle é citada uma pesquisa do IPEA que demonstrou que a maior parte da população não confia ou confia pouco na PM. Mas, um outro dado demonstra o quão contraditória é a legitimação, o que torna o quadro mais problemático. Em recente pesquisa, realizada pelo NEV da USP, demonstrou-se que em 2010, 47,5% dos entrevistados concordam totalmente, em parte ou discordam apenas em parte com a prática da tortura por policiais para obtenção de "provas". Em 1999, eram 71,2% dos brasileiros totalmente contrários à tortura e 28,8% concordavam totalmente, em parte ou discordavam em partes.

Pode-se perceber com isso uma mescla de legitimação, normalmente provinda pelo combate à criminalidade, e outra de deslegitimação, por ações de caráter anti-popular, autoritário, corrupto etc. Mais a frente veremos que, sob o manto de segurança pública, o Estado e seus aparatos pretendem dissimular a função política das forças repressivas, de manutenção das classes e opressão a qualquer movimento contra-hegemônico.

A hegemonia das classes dominantes consegue em grande medida cooptar, apesar de maneira incompleta, a visão das classes dominandas. Por isso não é tão cabal o rechaço à foças repressivas de contornos extremamente autoritários que vivemos. Se há rechaço, é fragmentado, com misturas de muitos elementos contraditórios. Mesmo sendo a vítima da violência policial, em seu caráter mais político, a parcela significativa da população não age de maneira ativa sobre opinião pública, que é moldada segundo os interesses dominantes dos meios de comunicação, das escolas, igrejas etc. Pelo contrário, é refém das constantes campanhas de legitimação da brutalidade que nunca deixou nosso país. Não é por menos, porque, a falta de legitimação das forças repressivas do Estado, é uma profunda deslegitimação do próprio Estado, expressão de um modo de produção, e das classes que estão no seu poder.


Tempos de (mais) barbárie se aproximam?

A lógica e ofensiva conservadora de hoje, necessárias para um capital e imperialismo em crise estrutural, inaugurou uma era não muito diferente dos outros tempos de barbárie que já vivemos, aliás, em alguns aspectos aprofundou-a. O Brasil nos últimos anos tem vivido uma escalada de violência policial mostruosa, com novas tecnologias e práticas de repressão, somadas a velhas práticas e funções. As práticas de limpeza social na grande São Paulo, por exemplo, nos últimos meses e semanas demonstram essa escalada: incêndios "misteriosos" em favelas, reintegraçõs de posse que mais parecem cenas de guerra, mortes de civis diárias ou semanais etc.

A proximidade dos grandes eventos que o país sediará sem dúvida vem agudizando as contradições urbanas, e indiretamente no campo, e pede do Estado um aparato cada vez mais gigantesco de repressão[4]

O argumento do Estado e da opinião pública moldada pela mídia corporativista é que o aumento das forças repressivas (ou melhor, segundo eles, de "segurança pública") diminui proporcionalmente a criminalidade e as ameaças à ordem pública, qualquer que sejam: do tráfico aos movimentos e manifestações políticas. Um lema cínico que normalmente justifica tal política, de uso e abuso da repressão como única solução para os problemas sócio-econômicos, políticos e culturais, e que iguala a criminalidade ao protesto político, é bem conhecido: "quem não deve não teme". 

Os investimentos públicos em “infra-estrutura” das forças repressivas são enormes. O aumento de agentes sociais envolvidos diretamente com aparatos repressivos é visível, assim as aproximações entre figuras desses aparatos e as esferas do poder, o que torna um fator importante para o aumento da legitimação. As grandes cidades ganham ares de Big Brother com monitoramento de ruas e avenidas 24h. Práticas de espionagem e infiltração em movimentos civis, típicos da ditadura, continuam frequentes. Novamente entramos num paradoxo que os liberais não gostam de assumir: o Estado a la 1984 não seria característica dos “totalitarismos”? E novamente vemos implicitamente o cinismo do pensamento conservador de hoje quando se responde nesta linha de raciocínio: para garantir nossas liberdades individuais, teremos que aplicar um regime de segurança, vigilância e planejamento máximo. A natureza de classe se explicita aqui: é totalitário o que ameaça a propriedade, mas o que a protege, independente dos meios, é justa, democrática e de acordo com o estado natural das coisas.

O estado ideológico da opinião pública, como dito, vê as forças armadas e seus abusos mais cruéis com um fatalismo cínico (“infelizmente tem que ser assim”), além de apagar as funções políticas do núcleo armado do Estado. É interessante observar como a análise das causas das “desordens públicas”, se limitam à esfera das escolhas individuais, voluntárias. Um modo de operar típico da mídia e do Estado é desmembrar a realidade no sentido de apresentá-las sem contexto, sem relação. Recente relatório da ONU demonstra que somos, para além de uma "potência econômica", o 4º país mais injusto da América Latina. No campo temos uma situação calamitosa de uma reforma agrária que nunca começou e se firmou. Na cidade, crescentes problemas urbanos com uma imensa população sem moradia, renda mínima e serviços básicos. Tudo isso são fatos que não se relacionam[5], segundo o discurso hegemônico, com a criminalidade, a violência ou os constantes protestos sociais, ou seja, a dita ameaça à ordem pública. Uma vida indigna não obriga as pessoas, ou pelo menos amplia as possibilidades, por desespero, de se envolverem com a criminalidade. Ou, de uma forma bem diferente, lutar e querer o poder, como única maneira de mudar sua situação.

Obviamente que essa incapacidade de resolução das principais contradições de nossa sociedade não é uma escolha aleatória, ou uma "ignorância", mas um necessidade objetiva das classes no poder. A única via para o status quo, que aqui se mostra como a repressão cada vez ampliada, eficiente e profunda, na realidade é somente uma das vias possíveis no desenvolvimento histórico de nosso país, mas somente se levarmos em consideração a possibilidade de outra formação social, outra forma de Estado, outra forma de sociedade. Ou seja, levarmos em consideração a possibilidade de uma revolução, que abale as estruturas sociais vigentes, responsáveis pela reprodução de práticas e instituições cada vez mais decandentes.

Os tempos são catastróficos não só pela realidade que é brutal, mas também pela estrutura ideológica cínica o suficiente para aceitá-la. A legitimação integral das ações das forças repressivas, que carregam vestígios de uma herança muito sombria, em nosso país, indicam que essa estrutura está longe de ser minimamente democrática. É a barbárie com vestes liberais, de um Estado democrático de direito onde os fins de conservação e ordem estão acima dos limites quaisquer dos meios.






[1] ONU cobra do Brasil política de prevenção a torturas http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5836700-EI306,00-ONU+cobra+do+Brasil+politica+de+prevencao+a+torturas.html

[2] Polícia Militar de São Paulo mata mais que a polícia dos EUA. “Em cinco anos, a PM do Estado de São Paulo matou quase nove vezes mais do que a polícia norte-americana.” http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1123818-policia-militar-de-sao-paulo-mata-mais-que-a-policia-dos-eua.shtml

[3] Em um vídeo do youtube, vemos um debate num telejornal sobre a proposta da ONU de extinção da PM brasileira. Apesar de apontar os interesses imperialistas da ONU sem nomeá-los, um debatedor pede sim pela extinção da ONU. Para ele é impensável um aparato de segurança pública menos genocida que o nosso. Aliás, os inimigos do crime organizado são também genocidas. É uma guerra inevitável. http://www.youtube.com/watch?v=VcVGUCc-WVU
O vídeo demonstra as especificidades da opinião pública sobre o tema. O crime organizado é visto fora do contexto desigual de nossa nação, vira ação de sujeitos “maus”. Assim como o papel das forças repressivas é visto como atuante somente para o crime organizado, e não contra todo o povo, para a manutenção de um regime de poder de classe. O papel político da repressão é apagado e só fica o lado técnico, jurídico. Logo, parece mesmo ser irreal acabar com uma função técnica, neutra e para o bem comum.

[4] Só no estado da Bahia serão 200 milhões investidos nas forças repressivas, incluindo criação de centros de comando, como em várias capitais sedes, que integra as polícias com o exército, prontas para atuar no estado de sítio que será a Copa e a Olimpíadas aqui. Será que esse mesmo aparato fortalecido que assassinará covardemente trabalhadores, como foi o caso da África do Sul, também recente sede da Copa? Infelizmente, essa é uma forte possibilidade http://www2.forumseguranca.org.br/node/31237

[5] O pensamento liberal das classes dominantes em nosso país já colocou menos centralidade na repressão e relacionou melhor, mesmo que de maneira distorcida e moralista, a “desigualdade social” e os índices de “ameaça a ordem pública”. O educacionismo fundado por Rui Barbosa com seu lema "Escolas cheias, cadeias vazias" é um exemplo. Difícil achar hoje no pensamento dominante alguém que secundarize a ampliação do aparato repressivo, pelo menos para deixá-lo no banco de espera. A burguesia perdeu sua própria veia utópica.

O pesquisador Loic Wacquant de maneira certeira chega a falar que investimento em aparato repressivo é uma espécie de política social para os pobres no chamado neoliberalismo, o que conceitua de Estado penal: os déficts urbanos, de emprego e de serviços básicos são tão grandes, que é mais fácil para o capital se utilizar ideologicamente da individualização dos problemas e fortalecer a repressão para a manutenção da ordem capitalista, que solucioná-los. O ganho é duplo: mantenho o dinheiro público fora das esferas de seguridade social para os trabalhadores ao mesmo tempo que gero uma forte disciplina econômica e política necessárias a altos taxas de acumulação.

2 comentários:

  1. Objetivamente, e a greve dos policiais?
    A Polícia (corporação), no capitalismo, está para a burguesia; mas, e os policiais? Estes são fração da classe trabalhadora? São agentes da reação? São o escudo e a espada da burguesia?
    Não tenho acordo com discursos que "proletarizam" os policiais, apesar da inegável condição econômica. Mas, e quando indivíduos policiais passam a atuar nos movimentos de massas?

    ResponderExcluir
  2. As disputas dos funcionários dos aparatos repressivos e dos burocratas do Estado por maiores fatias do bolo não faz parte do movimento proletário, não é seu dever organizá-los ou apoiá-los. Esses agentes improdutivos estão politicamente no lado oposto das classes trabalhadoras, mesmo eles sendo assalariados, com dinâmica de trabalho mais ou menos "precarizada" etc.

    Um movimento, por ser de massas, não indica, por si só, posição revolucionária. Usando um exemplo limite, o nazi-fascismo é um movimento de massa, mobiliza população "pobre"... Nem por isso não deve representar um inimigo.

    ResponderExcluir