sábado, 25 de agosto de 2012

Educação e socialismo, segundo Décio Saes



Reproduzimos abaixo a intervenção do pesquisador Décio Saes no III Seminário Internacional da revista Margem Esquerda (2009), na mesa Educação e Socialismo

A quem interessa, e o que significa, a universalização da educação escolar no capitalismo? Qual será o papel da educação escolar no socialismo? Que "educação" devemos reivindicar? Vejamos a seguir a palestra. Os subtítulos em itálico não fazem parte da palestra, são apenas índices de assuntos para organizar de maneira mais didática a exposição.




Décio Saes: Bem, eu vou fazer uma breve intervenção sobre o possível papel,desempenhado pela educação desempenhado pela educação escolar numa sociedade socialista. E, para tanto, vou contrastar esse papel pelo papel desempenhado pela educação escolar na sociedade capitalista.

A centralidade da ideologia educacionista hoje e seu descompasso com as reais necessidades sociais

O grande paradoxo educacional do capitalismo está em que de um lado a ideologia escolar tem uma presença bastante ativa na vida social, e de outro lado escolar tem reduzida importância para boa parte dos grupos sociais característicos da sociedade capitalista. Nos anos 70, a escola foi alvo de ataques partidos da intelectualidade de tendência anarquista, ou anarco-liberal. Por exemplo, o mais conspícuo desse tipo de ataque se encontra na obra de Ivan Illich. Contudo esses ataques não conquistaram o apoio de nenhum grupo social fundamental, nem o empresariado, nem os trabalhadores manuais, nem a classe média. E por isso a ideologia escolar continua a ter presença ativa na vida social e ampla difusão na mídia, onde se banalizou nas últimas décadas a abordagem de questões cruciais da educação escolar como vestibular, supletivo, eja, etc etc. E é importante pautar que em plena era das políticas estatais de orientação neoliberal, o argumento da importância da educação escolar para o desenvolvimento da sociedade tende a ser acionado de um modo particulamente intenso para explicar os fracassos registrados em outros domínios da política estatal, como o crescimento econômico, o emprego, a distribuição de renda, saúde etc. No contexto do neoliberalismo as carências da educação escolar podem ser taticamente eleitas pelos setores que dirigem o estado, como fator que explica todo o fracasso da política neoliberal. Nesse caso extremo, então, também se evidencia ainda que de um modo indireto, negativo, a importância da ideologia escolar dentro da sociedade atual. Mas como eu disse antes, o grande paradoxo educacional da sociedade capitalista está em que a ideologia escolar se mostra resistente e operante num contexto histórico em que grupos sociais fundamentais da sociedade capitalista relativizam, pra dizer o mínimo, a importância escolar para sua própria reprodução material e social.

Educação escolar no capitalismo e suas distorções, segundo as principais classes e grupos sociais

Pesquisas empíricas com famílias de empresários revelam, por exemplo, que os pais empresários projetam para seus filhos basicamente uma educação no canteiro de obras, isto é, dentro da empresa familiar; atribuem à educação tida nos níveis médio e superior um caráter subsidiário, secundário, e por isso aceitam, ou mesmo chegam a preferir, o ensino superior privado, onde os seus filhos poderão desenvolver uma rede de relações sociais que serão úteis na vida empresarial.

Já os trabalhadores manuais sabem que uma instrução rudimentar, isto é, ler e escrever, contar, é importante pro acesso dos seus filhos ao mercado de trabalho, ou mesmo emprego informal. Porém pressionados pelos custos indiretos da escolarização, que são elevados pra eles, os membros desse grupo social tendem a relativizar a importância da conclusão do ensino fundamental e tendem a se conduzir de um modo fatalista quando seus filhos de doze treze ou quatorze anos revelam a disposição de desempenhar algum trabalho informal ou eventual. Como o empresariado, os trabalhadores manuais também valorizam uma educação no canteiro de obras, uma educação extraescolar, até por saberem, senão intuírem, que o trabalhador com formação profissional ampla só é requerido por uma parcelo muita reduzida do setor empresarial, e que o que se requer da maioria dos trabalhadores é capacidade adaptativa de passar rapidamente, no canteiro de obras, de uma tarefa limitada para outra tarefa limitada.

Na verdade, a classe média é o grupo social que investe proporcionalmente mais esforços e mais recursos materiais e financeiros em educação escolar. E isso ocorre porque a classe média é o único grupo social cuja trajetória socioprofissional depende estreitamente da trajetória escolar. Se os pais de classe média quiserem reproduzir no tempo histórico sua situação social, através dos filhos, se eles quiserem manter os seus filhos alocados nos postos não-manuais, ou mais especificamente intelectuais da divisão capitalista do trabalho, eles deverão fazer com que seus filhos tenham acesso aos conhecimentos científicos e os elementos culturais propiciados pela educação escolar ao longo dos três níveis de ensino – fundamental, médio, superior. Na verdade o desempenho de um trabalho não manual, isto é, uma atividade mental de caráter reiterativo, não inovador, ou mais especificamente de um trabalho intelectual, isto é uma atividade mental com caráter inovador ou criador, exige conhecimentos teóricos, elementos culturais, que a escola ministra de um modo organizado, sistemático, planejado. Daí o alto comprometimento da classe media com a formação escolar. Isso explica que as aspirações educacionais da classe média sejam sempre crescentes. Esse grupo social reivindicou sucessivamente pros seus filhos a chance de completar o ensino médio, o ensino superior de graduação, e finalmente, mais recente, o ensino superior de pós-graduação. A agregada pressão educacional exercida por um setor minoritário das classes trabalhadoras, um setor que teve condições de colocar a situação da classe média como um ideal e como exemplo, a pressão da classe média por uma ampliação da oferta de vagas no ensino superior acaba levando a diplomação de um número muito maior de profissionais de nível superior que pode ser absorvido pelo Estado e pelo mercado. As expectativas socioprofissionais da classe média fazem portanto com que o sistema educacional dos países capitalistas tenda regularmente à produção da sobre qualificação. Esse fenômeno que resulta da pressão educacional da classe média e não de qualquer intenção do empresariado acaba, no entanto, sendo absorvido pelo sistema capitalista sob a forma de degradação dos diplomas de ensino superior e sob a forma de rebaixamento de seu valor através da inserção dos seus portadores em níveis ocupacionais anteriormente inferiores ao níveis desses diplomas.

Educação escolar no socialismo

Falemos agora da educação escolar no socialismo contrastando com a situação da educação escolar no capitalismo. No socialismo terá, obviamente, muitas tarefas a cumprir no terreno geral da educação das massas. Mas no terreno específico da educação escolar, ele deverá reverter radicalmente o quadro legado pela sociedade capitalista. E reverter esse quadro significa antes de mais nada superar historicamente a perspectiva de classe média predominante na moldagem do sistema escolar capitalista. Aqui eu empreguei a expressão superação histórica, ao invés de destruição, da superação, movimento transformador, que implica ao mesmo tempo conservação e destruição. Ora a superação histórica do sistema escolar capitalista moldado pelas expectativas e aspirações da classe média implica, em primeiro lugar, a conservação por extensão ao conjunto da sociedade, da inclinação positiva da classe média a conquista do saber historicamente acumulado e do conhecimento científico já consolidado, independentemente da época histórica ou da sociedade de classe em que ele foi gerado. Na verdade, se trata de conservar também o patrimônio cultural da humanidade, conquistar aqueles produtos culturais que se mostram ao quadro social em que lhes foram gerados, do Código de Hamurabi à dramaturgia de Shakespeare. Cabe, portanto, ao socialismo, proletarizar a educação escolar. Essa proletarização da educação escolar implica não propriamente substituir os conteúdos propiciados pelo estoque de conhecimento cientifico e de cultura historicamente acumulado por conteúdos propiciados por uma suposta cultura popular alternativa à cultura de todas as classes dominantes do passado. Na verdade essa proletarização da educação implica, isso sim, fazer com que o conjunto da sociedade, isto é, as massas trabalhadoras tenham de fato acesso à ciência, à cultura rompendo assim o monopólio exercido pela classe média sobre ambos.

Mas superação histórica do sistema escolar capitalista nas sociedades capitalistas implica em segundo lugar a ruptura com a ideologia pequeno burguesa do conhecimento que preside nas sociedades capitalistas na transmissão de saber cientifico e da cultura historicamente acumulados à clientela escolar seja qual for a origem dessa. Mas em que consiste essa ideologia burguesa do conhecimento? Ela consiste em tratar toda prática teórica numa perspectiva teoricista, elitista, o que resulta em negar os vínculos existentes, em vários níveis, entre a elaboração teórica e a prática social. Primeiro vínculo, a conexão que deve se aprofundar no socialismo, mas que já existe em sociedades historicamente anteriores, entre pesquisa científica e prática social, na própria elaboração do conhecimento cientifico. Isto é, são questões práticas que levam ao desenvolvimento da teoria, que pode ser exemplificado através na conexão entre agricultura antiga e surgimento da astronomia. Segundo vínculo, o papel central da abordagem de exemplos práticos no processo de transmissão de um conhecimento teórico, papel este que se manifesta, seja exibindo as raízes práticas e sociais das grandes descobertas científicas e das elaborações culturais, seja apresentando as implicações práticas e sociais dessas descobertas e dessas elaborações. Terceiro vínculo, a busca expressão por parte do educador da utilidade social de conhecimento científicos e de construções culturais. Ou seja o fato de que a teoria tende ter alguma aplicação prática, senão ela não é teoria de nada.

Obrigatoriedade da educação escolar no capitalismo e no socialismo

Portanto a educação escolar escolar socialista deve romper com o teoricismo pequeno burguês da educação escolar capitalista e tratar em termos dialéticos a relações entre conhecimento e prática social, atraindo por essa via as massas trabalhadoras pra dinâmica da vida escolar. Mas o socialismo também deve promover a superação histórica do padrão de oferta de educação escolar projetado pela classe média dentro da sociedade capitalista. Nós sabemos que praticamente todas as sociedades capitalistas, a Constituição prescreve a obrigatoriedade do ensino fundamental, obrigatoriedade que vincula politicamente o Estado, vincula civilmente os pais e até vincula do ponto de vista moral as próprias crianças. Pois bem, parece-me que a classe média na sua luta ideologia do mito da Escola Única e pela emergência do modelo institucional que permite operação desse mito, isto é, o ensino publico gratuito e obrigatório, torna-se o principal sustentador social do princípio da obrigatoriedade da educação escolar elementar. Mas para concretizar esse princípio, induzir os seus filhos a integralizar a educação fundamental, seria também preciso que a maioria da sociedade, isto é os trabalhadores manuais, assumissem também esse compromisso. Ocorre porém que os trabalhadores manuais não se dispõem a colocar o preceito constitucional da obrigatoriedade da escolarização elementar acima das necessidades imediatas do processo de reprodução material e das suas famílias. Os trabalhadores manuais são sempre pressionados pelos altos custos indiretos da escolarização, são sempre desestimulados pela sensação de que essa escola não foi feita para eles e para seus filhos, e sim para os outros, isto é, para um aluno ideal com perfil de classe média. E o resultado dessa situação é que, para a maioria da sociedade no capitalismo, a obrigatoriedade do ensino elementar não se cumpre e é ilusória por ser inviabilizada pela alta evasão escolar e pela trajetória escolas intermitente das crianças pobres. 

Pois bem, caberá ao Estado socialista fazer com que a obrigatoriedade da educação elementar deixe de ser uma ilusão como no capitalismo e se transforme numa realidade. Também faz parte do projeto socialista, o incentivo à educação não escolar, a ser implementado em vários domínios da vida social como as fabricas, os campos, os escritórios os partidos políticos etc. Porém o estado socialista não pode contar apenas com essa explosão educacional nas bases da sociedade socialista. O aparelho de estado deve, independentemente dessa explosão educacional ocorrer, e ela pode não ocorrer, pelo menos em curto prazo, concretizar a obrigatoriedade da educação escolar de base.

Mas qual é o sentido da obrigatoriedade da educação escolar na sociedade socialista? Ela não visa mais realizar aqueles objetivos prescritos por constituições ou leis orgânicas da educação dos países capitalistas, vale dizer: preparar os indivíduos pro trabalho, isto é, qualificar minimamente a mão de obra para fim de submetê-la ao poder do Capital, nem preparar aos indivíduos pro exercício da cidadania definida em registro liberal, isto é, conversão dos indivíduos em seres politicamente passivos e apáticos que de 4 em 4 anos participam do chamado plebiscito eleitoral. No socialismo, a obrigatoriedade da educação escolar visa num plano mais geral, concretizar um objetivo de longo prazo relacionado com a meta da construção de uma sociedade comunista, ou seja, criar de modo organizado e sistemático, isto é, de modo não espontâneo, as condições intelectuais e culturais mínimas necessárias ao pleno desenvolvimento das múltiplas potencialidades individuais e a superação das estratégias capitalistas de afunilamento e de unidimensionalisação da formação dos indivíduos, e de modo mais imediato transmitir as massas os conhecimentos científicos, a cultura e a formação política absolutamente indispensáveis para que os trabalhadores possam assumir de fato, bem além de um conselhismo meramente formal, a iniciativa na gestão do aparelho econômico, aparelho de produção e distribuição, e para que os trabalhadores possam participar de fato da gestão do estado reduzindo, embora não eliminando, os papéis e prerrogativas da burocracia. Ou seja, a obrigatoriedade da educação escolar de base visa, no socialismo, em termos imediatos a construção de um aparelho econômico efetivamente socializado e a construção de massas sem as quais o socialismo não se realiza. E no longo prazo o desenvolvimento integral das potencialidades individuais sem o qual a meta da passagem ao comunismo não pode se concretizar.

Nesse terreno o socialistas marxistas não devem ceder a pressão ideológica exercida por correntes anarquistas, anarco-liberais, que supõe que uma sociedade pós-capitalista deveria respeitar o direito da criança a estudar ou a não estudar e assim libertar a criança da opressão educacional exercida pelo estado. Como dizia o Makarenko, que visivelmente tinha de coexistir com pedagogos de orientação anarquista: enquanto não for criado um coletivo de fato socialista, o educador tem o direito de obrigar os indivíduos a instrução não pode reverenciar os interesses e as disposições da crianças tais quais elas se apresentam no ponto de partido do processo educacional. E isso porque a educação socialista não tem apenas a função social de desenvolver personalidade individual, mas também a função histórica de contribuir para a construção de um novo coletivo, o coletivo socialista. E a esse respeito é preciso abrir um parênteses e me alce ao nível da análise do estado socialista.

O Estado socialista

O Estado socialista não deve ser encarado como um estado liberal com o sinal de classe trocado. No desempenho da sua função histórica de preparar a desaparição do Estado na história da humanidade, e de suprimir toda a hierarquização dos grupos socioprofissionais, o Estado socialista tem de cumprir tarefas de grande envergadura. Sobre a direção das vanguardas socialistas, o Estado no socialismo deve, no plano educacional, construir uma educação socialista que esteja no nível cientifico e cultural em continuidade com a educação das épocas anteriores, mormente burguesa, e que no nível ideológico esteja em ruptura com a educação historicamente anteiro, mormente, a educação burguesa. Esse Estado deve no plano da educação estender a educação a todos os trabalhadores, inclusive as massas atrasadas eventualmente ainda envolvidas no pragmatismo e na indefinição estratégica que a sociedade capitalista impõe aos trabalhadores no plano educacional. No plano econômico o estado socialista deve assumir o papel de indutor do desenvolvimento econômico socialista, o que implica definir os rumos e direção desse desenvolvimento, modelo de industrialização, modelo agrícola, política ambiental, modo de inserção na economia mundial etc. E para tanto ele deve desenvolver uma ação de desenvolvimento econômico e realizar uma política de investimento em empresas estatais que vão fixar balizas pro desenvolvimento progressivo num setor econômico estruturado pela propriedade social de caráter público porém não estatal, vale dizer, um setor econômico autogestionário. O crescimento progressivo desse setor é a base do processo de desestatização também progressivo da sociedade socialista. É uma ilusão porém pensar que sem o incentivo e indução do estado socialista o setor autogestionário se desenvolvera e se fortalecerá; sem o balizamento dessas atividades desse setor pelo planejamento econômico estatal, a autogestão levara de fato ao socialismo. Não levará. Há um risco de que a autogestão leve uma radical corporativização da gestão econômica das empresas, corporativização essa que poderá abrir o caminho para restauração do capitalismo.

O Estado socialista é um Estado gerido por vanguardas socialistas ligadas as massas e sujeito a um controle exercido pelas massas. Ao mesmo tempo ele é um Estado desenvolvimentista e intervencionista em nada aparentado a um estado liberal com sinal de classe trocado. Quer dizer, o item que ficou faltando e que fica para outra ocasião é na verdade o papel da educação escolar socialista na criação do novo homem, vale dizer, na preparação do terreno da construção da sociedade comunista.

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