[Augusto Machado]
|
Manifesto: capa original |
O Manifesto foi escrito por Marx e
Engels em 1848, ano marcado por uma efervescência na luta de classes na Europa
devido à obsolescência do regime política e às agudas crises econômicas, que
culminou em processos revolucionários em vários países. O capitalismo e sua
classe dominante, a burguesia, davam passos decisivos para sua estruturação e
consolidação. Os dois escritores, que há alguns anos tinham começado a se
engajar na luta política socialista, já haviam produzidos conjuntamente algumas
obras críticas-teóricas contra o hegelianismo de esquerda, como ‘A Sagrada
Família, ou a crítica da crítica crítica’ e o início do que seria ‘A ideologia
alemã’, obra abandonada depois de concluída e não publicada pelos autores.
Seria dessa parceria que surgiriam as bases do comunismo científico, o marxismo,
e sendo o Manifesto um dos pilares atéhoje insuperáveis dessa teoria.
A obra significou, além da aliança mais
firme entre os dois pensadores, a síntese (e superação) de uma fase em que os
autores (sobretudo Marx) ainda permaneciam no campo no hegelianismo de esquerda
e da filosofia (ou antropologia filosófica), jogando-os num campo
epistemológico mais histórico e científico a caminho da crítica da economia
política, com um viés fortemente revolucionário. Essa mudança qualitativa foi
nomeada por Althusser de ruptura
epistemológica, onde o jovem Marx deixa de lado o vocabulário hegeliano,
presente principalmente nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, e começa a
formular com Engels suas próprias categorias (que dariam origem ao Materialismo
histórico e dialética) e a se engajar mais fortemente na luta política
socialista.
Durante os anos que se decorreram desde
sua publicação, muitas foram as interpretações e aplicações da obra. Apesar de
sua curta extensão, o Manifesto é de uma extrema densidade e cada tese lançada
nele acarreta conseqüências teóricas e políticas profundas. Para uma avaliação
mais segura de sua atualidade e aplicabilidade é necessário
primeiramente avaliar a questão da historicidade
e da universalidade do Manifesto.
Ora, ao fazer isso, também se estará analisando as próprias bases do marxismo,
que o tem como uma de suas obras mais significativas.
Historicidade
e universalidade: limitações e atualidade do Manifesto
Discutir sobre a historicidade das obras
marxistas é ao mesmo tempo entender como se dá o próprio método dialético
aplicado no marxismo. E talvez, seja a falta compreensão desse próprio método
que leve os cientistas e apologistas burgueses a fazerem interpretações
mecânicas, simplistas e por vezes apocalípticas.
É próprio do método dialético trabalhar
sob a tensão entre o particular e o universal, entre o relativo e o absoluto,
já que a dialética nada mais é do que o estudo do fenômeno que carrega em si
seu próprio oposto, daí a primazia da unidade entre os opostos e seu
desenvolvimento. Essa maneira superior de se trabalhar a realidade e o
conhecimento nunca é utilizada pelas classes conservadoras e reacionárias e
seus intelectuais pois, estes, num determinado período histórico, quando deixam
de ser progressistas, passam a ser apologistas do status quo e não mais lhes interessam demonstrar as contradições e
o desenvolver dos objetos de estudo (no caso a sociedade).
Já nesse ponto, onde identificamos o
método dialético como revolucionário e específico da classe revolucionária e
progressista de uma época, demonstramos sua historicidade (conhecimento
relativo a uma certa classe, num certo período histórico) ao mesmo tempo que
provamos sua validez e objetividade. Mesmo sendo histórica e socialmente
delimitado, esse conhecimento também carrega um germe de universalidade,
simbolizando a maior objetividade possível naquele momento histórico. Sendo
assim, também as outras obras burguesas, por exemplo, também possuem uma
validez científica, dependendo do período histórico em que elas foram escritas.
Vale lembrar que toda a economia política marxista foi construída sobre o
pensamento de Smith e Ricardo, assim como a filosofia marxista se utilizou do
pensamento de Hegel. Todo o obreirismo então deve ser entendido enquanto
errôneo e prejudicial para a classe trabalhadora, já que reduz o campo de
conhecimento e impossibilita esta de se utilizar dos progressos e contribuições
das outras classes no passado.
Nesse sentido, ao analisar uma obra
marxista, como o Manifesto, deve-se compreender dialeticamente suas limitações
e sua universalidade, que significa a validez atemporal daquela obra se as
bases sociais que esta analisa ainda não foram superadas (ou seja, se permanece
ao mesmo período, no caso no sistema capitalista, na sociedade de classes). Por
isso mesmo o método dialético marxista escapa tanto do relativismo quanto do
positivismo, alcançando a objetividade necessária sem excluir a subjetividade
histórica: consegue analisar em seu objetivo sua própria relatividade que
também é comum a outros relativos, sendo de certa maneira e em alguns pontos,
absoluta.
Limitações
do Manifesto: sua historicidade
O Manifesto foi escrito a partir de um
estudo histórico específico: do desenvolvimento da luta de classes e do
capitalismo na Europa. Publicado em meados do séc. XIX, a obra trazia uma
configuração de como o capitalismo se deu lá. Podemos perceber assim duas
limitações: temporal e espacial.
A espacial diz respeito à especificidade
da Europa, dos países desenvolvidos e colonizadores. O modo como o capitalismo
de desenvolveu no velho continente não será o mesmo do resto do mundo,
principalmente nos países colonizados. O risco de ampliar um modo de
desenvolvimento para todos os continentes é extremamente nefasto e ahistórico e
pode implicar diversos erros políticos, como, por exemplo, a importação
mecânica da categoria européia de feudalismo para o Brasil. Apesar de sua
característica global, tendo em vista o impulso expansionista do capital, o
sistema capitalista se desenvolverá de maneira diversa pelo mundo, e não podia
ser diferente, frente à necessidade de acumulação e suas limitações.
No Manifesto encontramos explicitamente
o movimento expansionista do capital pelo globo, de como este destrói todas as
formas anteriores de produção e reprodução social, porém não de maneira tão
aprofundada: o foco é a Europa, sobretudo os países mais avançados desta, de
onde viria a revolução, já que a classe operária lá já estaria consolidada,
assim como o desenvolvimento do capitalismo. Nesse ponto encontramos um ponto
polêmico do marxismo, principalmente no séc. XX: a dialética centro-periferia,
e de onde a revolução deve se iniciar.
Temporalmente a obra tem suas limitações
que podem ser resumidas na não captação do que se tornaria o imperialismo. Este
fenômeno e suas conseqüências só seriam analisados cientificamente pela segunda
geração marxista, da 2ª Internacional. Apesar de conter trechos que parecem
“prever” que seria imperialismo e o que a burguesia chama hoje de globalização,
o Manifesto não consegue apontar os entraves que este fenômeno causaria nos
países periféricos (uma industrialização tardia, burguesia reacionária etc.)
assim como nos países do centro (principalmente a cooptação dos operários, a
formação de uma aristocracia operária e de um sindicalismo de barganha e
reformista).
Sendo limitados por um período
histórico, os autores lançam uma avaliação de conjuntura e um programa político
segundo a constituição de classes daquela época nos países europeus,
caracterizado pelo capitalismo industrial, o Estado moderno, o operário fabril
e a recente urbanização. A tese de fundo é que esse cenário, cedo ou tarde, se
repetiria em todo o globo e se aprofundaria: a proletarização seria cada vez
mais eficaz e profunda, não restando à massa despossuída e miserável outra
coisa a não ser a realização imediata da revolução.
Talvez essa tese, em muitos períodos
históricos não se concretizou (os reformistas e revisionistas apontam
principalmente o surgimento da ‘classe média’ e um crescente poder de consumo
como fatores que a invalidam, assim como da diminuição do nível cínico de
exploração através dos direitos trabalhistas, direitos humanos, novas formas de
gerência etc.), mas é preciso ressaltar o caráter da totalidade dessa análise,
não a entendendo no sentido literal, mas sim como regra geral, abstração de um
movimento histórico, tendência que não se realiza de imediato pois depende das
diversidade de contradições e da ação histórica (luta de classes).
Assim, vemos que apesar das limitações,
os movimentos gerais do capital que são analisados no Manifesto permanecem
atuais mesmo na periferia do capital, ou seja, há uma esfera universal
geográfica e temporalmente.
Atualidade
do Manifesto: sua universalidade
O
Manifesto lança, juntamente com a Ideologia Alemã, as bases teóricas do que se
tornaria o Materialismo histórico: neles encontramos as categorias conceituais
utilizadas pelo marxismo. Esse método e ciência histórico comprovaria sua
validez séculos depois por ser uma forma científica de lidar com todo nosso
período histórico que Marx chamava de pré-história: a sociedade de classes. As
teses centrais do Manifesto, como a inevitabilidade da luta de classes,
fazem-se universais e atuais, já que ainda não superamos as bases materiais das
sociedades de classes (propriedade privada, divisão social do trabalho). Então,
independente do quão distante estivermos o “capitalismo industrial inglês” de
Marx e Engels, a leitura do Manifesto ainda se faz válida e esclarecedora de
muitos pontos.
Outro ponto importante e universal é a
descrição e avaliação do ímpeto do capital e suas limitações estruturais, tão
visíveis em tempos de crises. Sendo o capital um modelo estrutural de
reprodução social, não importa se estamos analisando sua atuação na África ou
na Oceania, da burguesia dos EUA ou da França, este de comportará da mesma
forma: buscando sua sobrevivência através da exploração do trabalho, o roubo de
seu excedente, a acumulação e expansão. O capital é a força social incontrolável
que a tudo submete seu imperativo e para sobreviver.
Algumas
conseqüências do Manifesto dentro do marxismo:
Como foi dito, as análises realizadas no
Manifesto são muitas delas polêmicas e marcaram profundamente a política
comunista do séc. XX, abaixo segue algumas teses e suas conseqüências
políticas.
-A inevitabilidade do sumiço da média
propriedade, ou seja, a inevitável polarização da sociedade entre proletários e
burgueses. De certa forma a tese se confirmou pela expansão do capital nos
setores que antes não se relacionavam com este, mas ao mesmo tempo não previa
as consequências do imperialismo (industrialização tardia, permanência de
relações pré-capitalistas e suas classes).
-Internacionalismo: noção do
internacionalismo da classe e fim do fetichismo da noção de nação burguesa. Uma
arma contra os chauvinistas e desenvolvimentistas, mas ainda não capta a
dialética sobre nacional x internacional da era imperialista.
-O
proletariado como uma não-classe, que, ao subir ao poder, tornar-se dominante,
anulará a estruturá de classes (Estado não-estado, ditadura que é democracia
para a maioria)
-"O governo moderno nada
mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe
burguesa. O proletariado não pode
conquistar o poder por meio das leis promulgadas pela burguesia.”
Conclusão
Lidando com fenômenos históricos,
deve-se descobrir as lei gerais que regem tal período, mas sem esquecer que
essas leis gerais não terão muitas vezes suas conseqüências diretas,
empiricamente verificáveis, pois, estando no terreno da história, da luta de
classes e de sobredeterminações, que pode acelerar, retardar ou superar certas
tendências descobertas a partir da abstração teórica. Ao mesmo tempo não se
pode cair num relativismo irregular e irracional que vê a história sempre como
um terreno novo e totalmente aberto à atuação e criação humana: estamos
limitados materialmente e dessa limitação que gera liberdade que nasce a
concepção materialista e dialética da história. “Os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas
com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.Se para
alguns parece um paradoxo essa “liberdade determinada”, citemos Marx: “Parece
também paradoxal que a Terra gire ao redor do Sol e que a águas seja formada
por dois gases altamente inflamáveis. As verdades científicas serão sempre
paradoxais, se julgadas pela experiência de todos os dias, a qual somente capta
a aparência enganadora das coisas.”