Reproduzimos abaixo a intervenção do pesquisador Décio Saes no III Seminário Internacional da revista Margem Esquerda (2009), na mesa Educação e Socialismo.
A quem interessa, e o que significa, a universalização da
educação escolar no capitalismo? Qual será o papel da educação
escolar no socialismo? Que "educação" devemos reivindicar? Vejamos a seguir a palestra. Os subtítulos em
itálico não fazem parte da palestra, são apenas índices de
assuntos para organizar de maneira mais didática a exposição.
Décio Saes: Bem, eu vou fazer uma
breve intervenção sobre o possível papel,desempenhado pela
educação desempenhado pela educação escolar numa sociedade
socialista. E, para tanto, vou contrastar esse papel pelo papel
desempenhado pela educação escolar na sociedade capitalista.
A centralidade da
ideologia educacionista hoje e seu descompasso com as reais
necessidades sociais
O grande paradoxo
educacional do capitalismo está em que de um lado a ideologia
escolar tem uma presença bastante ativa na vida social, e de outro
lado escolar tem reduzida importância para boa parte dos grupos
sociais característicos da sociedade capitalista. Nos anos 70, a
escola foi alvo de ataques partidos da intelectualidade de tendência
anarquista, ou anarco-liberal. Por exemplo, o mais conspícuo desse
tipo de ataque se encontra na obra de Ivan Illich. Contudo esses
ataques não conquistaram o apoio de nenhum grupo social fundamental,
nem o empresariado, nem os trabalhadores manuais, nem a classe média.
E por isso a ideologia escolar continua a ter presença ativa na vida
social e ampla difusão na mídia, onde se banalizou nas últimas
décadas a abordagem de questões cruciais da educação escolar como
vestibular, supletivo, eja, etc etc. E é importante pautar que em
plena era das políticas estatais de orientação neoliberal, o
argumento da importância da educação escolar para o
desenvolvimento da sociedade tende a ser acionado de um modo
particulamente intenso para explicar os fracassos registrados em
outros domínios da política estatal, como o crescimento econômico,
o emprego, a distribuição de renda, saúde etc. No contexto do
neoliberalismo as carências da educação escolar podem ser
taticamente eleitas pelos setores que dirigem o estado, como fator
que explica todo o fracasso da política neoliberal. Nesse caso
extremo, então, também se evidencia ainda que de um modo indireto,
negativo, a importância da ideologia escolar dentro da sociedade
atual. Mas como eu disse antes, o grande paradoxo educacional da
sociedade capitalista está em que a ideologia escolar se mostra
resistente e operante num contexto histórico em que grupos sociais
fundamentais da sociedade capitalista relativizam, pra dizer o
mínimo, a importância escolar para sua própria reprodução
material e social.
Educação escolar
no capitalismo e suas distorções, segundo as principais classes e
grupos sociais
Pesquisas empíricas
com famílias de empresários revelam, por exemplo, que os pais
empresários projetam para seus filhos basicamente uma educação no
canteiro de obras, isto é, dentro da empresa familiar; atribuem à
educação tida nos níveis médio e superior um caráter
subsidiário, secundário, e por isso aceitam, ou mesmo chegam a
preferir, o ensino superior privado, onde os seus filhos poderão
desenvolver uma rede de relações sociais que serão úteis na vida
empresarial.
Já os trabalhadores
manuais sabem que uma instrução rudimentar, isto é, ler e
escrever, contar, é importante pro acesso dos seus filhos ao mercado
de trabalho, ou mesmo emprego informal. Porém pressionados pelos
custos indiretos da escolarização, que são elevados pra eles, os
membros desse grupo social tendem a relativizar a importância da
conclusão do ensino fundamental e tendem a se conduzir de um modo
fatalista quando seus filhos de doze treze ou quatorze anos revelam a
disposição de desempenhar algum trabalho informal ou eventual. Como
o empresariado, os trabalhadores manuais também valorizam uma
educação no canteiro de obras, uma educação extraescolar, até
por saberem, senão intuírem, que o trabalhador com formação
profissional ampla só é requerido por uma parcelo muita reduzida do
setor empresarial, e que o que se requer da maioria dos trabalhadores
é capacidade adaptativa de passar rapidamente, no canteiro de obras,
de uma tarefa limitada para outra tarefa limitada.
Na verdade, a classe
média é o grupo social que investe proporcionalmente mais esforços
e mais recursos materiais e financeiros em educação escolar. E isso
ocorre porque a classe média é o único grupo social cuja
trajetória socioprofissional depende estreitamente da trajetória
escolar. Se os pais de classe média quiserem reproduzir no tempo
histórico sua situação social, através dos filhos, se eles
quiserem manter os seus filhos alocados nos postos não-manuais, ou
mais especificamente intelectuais da divisão capitalista do
trabalho, eles deverão fazer com que seus filhos tenham acesso aos
conhecimentos científicos e os elementos culturais propiciados pela
educação escolar ao longo dos três níveis de ensino –
fundamental, médio, superior. Na verdade o desempenho de um trabalho
não manual, isto é, uma atividade mental de caráter reiterativo,
não inovador, ou mais especificamente de um trabalho intelectual,
isto é uma atividade mental com caráter inovador ou criador, exige
conhecimentos teóricos, elementos culturais, que a escola ministra
de um modo organizado, sistemático, planejado. Daí o alto
comprometimento da classe media com a formação escolar. Isso
explica que as aspirações educacionais da classe média sejam
sempre crescentes. Esse grupo social reivindicou sucessivamente pros
seus filhos a chance de completar o ensino médio, o ensino superior
de graduação, e finalmente, mais recente, o ensino superior de
pós-graduação. A agregada pressão educacional exercida por um
setor minoritário das classes trabalhadoras, um setor que teve
condições de colocar a situação da classe média como um ideal e
como exemplo, a pressão da classe média por uma ampliação da
oferta de vagas no ensino superior acaba levando a diplomação de um
número muito maior de profissionais de nível superior que pode ser
absorvido pelo Estado e pelo mercado. As expectativas
socioprofissionais da classe média fazem portanto com que o sistema
educacional dos países capitalistas tenda regularmente à produção
da sobre qualificação. Esse fenômeno que resulta da pressão
educacional da classe média e não de qualquer intenção do
empresariado acaba, no entanto, sendo absorvido pelo sistema
capitalista sob a forma de degradação dos diplomas de ensino
superior e sob a forma de rebaixamento de seu valor através da
inserção dos seus portadores em níveis ocupacionais anteriormente
inferiores ao níveis desses diplomas.
Educação escolar
no socialismo
Falemos agora da
educação escolar no socialismo contrastando com a situação da
educação escolar no capitalismo. No socialismo terá, obviamente,
muitas tarefas a cumprir no terreno geral da educação das massas.
Mas no terreno específico da educação escolar, ele deverá
reverter radicalmente o quadro legado pela sociedade capitalista. E
reverter esse quadro significa antes de mais nada superar
historicamente a perspectiva de classe média predominante na
moldagem do sistema escolar capitalista. Aqui eu empreguei a
expressão superação histórica, ao invés de destruição, da
superação, movimento transformador, que implica ao mesmo tempo
conservação e destruição. Ora a superação histórica do sistema
escolar capitalista moldado pelas expectativas e aspirações da
classe média implica, em primeiro lugar, a conservação por
extensão ao conjunto da sociedade, da inclinação positiva da
classe média a conquista do saber historicamente acumulado e do
conhecimento científico já consolidado, independentemente da época
histórica ou da sociedade de classe em que ele foi gerado. Na
verdade, se trata de conservar também o patrimônio cultural da
humanidade, conquistar aqueles produtos culturais que se mostram ao
quadro social em que lhes foram gerados, do Código de Hamurabi à
dramaturgia de Shakespeare. Cabe, portanto, ao socialismo,
proletarizar a educação escolar. Essa proletarização da educação
escolar implica não propriamente substituir os conteúdos
propiciados pelo estoque de conhecimento cientifico e de cultura
historicamente acumulado por conteúdos propiciados por uma suposta
cultura popular alternativa à cultura de todas as classes dominantes
do passado. Na verdade essa proletarização da educação implica,
isso sim, fazer com que o conjunto da sociedade, isto é, as massas
trabalhadoras tenham de fato acesso à ciência, à cultura rompendo
assim o monopólio exercido pela classe média sobre ambos.
Mas
superação histórica do sistema escolar capitalista nas sociedades
capitalistas implica em segundo lugar a ruptura com a ideologia
pequeno burguesa do conhecimento que preside nas sociedades
capitalistas na transmissão de saber cientifico e da cultura
historicamente acumulados à clientela escolar seja qual for a origem
dessa. Mas em que consiste essa ideologia burguesa do
conhecimento? Ela consiste em tratar toda prática teórica numa
perspectiva teoricista, elitista, o que resulta em negar os vínculos
existentes, em vários níveis, entre a elaboração teórica e a
prática social. Primeiro vínculo, a conexão que deve se aprofundar
no socialismo, mas que já existe em sociedades historicamente
anteriores, entre pesquisa científica e prática social, na própria
elaboração do conhecimento cientifico. Isto é, são questões
práticas que levam ao desenvolvimento da teoria, que pode ser
exemplificado através na conexão entre agricultura antiga e
surgimento da astronomia. Segundo vínculo, o papel central da
abordagem de exemplos práticos no processo de transmissão de um
conhecimento teórico, papel este que se manifesta, seja exibindo as
raízes práticas e sociais das grandes descobertas científicas e
das elaborações culturais, seja apresentando as implicações
práticas e sociais dessas descobertas e dessas elaborações.
Terceiro vínculo, a busca expressão por parte do educador da
utilidade social de conhecimento científicos e de construções
culturais. Ou seja o fato de que a teoria tende ter alguma aplicação
prática, senão ela não é teoria de nada.
Obrigatoriedade da
educação escolar no capitalismo e no socialismo
Portanto a educação
escolar escolar socialista deve romper com o teoricismo pequeno
burguês da educação escolar capitalista e tratar em termos
dialéticos a relações entre conhecimento e prática social,
atraindo por essa via as massas trabalhadoras pra dinâmica da vida
escolar. Mas o socialismo também deve promover a superação
histórica do padrão de oferta de educação escolar projetado pela
classe média dentro da sociedade capitalista. Nós sabemos que
praticamente todas as sociedades capitalistas, a Constituição
prescreve a obrigatoriedade do ensino fundamental, obrigatoriedade
que vincula politicamente o Estado, vincula civilmente os pais e até
vincula do ponto de vista moral as próprias crianças. Pois bem,
parece-me que a classe média na sua luta ideologia do mito da Escola
Única e pela emergência do modelo institucional que permite
operação desse mito, isto é, o ensino publico gratuito e
obrigatório, torna-se o principal sustentador social do princípio
da obrigatoriedade da educação escolar elementar. Mas para
concretizar esse princípio, induzir os seus filhos a integralizar a
educação fundamental, seria também preciso que a maioria da
sociedade, isto é os trabalhadores manuais, assumissem também esse
compromisso. Ocorre porém que os trabalhadores manuais não se
dispõem a colocar o preceito constitucional da obrigatoriedade da
escolarização elementar acima das necessidades imediatas do
processo de reprodução material e das suas famílias. Os
trabalhadores manuais são sempre pressionados pelos altos custos
indiretos da escolarização, são sempre desestimulados pela
sensação de que essa escola não foi feita para eles e para seus
filhos, e sim para os outros, isto é, para um aluno ideal com perfil
de classe média. E o resultado dessa situação é que, para a
maioria da sociedade no capitalismo, a obrigatoriedade do ensino
elementar não se cumpre e é ilusória por ser inviabilizada pela
alta evasão escolar e pela trajetória escolas intermitente das
crianças pobres.
Pois bem, caberá ao
Estado socialista fazer com que a obrigatoriedade da educação
elementar deixe de ser uma ilusão como no capitalismo e se
transforme numa realidade. Também faz parte do projeto socialista, o
incentivo à educação não escolar, a ser implementado em vários
domínios da vida social como as fabricas, os campos, os escritórios
os partidos políticos etc. Porém o estado socialista não pode
contar apenas com essa explosão educacional nas bases da sociedade
socialista. O aparelho de estado deve, independentemente dessa
explosão educacional ocorrer, e ela pode não ocorrer, pelo menos em
curto prazo, concretizar a obrigatoriedade da educação escolar de
base.
Mas qual é o sentido
da obrigatoriedade da educação escolar na sociedade socialista? Ela
não visa mais realizar aqueles objetivos prescritos por
constituições ou leis orgânicas da educação dos países
capitalistas, vale dizer: preparar os indivíduos pro trabalho, isto
é, qualificar minimamente a mão de obra para fim de submetê-la ao
poder do Capital, nem preparar aos indivíduos pro exercício da
cidadania definida em registro liberal, isto é, conversão dos
indivíduos em seres politicamente passivos e apáticos que de 4 em 4
anos participam do chamado plebiscito eleitoral. No socialismo, a
obrigatoriedade da educação escolar visa num plano mais geral,
concretizar um objetivo de longo prazo relacionado com a meta da
construção de uma sociedade comunista, ou seja, criar de modo
organizado e sistemático, isto é, de modo não espontâneo, as
condições intelectuais e culturais mínimas necessárias ao pleno
desenvolvimento das múltiplas potencialidades individuais e a
superação das estratégias capitalistas de afunilamento e de
unidimensionalisação da formação dos indivíduos, e de modo mais
imediato transmitir as massas os conhecimentos científicos, a
cultura e a formação política absolutamente indispensáveis para
que os trabalhadores possam assumir de fato, bem além de um
conselhismo meramente formal, a iniciativa na gestão do aparelho
econômico, aparelho de produção e distribuição, e para que os
trabalhadores possam participar de fato da gestão do estado
reduzindo, embora não eliminando, os papéis e prerrogativas da
burocracia. Ou seja, a obrigatoriedade da educação escolar de base
visa, no socialismo, em termos imediatos a construção de um
aparelho econômico efetivamente socializado e a construção de
massas sem as quais o socialismo não se realiza. E no longo prazo o
desenvolvimento integral das potencialidades individuais sem o qual a
meta da passagem ao comunismo não pode se concretizar.
Nesse terreno o
socialistas marxistas não devem ceder a pressão ideológica
exercida por correntes anarquistas, anarco-liberais, que supõe que
uma sociedade pós-capitalista deveria respeitar o direito da criança
a estudar ou a não estudar e assim libertar a criança da opressão
educacional exercida pelo estado. Como dizia o Makarenko, que
visivelmente tinha de coexistir com pedagogos de orientação
anarquista: enquanto não for criado um coletivo de fato socialista,
o educador tem o direito de obrigar os indivíduos a instrução não
pode reverenciar os interesses e as disposições da crianças tais
quais elas se apresentam no ponto de partido do processo educacional.
E isso porque a educação socialista não tem apenas a função
social de desenvolver personalidade individual, mas também a função
histórica de contribuir para a construção de um novo coletivo, o
coletivo socialista. E a esse respeito é preciso abrir um parênteses
e me alce ao nível da análise do estado socialista.
O Estado socialista
O Estado socialista não
deve ser encarado como um estado liberal com o sinal de classe
trocado. No desempenho da sua função histórica de preparar a
desaparição do Estado na história da humanidade, e de suprimir
toda a hierarquização dos grupos socioprofissionais, o Estado
socialista tem de cumprir tarefas de grande envergadura. Sobre a
direção das vanguardas socialistas, o Estado no socialismo deve, no
plano educacional, construir uma educação socialista que esteja no
nível cientifico e cultural em continuidade com a educação das
épocas anteriores, mormente burguesa, e que no nível ideológico
esteja em ruptura com a educação historicamente anteiro, mormente,
a educação burguesa. Esse Estado deve no plano da educação
estender a educação a todos os trabalhadores, inclusive as massas
atrasadas eventualmente ainda envolvidas no pragmatismo e na
indefinição estratégica que a sociedade capitalista impõe aos
trabalhadores no plano educacional. No plano econômico o estado
socialista deve assumir o papel de indutor do desenvolvimento
econômico socialista, o que implica definir os rumos e direção
desse desenvolvimento, modelo de industrialização, modelo agrícola,
política ambiental, modo de inserção na economia mundial etc. E
para tanto ele deve desenvolver uma ação de desenvolvimento
econômico e realizar uma política de investimento em empresas
estatais que vão fixar balizas pro desenvolvimento progressivo num
setor econômico estruturado pela propriedade social de caráter
público porém não estatal, vale dizer, um setor econômico
autogestionário. O crescimento progressivo desse setor é a base do
processo de desestatização também progressivo da sociedade
socialista. É uma ilusão porém pensar que sem o incentivo e
indução do estado socialista o setor autogestionário se
desenvolvera e se fortalecerá; sem o balizamento dessas atividades
desse setor pelo planejamento econômico estatal, a autogestão
levara de fato ao socialismo. Não levará. Há um risco de que a
autogestão leve uma radical corporativização da gestão econômica
das empresas, corporativização essa que poderá abrir o caminho
para restauração do capitalismo.
O Estado socialista é
um Estado gerido por vanguardas socialistas ligadas as massas e
sujeito a um controle exercido pelas massas. Ao mesmo tempo ele é um
Estado desenvolvimentista e intervencionista em nada aparentado a um
estado liberal com sinal de classe trocado. Quer dizer, o item que
ficou faltando e que fica para outra ocasião é na verdade o papel
da educação escolar socialista na criação do novo homem, vale
dizer, na preparação do terreno da construção da sociedade
comunista.
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