sábado, 28 de abril de 2012

Zeca Afonso - A voz do antifascismo português

"O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando o trabalho vivo e que vive quanto mais trabalho vivo chupa"

“O capital ao surgir escorre-lhe sangue e lodo por todos os poros, da cabeça aos pés”

Marx



OS VAMPIROS, José "Zeca" Afonso

No céu cinzento 
Sob o astro mudo          
Batendo as asas 
Pela noite calada         
Vêm em bandos com pés veludo      
Chupar o sangue fresco da manada  
Se alguém se engana 
Com seu ar sisudo        
E lhes franqueia 
As portas à chegada        
Eles comem tudo 
Eles comem tudo   
Eles comem tudo 
E não deixam nada

A toda a parte 
Chegam os vampiros  
Poisam nos prédios 
Poisam nas calçadas  
Trazem no ventre 
Despojos antigos  
Mas nada os prende 
Às vidas acabadas    
São os mordomos 
Do universo todo  
Senhores à força 
Mandadores sem lei  
Enchem as tulhas 
Bebem vinho novo  
Dançam a ronda 
No pinhal do rei    
Eles comem tudo 
Eles comem tudo  
Eles comem tudo 
E não deixam nada    

No chão do medo 
Tombam os vencidos 
Ouvem-se os gritos 
Na noite abafada 
Jazem nos fossos 
Vítimas dum credo  
E não se esgota 
O sangue da manada    
Se alguém se engana 
Com seu ar sisudo  
E lhe franqueia 
As portas à chegada  
Eles comem tudo 
Eles comem tudo  
Eles comem tudo 
E não deixam nada    
Eles comem tudo 
Eles comem tudo  
Eles comem tudo 
E não deixam nada

Em Defesa do Marxismo e da Experiência Socialista - JÚLIO MOREIRA

Artigo retirado da edição atual da revista Crítica do Direito (Número 1, Volume 35). Disponível no link: http://www.criticadodireito.com.br/todas-as-edicoes/numero-1-volume-35/em-defesa-do-marxismo-e-da-experiencia-socialista



“Que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder? Que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de comunista?”
Marx e Engels
“A doutrina de Marx suscita em todo o mundo civilizado a maior hostilidade e o maior ódio de toda a ciência burguesa (tanto a oficial como a liberal), que vê no marxismo uma espécie de ‘seita perniciosa’. E não se pode esperar outra atitude, pois, numa sociedade baseada na luta de classes não pode haver ciência social ‘imparcial’.”
Lênin
“Sempre estivemos contra a crítica inadequada a Stalin, feita a partir de uma posição falsa e com métodos errôneos.”
Partido Comunista da China


O pensamento social dominante é condicionado pelas forças dominantes na sociedade. A história jamais será imparcial, pois precisa ser contada por alguém. Desde que a sociedade se dividiu entre opressores e oprimidos, a história predominante é a história dos opressores.
Os homens sempre foram em política vítimas ingênuas do engano dos outros e do próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprenderem a descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou de outra classe (LENINE, 1984a, p. 94).
Em 1992, um certo funcionário do Departamento de Estado dos Estados Unidos lançava aos ventos a tese do “fim da história”, pressupondo, com estratagemas dignos de Schopenhauer[1], a derrota eterna do socialismo e a vitória eterna do capitalismo. Em outras palavras: critiquemos o socialismo, mas não critiquemos o capitalismo, porque, por problemas que existam, não há nada a fazer contra ele.
Assim, a história utiliza de premissas falsas e da manipulação semântica, pressupondo na expressão “socialismo real” que as experiências socialistas no mundo foram negativas e que não é possível aplicar na prática a teoria marxista. Isso ficou impregnado de tal maneira que até críticos do capitalismo admitem essa terminologia, abrindo os flancos para a falsa proclamação de vitória do capitalismo. A manipulação semântica vai mais longe, quando os ideólogos do capitalismo, no pós II Guerra Mundial, aproveitaram-se da derrota do nazi-fascismo para cunhar o termo totalitarismo, que correspondia a tudo que não se combinasse com a concepção idealizada de democracia liberal. Assim, lançava-se um estratagema de alternativa forçada: como era óbvio que ninguém ousaria defender o monstro do totalitarismo, restava apenas comprar a ideia de democracia liberal. De um lado, o modelo de “democracia” estadunidense; do outro, os “totalitarismos” do nazismo, socialismo, comunismo, etc. Essa máquina de manipulação anti-histórica consegue igualar as experiências socialistas ao nazismo.
A história do capitalismo é também a história da luta pela sua superação. Irrompendo contra as oposições utópicas e moralistas aos efeitos do capitalismo sobre os trabalhadores, Marx e Engels apontam o caminho científico para a transformação.
Marx determinou a tarefa essencial da táctica do proletariado em rigorosa conformidade com todas as premissas da sua concepção materialista-dialéctica do mundo. Só o conhecimento objectivo do conjunto de relações de todas as classes, sem excepção, de uma dada sociedade e, por conseguinte, o conhecimento do grau objectivo de desenvolvimento desta sociedade e das relações entre ela e outras sociedades. (LENINE, 1984b, p. 204)
A luta de posições, muitas vezes antagônicas, sempre foi parte dos processos de organização revolucionária. A Associação Internacional dos Trabalhadores, onde estavam Marx e Engels, se deu em meio a confrontos com os anarquistas. A Comuna de Paris, em 1871, é um marco que confirma as posições marxistas. Depois, abre-se a luta de Lênin contra o reformismo e o oportunismo que passaram a dominar a II Internacional. A Revolução Russa demonstra a justeza das posições de Lênin sobre os reformistas e oportunistas da II Internacional.
A construção da experiência revolucionária na Rússia não se deu sem duras contradições. Em vida, Stalin enfrentou várias tentativas de eliminação e traições dentro do Partido Comunista da União Soviética. Com sua morte, em 1953, Kruschov assume o caminho para a restauração capitalista na Rússia, abrindo uma luta com o Partido Comunista da China. Até 1976, a justeza das posições do PCCh é confirmada pela experiência única da Revolução Cultural, levando adiante os princípios do marxismo-leninismo. A partir de 1976, com a morte de Mao Tsetung, abre-se o caminho para a restauração do capitalismo na China. Por outro lado, surge o marxismo-leninismo-maoísmo a partir do chamado Pensamento Mao Tsetung.
Dois conceitos chaves nessas lutas são oportunismo e revisionismo. Lênin apontava que, nas condições do capitalismo monopolista, “um pequeno círculo da burocracia operária, da aristocracia operária e de companheiros de jornada pequeno-burgueses podem receber algumas migalhas dos grandes lucros da burguesia” (LENINE, 1984c, p. 283). Trata-se de uma forma desenvolvida pelo capitalismo de destruir seus inimigos por dentro, o que se revelou mais eficaz que travar apenas a confrontação direta. O conteúdo do oportunismo, que passa a ser uma linha de atuação nos movimentos operários é “a colaboração das classes, a renúncia à ditadura do proletariado, a renúncia às ações revolucionárias, o reconhecimento sem reservas da legalidade burguesa, a falta de confiança no proletariado, a confiança na burguesia” (LENINE, 1984c, p. 283).
Além de afirmar que a luta de posições é inerente aos movimentos revolucionários – o que decorre da universalidade da contradição como lei fundamental do materialismo histórico-dialético – demonstramos que a única forma de resolver qual é a posição correta é a sua aplicação na prática. Isso reafirma Mao Tsetung (1979a, p. 69):
É somente chegando à prática social (dentro do processo da produção material, da luta de classes, das experiências científicas), aos resultados que esperavam, que os homens recebem a confirmação da verdade de seus conhecimentos.
Em seguida:
O marxismo-leninismo é reconhecido como verdade não somente porque essa doutrina foi cientificamente elaborada por Marx, Engels, Lênin e Stálin, mas porque foi confirmada pela prática ulterior da luta revolucionária de classe e da luta revolucionária pela libertação da nação. (1979a, p. 79)
Uma tal experiência histórica, em tempos de imperialismo, teve um poder incrível de influenciar as pessoas dos países inseridos na troca capitalista mundial. Especialmente após a II Guerra Mundial, pintar o socialismo como algo muito ruim era tarefa essencial para o capitalismo na batalha ideológica. Uma forma de fazê-lo, e que é feita constantemente até hoje, é atacar a figura pessoal dos dirigentes. Isso só pode ser feito numa concepção de história que dissocia os indivíduos do contexto social, somada à manipulação psicológica, criando monstros sem associar com a posição de classe que cada um ocupava e a quem cada um servia. Cabe trazer a passagem de Stalin (1938) sobre o idealismo histórico:
[...] a ciência histórica, se pretende ser uma verdadeira ciência, não deve continuar reduzindo a história do desenvolvimento social aos atos dos reis e dos chefes militares, aos atos dos "conquistadores" e "avassaladores" de Estados, mas deve ocupar-se, antes de tudo, da história dos produtores dos bens materiais, da história das massas trabalhadoras, da história dos povos.
 Lênin, Stalin e Mao Tsetung são os mais demonizados, exibidos com os mais excêntricos hábitos capitalistas capazes de causar antipatia a qualquer pessoa! Não é preciso falar dos estudos sobre a capacidade de formatação ideológica da indústria cultural capitalista, nem citar filmes e livros em que a experiência revolucionária de bilhões de pessoas é reduzida às maluquices e excentricidades atribuídas aos dirigentes.
Somava-se a isso a particular consciência dos ideólogos capitalistas de que é mais eficaz destruir a revolução por dentro do que atacando de fora. Três anos depois da morte de Stalin, em 1956, Kruschov apresentou, no famoso XX Congresso do PCUS, um “relatório secreto” denunciando uma série de crimes supostamente praticados por Stalin e o que chamava de culto à personalidade. O texto relatório sequer fora apresentado. Mesmo assim, causou impacto nas direções comunistas, nos militantes e nos intelectuais em todo o mundo. Grande parte das direções não estava habituada ao método correto de aprofundar e resolver as divergências e lutas internas. Muitos – inclusive Kruschov, que era um pérfido puxa-saco de Stalin quando este era vivo – que sustentavam uma crença na figura de Stalin sem profunda convicção e fundamento, passaram da mesma maneira a odiá-lo. Isso abriu o caminho para a negação, não de Stalin, mas dos princípios do comunismo. Exemplo claro se passou no Brasil com a debandada reformista de Prestes e seus seguidores.
Intelectuais proeminentes, especialmente na Europa, apartados da prática revolucionária e recebendo informações distorcidas, acolheram prontamente essa manipulação, como o demonstra essa fala do italiano Umberto Cerroni (apud CALDAS, 2006, p. 25):
O XX Congresso acolho com entusiasmo, com um entusiasmo que em parte se esmaga e se contradiz com a dor autêntica e muito humana de tantos militantes que se sentem maculados de sangue pelo realatório secreto.
Tudo isso não levou a nada mais que à negação dos princípios da ação revolucionária e dos métodos de direção comunista. Serviu para formar um consenso de refutação da aplicação prática do marxismo-leninismo, e lançar as várias vertentes de um “socialismo democrático”, que nada mais significa que a defesa dos princípios da democracia liberal (separação de poderes, eleições livres, cretinismo parlamentar, etc.) sob rótulos de socialismo.
Um outro consenso formou-se sobre a produção e reprodução de um conceito – o “stalinismo”. Falamos em “produção” de um conceito pelos seus próprios críticos, porque os que defenderam ou defendem corretamente a figura de Stalin jamais utilizaram esse termo. Ele é usado, muitas vezes, não para refutar Stalin, mas sim os princípios do comunismo. Em política vulgar é usado para nomear a prática de qualquer político que impõe sua vontade individual sem discussão. Na academia em Ciências Humanas, ser contra o “stalinismo” acabou se tornando um senso comum e pressuposto indispensável para quem quiser se manter numa posição confortável e estável, sem ser duramente criticado, e desde que não ligue muito para a reflexão sobre suas convicções e princípios.
E o que queremos dizer por “defender corretamente a figura de Stalin”? Que não estamos buscando uma posição confortável sem princípios. Que não podemos seguir até hoje dando corda à manipulação que foi o “relatório secreto” de Kruschov. Que não podemos seguir a linha de demonização individual dos dirigentes socialistas, nem tampouco sua glorificação individual sem convicção histórica e científica. Que a maior parte das críticas (ataques) a Stalin não fazem avançar a crítica transformadora da sociedade e levam inevitavelmente à negação do marxismo e da experiência socialista. Que não refutamos a experiência única que viveram bilhões de pessoas ao longo do século XX, na construção do socialismo.
Após o “relatório secreto” e seus impactos, abriu-se a luta entre o PCUS e o PCCh, expressa em documentos importantíssimos para a avaliação da experiência socialista – e ainda pouco conhecidos no Brasil. Do lado chinês, trata-se da carta de 25 pontos intitulada Proposição acerca da linha geral do Movimento Comunista Internacional, de 14 de junho de 1963, e de nove comentários temáticos sobre a Carta Aberta do PCUS, de 14 de julho de 1963. Esses documentos foram publicados pela primeira vez no Brasil (não por acaso) apenas em 2003, sob o título A Carta Chinesa – a grande batalha ideológica que o Brasil não viu.
Um dos nove comentários é Sobre o problema de Stalin. Ali fica colocada a posição do PCCh:
O Partido Comunista da China sempre considerou que é necessário analisar de maneira cabal, objetiva e científica os méritos e erros de Stalin, empregando o método do materialismo histórico e apresentando a história tal como é, e que não se deve empregar o método do idealismo histórico, tergiversar e falsificar arbitrariamente a história, nem negar Stalin de maneira subjetiva, grosseira e total. (PCCH, 2003a, p. 143)
Quando Kruschov tergiversa a história e nega por completo Stalin, é natural que tenhamos o ineludível dever, pelo bem dos interesses do movimento comunista internacional, de sair em defesa de Stalin. (PCCH, 2003a, p. 146)
No tumulto histórico causado pelo XX Congresso do PCUS, o PCCh era o que mais possuía condições para avaliar a experiência da Rússia sob Stalin e prosseguir no caminho do socialismo. Isso porque, sob a direção de Mao Tsetung, o PCCh, desde a sua fundação na década de 20, vinha se provando nos métodos de direção e no tratamento correto das contradições. Em outras palavras, eles puderam, como ninguém antes, aplicar os preceitos da filosofia marxista – o materialismo histórico e dialético – a todos os campos da atividade humana, inclusive aos métodos de direção. Essa consciência da filosofia na prática já havia  sido demonstrada em dois textos de 1937: Sobre a prática e Sobre a contradição, cuja leitura, um tanto negligenciada e pouco acessível na atualidade, é essencial para qualquer pessoa que queira conhecer honestamente o marxismo – fugindo das falsificações, superficialidades e preconceitos carregados pelos mais eminentes e graduados professores da academia.
Esse caminho aponta e demonstra cientificamente que a contradição é inerente e interna a todos os fenômenos (todo fenômeno traz em si o seu oposto); que uma realidade possui várias contradições e é preciso distinguir, nelas, a contradição principal que condiciona todas as outras, e distinguir, em cada contradição, o aspecto principal ou dominante; que um aspecto dominado da contradição pode se tornar o seu oposto – o dominante – gerando uma realidade diferente da anterior; que, embora a contradição esteja em tudo, nem todas as contradições são antagônicas.
A partir do fato de que a contradição está em tudo, Mao Tsetung demonstrava que a luta entre capitalismo e socialismo não se dava apenas no amplo espectro da sociedade, mas inclusive no seio da direção comunista. Nenhuma direção – nem mesmo a do próprio PCCh – estava imune ao oportunismo, ao revisionismo e à restauração  capitalista. E ainda, que, mesmo onde o Partido Comunista tivesse tomado o poder e iniciado a construção do socialismo, o capitalismo continuava presente, e era preciso lutar contra ele até o comunismo:
A sociedade socialista abarca um período histórico muito longo. Nesta sociedade ainda existem classes, a luta de classes e a luta entre o caminho do socialismo e o do capitalismo. A revolução socialista realizada só na frente econômica (na propriedade sobre os meios de produção) não é suficiente nem sólida. É necessária, ademais, uma revolução socialista completa nas frentes política e ideológica. (PCCH, 2003b, p. 438).
A compreensão de que nem todas as contradições são antagônicas leva, no âmbito da luta de classes, à necessidade de distinguir as “contradições entre nós e o inimigo” e as “contradições no seio do povo”. Cada uma impõe um método correto para resolvê-las.
As contradições entre nós e o inimigo e as contradições no seio do povo, por serem de natureza diferente, requerem métodos distintos para resolvê-las. Em poucas palavras, nas primeiras é questão de traçar uma clara distinção entre nós e o inimigo, enquanto que nas segundas se trata de uma questão de estabelecer uma distinção precisa entre o correto e o errôneo (TSETUNG, 1999, p. 57).
Negando a ideia abstrata de democracia, demonstrava-se que todo Estado expressa a democracia apenas entre aqueles que exercem o poder, e ditadura contra seus inimigos de classe. Por mais que fale em democracia no sentido abstrato, qualquer Estado capitalista é de fato uma ditadura contra os trabalhadores. Já a ditadura democrática popular na China se fundamentava numa democracia para o povo e ditadura para as classes que pretendiam restaurar o capitalismo. A primeira função dessa ditadura era
[...] reprimir, dentro do país, as classes e elementos reacionários, os exploradores que opõem resistência à revolução socialista, reprimir os que sabotam a edificação socialista, isto é, resolver as contradições entre nós e o inimigo dentro do país. (TSETUNG, 1999, p. 57)
Entre o povo e dentro das direções partidárias, havia dois tipos de desvios na maneira correta de tratar a contradição com o inimigo: a maneira de pensar direitista não faz essa distinção e trata os inimigos como amigos; já os que pensam de maneira esquerdista “exageram o alcance das contradições entre nós e o inimigo até tal grau que tomam certas contradições no seio do povo por contradições entre nós e o inimigo e consideram contra-revolucionárias a pessoas que na realidade não o são” (TSETUNG, 1999, p. 65).
As contradições no seio do povo não podem ser resolvidas apenas com medidas administrativas e coercitivas. O elemento fundamental é o trabalho educativo e persuasivo.
Ao advogar pela liberdade dirigida e pela democracia guiada pelo centralismo, não queremos dizer de modo algum que, no seio do povo, devam resolver-se empregando medidas coercitivas as questões ideológicas e os problemas relativos à distinção entre o certo e o errado (TSETUNG, 1999, p. 59)
Qual seria o método correto para resolver essas contradições? “Partir do desejo de unidade, resolver as contradições através da crítica ou luta e alcançar assim uma nova unidade sobre uma nova base” (1999, p. 59).
Voltando a Stalin, o PCCh analisa, entre outros erros:
Na luta tanto dentro como fora do Partido, às vezes e em alguns problemas, Stalin confundiu duas categorias de contradições de distinto caráter, isto é, contradições entre os inimigos e nós e contradições no seio do povo, e confundiu os métodos diferentes para resolvê-las. (PCCH, 2003a, p. 144).
Não obstante, e ainda que os comunistas chineses tenham sentido na própria carne as consequências de alguns erros de Stalin, seu método nunca foi de atacar sua direção, mas sim seus erros, buscando corrigir-lhes na prática. “Para todos os comunistas, as experiências históricas tanto positivas como negativas são benéficas, sempre que sejam acertadamente resumidas de acordo com a realidade histórica e não tergiversando-a” (2003a, p. 145). E ainda, “os méritos e erros na vida de Stalin são uma realidade objetiva histórica. Comparados seus méritos e seus erros, pesam mais os primeiros que os últimos” (2003a, p. 145).
Demonstra o PCCh que Stalin conduziu o povo soviético na linha da industrialização socialista e da coletivização da agricultura; na grande vitória da guerra antifascista (dizemos: representada, aliás, pela correta estratégia e pelo heroísmo inapagável da Batalha de Stalingrado); na luta contra o oportunismo e a sustentação do marxismo-leninismo, que impulsionou a construção, em todo o mundo, de partidos comunistas armados com a ciência  e o método luta eficaz contra o capitalismo; no avanço da obra teórica marxista; numa política externa correspondente com o internacionalismo proletário e com grande ajuda às lutas dos povos de todo o mundo.
Com a análise correta da realidade, o conhecimento científico da contradição aplicado aos métodos de direção, e a compreensão de que a construção do socialismo não  se dá apenas no plano econômico, mas sobretudo nas frentes política e ideológica, o PCCh lançou, em 1966, uma experiência inédita na humanidade: a Grande Revolução Cultural Proletária, como um processo de educação e empoderamento das massas voltado a colocar em questão os próprios dirigentes, revolucionando e reavivando o caminho do socialismo e combatendo as tendências feudais e burguesas que permaneciam mesmo após vários anos da revolução de 1949. A Revolução Cultural perdura até 1976, quando, após a morte de Mao Tsetung, um golpe de Estado coloca Deng Xiaoping no poder e encarcera a direção maoísta.
Essa dura condição da luta pelo socialismo já estava adequadamente colocada em 1963. Pedimos licença para a longa transcrição, já que qualquer redução retiraria seu sentido integral:
A luta de classes, a luta pela produção e a experimentação científica são três grandes movimentos revolucionários para cosntruir um poderoso país socialista. Estes movimentos constituem uma real garantia de que os comunistas se verão livres do burocratismo e estarão imunes contra o revisionismo e o dogmatismo, e permanecerão sempre invencíveis. São uma garantia segura de que o proletariado será capaz de unir-se com as amplas massas trabalhadoras e praticar uma ditadura democrática. Se, na ausência destes movimentos, estivesse permitido que surgissem os latifundiários, camponeses ricos, contra-revolucionários, elementos maus e ogros de todo tipo, enquanto nossos quadros fechassem os olhos a tudo isto e em muitos casos inclusive não distinguissem entre os inimigos e nós, mas sim colaborassem com eles e ficassem corrompidos e desmoralizados; se com isso nossos quadros fossem arrastados ao campo inimigo ou o inimigo lograsse colar-se em nossas fileiras, e se muitos de nossos operários, camponeses e intelectuais fossem deixados indefesos perante as táticas brandas e as táticas duras do inimigo, então não seria necessário muito tempo, talvez só alguns anos ou uma década, ou várias décadas quando muito, para que ocorresse inevitavelmente uma restauração  contra-revolucionária em escala nacional, o partido marxista-leninista se transformasse em partido revisionista ou partido fascista, e toda a China mudasse de cor (TSETUNG, apud CARVALHO, 2006, p. 93)
Afinal, foi exatamente o que aconteceu, 13 anos depois, na China, representando um problema muito mais amplo, o fim da primeira grande onda da experiência socialista. Não que Mao Tsetung fosse um visionário, apenas estava munido da mais avançada aplicação do método materialista dialético, podendo visualizar o aspecto oposto da contradição. De maneira nenhuma, porém, devemos fazer coro ao “fim da história”. Afinal, já estava claro, também, que a revolução é um processo longo de derrotas e vitórias. Em 1938, Stalin mostrava que a revolução e o socialismo não são fruto da vontade arbitrária de certas pessoas ou grupos, mas do próprio desenvolvimento histórico das sociedades capitalistas.
Ora, se o mundo se acha em incessante movimento e desenvolvimento e se a lei desse desenvolvimento é a extinção do velho e o fortalecimento do novo, é evidente que já não pode haver nenhum regime social "irremovível", nem podem existir os "princípios eternos" da propriedade privada e da exploração, nem as "idéias eternas" de submissão dos camponeses aos latifundiários e dos operários aos capitalistas.
Os erros cometidos nas experiências socialistas do século XX (não nos referimos aos erros anunciados – e criados – pela versão dominante na história), não são capazes de abalar essa certeza histórica e científica, e muito menos de permitir que se declare a vitória do capitalismo.
É necessário um período muito longo para resolver o problema de “quem vencerá a quem”: o socialismo ou o capitalismo nas frentes política e ideológica. Para conseguir o êxito não bastam uns decênios, se necessitarão de cem a centenas de anos. Quanto ao tempo, mais vale preparar-se para um período maior que um menor; quanto ao trabalho, mais vale considerar preferentemente a tarefa como difícil do que como fácil. Pensar e atuar desta maneira é mais proveitoso e menos prejudicial. (PCCH, 2003b, p. 438)
Quão diferente é a lógica dos imperialistas da lógica do povo! Provocar distúrbios, fracassar, voltar a provocar distúrbios, fracassar de novo... até à sua ruína – tal é a lógica dos imperialistas e de todos os reacionários do mundo perante a causa do povo, e eles jamais marcharão contra tal lógica. [...] Lutar, fracassar, lutar de novo, fracassar de novo, lutar outra vez... até à sua vitória, eis a lógica do povo, e este também jamais marchará contra tal lógica. (TSETUNG, 1979b, p. 665).
Marx, Engels, Lênin, Stalin e Mao Tsetung estão tão vivos na atualidade, que o capitalismo os continua matando e enterrando, a cada dia, a cada minuto.

REFERÊNCIAS
CALDAS, Camilo Onoda. Perspectivas para o direito e a cidadania. O pensamento jurídico de Cerroni e o marxismo. São Paulo: Alfa Omega, 2006.
CARVALHO, Albênzio Dias de. O revisionismo albanês de Amazonas e sua crítica “demolidora” do maoísmo. Rio de Janeiro: Difusora, 2006.
LENINE, V.I.. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. In: _____. Obras escolhidas. Tomo 2. Lisboa: Ed. Avante!, 1984a.
______. Karl Marx. In: _____. Obras escolhidas. Tomo 2. Lisboa: Ed. Avante!, 1984b.
______. O oportunismo e a falência da II Internacional. In: _____. Obras escolhidas. Tomo 2. Lisboa: Ed. Avante!, 1984c.
PARTIDO COMUNISTA DA CHINA. Sobre o problema de Stalin. In: Núcleo de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoismo. A Carta Chinesa: a grande batalha ideológica que o Brasil não viu. Belo Horizonte: Terra, 2003a.
______. Acerca do falso comunismo de Kruschov e suas lições históricas para o mundo. In: Núcleo de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoismo. A Carta Chinesa: a grande batalha ideológica que o Brasil não viu. Belo Horizonte: Terra, 2003b.
SCHOPENHAUER, Arthur. Como vencer um debate sem precisar ter razão: em 38 estratagemas (Dialética Erística). Tradução Daniela Caldas e Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
STALIN, J. V.. Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico (1938). In: Arquivo Marxista na Internet. Disponível em: <http://marxists.org/portugues/stalin/1938/09/mat-dia-hist.htm>. Acesso em 16 abr. 2012.
TSETUNG, Mao. Sobre a prática. In: O pensamento de Mao Tsé-Tung. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979a.
______. Abandonai as ilusões e preparai-vos para a luta. In: _____. Obras Escolhidas. Vol. IV. São Paulo: Alfa Omega, 1979b.
______. Sobre o tratamento correto das contradições no seio do povo. In: ______. Seis textos filosóficos do Presidente Mao Tsetung. São Paulo: Edições Seara Vermelha, 1999.


[1] Arthur Schopenhauer (1997), com sua dialética erística, apresenta 38 estratagemas retóricos, partindo da ideia de que o foco de cada parte num debate deve ser ganhar a discussão,  independentemente do significado das ideias defendidas e de serem verdadeiras ou não. Alguns estratagemas servem perfeitamente aos propósitos deste artigo: uso intencional de premissas falsas – lançar ideias baseadas em premissas falsas para que o adversário, discutindo as ideias, silencie sobre as premissas, admitindo-lhes tacitamente; manipulação semântica: utilização de termos que já tragam em si um significado prejudicial ao argumento do adversário; alternativa forçada – oferecer duas possibilidades para que o adversário só possa escolher entre uma ou outra, abrindo mão de seu argumento; falsa proclamação de vitória – tratar como prova o que não é prova, e “forçar a barra” para proclamar vitória num momento em que o adversário ou a plateia possam aceitar isso.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Antonio Guerrero e Gerardo Hernández: obras no museu, corpos na prisão

Segundo The Guardian online, em matéria de Duncan Campbell (18/04/12 - http://www.guardian.co.uk/artanddesign/2012/apr/18/cuban-art-banged-up-abroad?newsfeed=true), obras de artistas cubanos receberão uma grandiosa exposição no Reino Unido nesse mês. Dentre os artistas estão Antonio Guerrero e Gerardo Hernández, militantes cubanos que lutaram contra a sabotagem e terrorismo do imperialismo norte-americano à Cuba. Capturados juntos com outros 3 companheiros patriotas em 2001, desde então vem sofrendo processos arbitrários da "justiça" americana. Presos há mais de uma década, "os Cinco" se tornaram heróis nacionais de Cuba, símbolo da resistência cubana ao imperialismo. A campanha e luta para a liberdade dos companheiros cubanos ainda continua.


Apoio do ator Danny Glover


Maranhão 66: Discurso de posse de Sarney e coronelismo

Documentário de Glauber Rocha no link seguinte. 1966, Maranhão, miséria popular: cenário perfeito para o jogo eleitoral das classes dominantes. Sarney sobe ao poder através de eleições diretas para governador no Maranhão, fenômeno que ocorreu em 11 estados aquele ano.

http://www.vidoevo.com/yvideo.php?i=dDBKSlBGcWuRpcnVoQUE&maranho-66

"O coronelismo é um fenômeno político do passado, ou pode se reproduzir no futuro? Em qualquer caso, sua vitalidade depende, de um lado, da persistência de relações de produção pré-capitalistas no campo [relações de dominação e dependência pessoal]; de outro, do significado das instituições democráticas representativas para as classes trabalhadoras e da importância do processo eleitoral como lugar de resolução das disputas internas ao bloco no poder." Décio Saes, Estudios Rurales Latinoamericanos, vol. 1, nº 3, 1978.

Hoje fala-se ainda de coronelismo brasileiro, mas de novo tipo, envolvendo o controle dos meios de comunicação. Podemos ver uma análise desse fenômeno nesse trabalho recente do observatório da imprensa: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/download/Coronelismo_eletronico_de_novo_tipo.pdf


Teoria da Contradição


Alain Badiou, 1975 (Tradução amadora)


Capítulo 1 Uma tese filosófica essencial: “É justo rebelar-se contra os reacionários”

Estamos acostumados com a conhecida fórmula de Mao Tsé-Tung: “O marxismo consiste em muitas verdades, mas em última análise elas podem ser resumidas em uma sentença: é justo rebelar-se contra os reacionários.” Essa frase, que aparentemente é simples, é ao mesmo tempo um tanto misteriosa: como é possível que o enorme empreendimento teórico de Marx, que é incessante e meticulosamente retrabalhada e posta a análises de reformulação, possa ser concentrado em uma máxima: “É justo rebelar-se contra os reacionários”? E o que é essa máxima? Estamos lidando com uma observação, resumindo a análise marxista de contradições objetivas, no inevitável confronto entre revolução e contra-revolução? Trata-se de uma instrução criada para a mobilização subjetiva das forças revolucionárias? Seria a verdade marxista o seguinte: ser rebelde é justo? Ou melhor: "deve-se rebelar-se"? As duas, talvez, e ainda mais o movimento espiral de um para a outra: a rebelião real (força objetiva), a ser enriquecida, e o retorno sobre si mesma na consciência da sua justeza ou razão de ser (força subjetiva).

A. Prática, Teoria, Conhecimento

Nós já compreendemos algo essencial aqui: toda afirmação marxista é – em um sentido único – movimento e instrução. Como uma concentração de prática real que é igual ao seu movimento em ordem de retornar para si. Uma vez que tudo o que se extrai seja apenas um devir, da mesma forma, a teoria do conhecimento de algo deve pretender mover-se em direção à teoria. Todo conhecimento é orientação, toda descrição é prescrição, ordenamento.
A sentença “é justo rebelar-se contra os reacionários” prova isso mais que qualquer coisa. Nela encontramos expresso o fato de que o marxismo, antes de ser ciência da formação social, é uma confirmação das demandas da revolução: se se considerar tais como justas, então há razão para realizarem-se. O marxismo é ao mesmo tempo um posicionamento e uma sistematização de uma experiência partidária. A existência de uma ciência das formações sociais não tem qualquer interesse para as massas, a não ser que esta reflita e concentre o verdadeiro movimento revolucionário das mesmas. O marxismo deve ser concebido como a sabedoria acumulada de revoluções populares, o motivo que elas engendraram, a fixação e o detalhamento de seu alvo. A frase de Mao Tsé-Tung situa claramente a rebelião como o lugar originário de idéias corretas e os reacionários como aqueles cuja destruição é legitimada pela teoria. A sentença de Mao Tsé-Tung situa a verdade marxista dentro da unidade entre teoria e prática. É a partir da verdade marxista que se extrai o direito de rebelião, a razão para destruir o inimigo. Ela repudia qualquer igualdade em face da verdade. Num único movimento, que é conhecimento na divisão específica entre descrição e direção, julga, pronuncia a sentença, e imerge a si mesma na ação revolucionária. Os revolucionários possuem o saber, de acordo com o movimento citado acima, e também o seu poder e seu dever: aniquilar os reacionários. O Capital de Marx não diz outra coisa diferente: os proletários têm o direito de derrubar violentamente os capitalistas. A verdade marxista não é uma verdade conciliatória. Ela é, em si, ditadura e, se necessário, terror.
A sentença de Mao Tsé-Tung nos lembra que, para um marxista, o vínculo entre teoria e prática (a razão de rebelar-se) é uma condição interna da teoria, porque a verdade é um processo concreto, é, em suma, a rebelião contra os reacionários. Não há praticamente nenhuma afirmação mais verdadeira e profunda em Hegel quando diz: “A Idéia absoluta torna-se identidade da Idéia teórica e da Idéia prática” (Hegel, Ciência da Lógica). Para Hegel, a verdade absoluta é a união contraditória entre teoria e prática. É o processo ininterrupto e divido do ser e do agir. Lênin reafirma com entusiasmo: “A unidade entre a idéia teórica (do conhecimento) e da prática, e essa unidade precisa, na teoria do conhecimento, resulta na “Idéia absoluta”. (Lênin, Cadernos Filosóficos). Devemos ver essa sentença muito cuidadosamente: notavelmente, há a divisão da palavra “conhecimento” em duas. Esse é um ponto crucial, onde nós vamos voltar muitas vezes: conhecimento, como teoria, é (dialeticamente) oposto à prática. Teoria e prática formam uma unidade, isso quer dizer, para a dialética, a unidade dos opostos. Mas esse conhecimento baseado na contradição teoria/prática é por sua vez o próprio objeto da teoria do conhecimento. Em outras palavras, a natureza íntima do processo do conhecimento é constituído pela contradição teoria/prática. Ou, reafirmando, a prática, que, como tal, é dialeticamente oposta ao conhecimento (à teoria), é, contudo, parte integrante do processo do conhecimento.
Em todos os textos marxistas, nós encontramos esta cisão, essa dupla ocorrência da palavra “conhecimento”, designando tanto teoria em sua relação dialética com a prática, quanto o processo global dessa dialética, ou seja, o movimento contraditório entre os dois termos. Consideremos Mao, em “De onde vêm as idéias corretas?”: “Certamente, o conhecimento correto pode ser alcançado apenas depois de muitas tentativas desse processo ... lidando da prática ao conhecimento, e depois retornando à prática. Essa é a teoria marxista do conhecimento, a teoria materialista dialética do conhecimento” (Mao Tsé-Tung, Cinco Ensaios Filosóficos). O movimento do conhecimento é este: prática-conhecimento-prática. Aqui, “conhecimento” significa um dos termos do processo, mas da mesma forma o processo tomado como um todo, um processo que, por sua vez, inclui duas ocorrências da prática, uma inicial e outra final. Para estabilizar nosso vocabulário, e permanecer dentro da tradição, nós chamaremos de teoria o termo da contradição teoria/prática cujo movimento global será o processo do “conhecimento”. Diremos: o conhecimento é o processo dialético entre prática/teoria.
Com base nisso, podemos destruir a ilusão reacionária daqueles que imaginam poder contornar a tese da primazia estratégica da prática. É claro que, quem não está dentro do movimento revolucionário real, quem não participa internamente da rebelião contra os reacionários, nada sabe, mesmo que teorize.
Mao Tsé-Tung, na verdade, afirma que na contradição teoria/prática – isto é, numa fase do processo real – a teoria poderia temporariamente assumir o papel principal: “A criação e defesa de uma teoria revolucionária desempenha papel primordial e decisivo como se pode observar na afirmação de Lênin: ‘Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário’” (Mao, Sobre a Contradição). Isso quer dizer que, no momento citado por Lênin, a teoria ganha uma intrínseca possibilidade revolucionária, onde os “teóricos marxistas puros” podem e devem surgir? Absolutamente não. Significa que, na contradição teoria/prática, que constitui o processo do conhecimento, a teoria é o principal aspecto da contradição; que a sistematização das experiências revolucionárias práticas é o que permite avançar; que é inútil continuar a acumular quantitativamente essas experiências, porque o que está na ordem do dia é o salto qualitativo, a síntese racional seguida imediatamente por sua aplicação, ou seja, sua verificação. Mas, ao mesmo tempo, sem essas experiências práticas, sem a prática organizada (porque organização apenas permite a centralização das experiências), não há sistematização, nem conhecimento, de qualquer modo. Sem uma aplicação generalizada não há testabilidade, nem verificação, e muito menos verdade. Nesse caso, a “teoria” só pode dar nascimento a absurdos idealistas.
Assim, nós voltamos ao ponto inicial: a prática é interna ao movimento racional da verdade. Na sua oposição à teoria, é parte do conhecimento. É essa intuição responsável pelo entusiasmo de Lênin na concepção hegeliana de Idéia absoluta, a ponto de colocar Marx dentro de uma mera continuação de Hegel. (“Marx, portanto, permanece ao lado de Hegel na introdução do critério da prática dentro da teoria do conhecimento”, Lênin, Cadernos Filosóficos.). A sentença de Mao Tsé-Tung capta com precisão o entusiasmo de Lênin. Ela é o conteúdo geral histórica da afirmação dialética de Hegel. Não é qualquer prática que internamente se junta à teoria, é precisamente a rebelião contra os reacionários. A teoria, por sua vez, não guia externamente a prática, na rebelião: ela se incorpora na rebelião, sendo mediadora, através da liberação de sua razão. Nesse sentido, é verdade que a sentença de Mao diz tudo, um tudo que resume a posição de classe do marxismo, sua concreta significância revolucionária. Um todo que exclui qualquer um que tente considerar o marxismo não do ponto da revolução, mas do sentido do intervalo; não do ponto de vista da história, mas do ponto de vista do sistema; não do ponto de vista da primazia da prática, mas da primazia da teoria; não como ciência da classe trabalhadora, mas como sua condição a priori.

B. Os três sentidos da palavra “razão/justeza”

Se a sentença de Mao diz tudo, ela o faz de acordo com a dialética, isto é, de acordo com uma simplicidade que se divide. O que concentra e sustenta essa divisão, embora aparentemente oculte isso, é a palavra “razão/justeza” ou “direito”: é um direito, a rebelião é justa, uma razão para se levantar contra os reacionários. O fato é que, através da palavra “razão/justeza”, a sentença diz três coisas, e é a articulação entre os três que faz o todo.
1. É justo rebelar-se contra os reacionários não significa, em primeiro lugar, “deve-se rebelar contra os reacionários”, mas sim “uma revolução contra os reacionários” – isso é um fato, e esse fato é a razão. A sentença diz: primazia da prática. A revolução não espera pela sua razão, revolução já é o que sempre esteve lá, por qualquer motivo que seja. O marxismo simplesmente diz: revolução é razão, revolução é sujeito. O marxismo é a recapitulação do conhecimento da revolução. Por que escrever o Capital, centenas de páginas de análises minuciosas, de laboriosa inteligência, volumes de dialéticas que muitas vezes estão nos limites da inteligibilidade? Porque só assim pode-se chegar à profundidade do conhecimento revolucionário.
A densidade histórica e a obstinação da revolução precedem o marxismo, acumulando as condições e necessidades de sua aparência, porque elas insinuam a convicção de que, além das causas particulares que provocam a insurreição proletária, existe uma razão profunda, que não pode ser suprimida. O Capital de Marx é a sistematização, em termos gerais da razão, do que é dado pela soma histórica das causas. A burguesia, que percebe e reconhece a luta de classes, tem o prazer de admitir e investigar as causas particulares de uma revolução apenas se for para impedir o seu retorno. Mas ela ignora sua razão, a qual, mesmo quando tudo já está dito e feito pelos proletários, ela permanece – razão que nenhuma assimilação de causas e circunstâncias jamais irá satisfazer. Os esforços de Marx pretendem refletir o que é dado, não tanto pelas particularidades das batalhas, mas sim pela persistência e desenvolvimento da energia da classe investida nelas. O pensamento de causas não é suficiente aqui. A razão para essa persistência é que deve ser levada em conta com profundidade. A essência da posição proletária não reside nos episódios da luta de classes, mas no projeto histórico que os subentendem, projeto este cuja forma de existência prática é dada pela duração implacável dos estágios sucessivos da obstinação proletária. É aí que se reside a razão. Somente com a clarificação e exposição – simultaneamente, à guisa de reflexões e diretrizes – se faz justiça ao movimento, que a revolução traz à luz, dos fenômenos de classes existentes.
Atualmente, somente o maoísmo desenvolve integralmente a ação do proletariado e nos permite conhecer através do caráter permanente e incondicional de sua revolução. Só assim podemos dizer: sim, a contradição é antagônica; sim a revolução proletária, que é o fogo no coração dessa contradição, é a grande razão da história. “É justo rebelar-se contra os reacionários” significa, acima de tudo: os proletários obstinados e intransigentes estão certos, eles têm todas as razões do lado deles, e muito mais.
2. “É justo rebelar-se contra os reacionários” também significa: a revolução estará certa, ela terá a razão ao seu lado. No tribunal da história, os reacionários terão que providenciar razões para explicar todos os seus crimes de exploração e opressão. A obstinação da revolução proletária é, certamente – e esse é o primeiro significado da palavra “razão/justeza”, ou “direito” –, o caráter irredutível da contradição objetiva que opõe os trabalhadores contra a burguesia, mas também é a certeza da vitória final; é a crítica incessantemente renovada ao derrotismo do trabalhador. O atual estado das coisas é inaceitável e contraditório – essa é a primeira razão para a rebelião contra os reacionários. O atual estado é também transitório e fadado – eis o segundo motivo. Essas são as razões, não do ponto de vista da motivação ou do momento, mas sim do ponto de vista do futuro. Elas apontam no sentido da vitória, que vai além da legitimidade. A revolução é sabedoria porque é apenas, porque é fundada na razão, mas também porque é nela que se determina o futuro. O marxismo repudia qualquer concepção de razão exclusivamente com base em justificações. O proletariado não se limita em ter verdadeiros motivos para se rebelar, ele tem os motivos vitoriosos. A “razão” está no cruzamento entre a legitimidade revolucionária e o otimismo revolucionário.
A revolução é alérgica à máxima moral de Kant: “Você deve, portanto, você pode”. Além disso, Kant concluiu que um ato regulado nos termos do direito puro, sem dúvida, nunca tinha lugar. A moralidade é uma receita derrotada. Mas a rebelião dos trabalhadores tem de fato ocorrida e encontra no marxismo seu local de receita vitoriosa. A razão marxista não é um dever, um dever de ser, é a afirmação do próprio ser, o poder ilimitado que se levanta, se opõe, contradiz. É a vitória objetiva da rejeição popular. De acordo com o materialismo, a razão dos trabalhadores diz: “Você pode, portanto, você deve”.
3. Porém, “razão/justeza” significa ainda outra coisa, e essa coisa é a fusão dos dois primeiros sentidos. Desta vez, “é justo rebelar-se contra os reacionários” significa: a revolução pode ser reforçada pela consciência de sua própria razão. A declaração em si (“é justo rebelar-se contra os reacionários”), é tanto desenvolvimento de núcleos de conhecimento interno para a revolução em si, quanto o retorno à revolução desse desenvolvimento. A revolução – que é justa, que tem razão – acha no marxismo os meios de desenvolver essa razão, de assegurar sua razão vitoriosa. Isso permite que a legitimidade da revolução (o primeiro sentido da palavra “razão”) articule-se com a vitória (segundo sentido da palavra “razão”), formando uma nova fusão entre revolução como prática que sempre está lá e como forma desenvolvida de sua razão. A fusão do marxismo e do movimento operário real é o terceiro sentido da palavra “razão”, isto é, a relação dialética, objetiva e subjetiva, dos dois primeiros sentidos.
Nós encontramos aqui, mais uma vez, o estado dialético das declarações marxistas, que são divididas de acordo com a reflexão e de acordo com a diretriz: é um estado de ambição, que vai além das causas particulares, é a própria razão da energia de classe. Do mesmo jeito, a teoria formula a regra segundo a qual a razão pode prevalecer sobre a causa, o global sobre o local, o estratégico sobre o tático. A revolução formula sua razão durante a prática; mas a afirmação de esclarecer a razão dessa quebra com a regra é que a comanda durante a ação. A revolução arma-se com sua própria razão, ao invés de simplesmente implementá-la de fora. Nisso consiste sua qualidade racional: ela organiza sua razão e define os instrumentos de sua vitória.
Sabendo que é um direito rebelar-se contra os reacionários, mediante a demonstração da razão/justeza (teórica) dessa razão/justeza (prática), é possível tornar o subjetivo (organização, o projeto) igual ao objetivo (luta de classes, revolução). A “razão/justeza”, que inicialmente expressava legitimidade e otimismo revolucionários, agora fala da consciência e do domínio da história.

C. Razão como contradição

“É justo rebelar-se contra os reacionários” é, de fato, uma sentença que diz tudo sobre o movimento histórico, porque ela exprimi a energia, o sentido e o instrumento desse movimento. Sua energia é a luta de classes, a racionalidade objetiva interna da revolução. Seu sentido é o colapso inevitável do mundo de exploração e opressão – ou seja, a razão comunista. Seu instrumento é a possível relação, dentro da história, entre energia e sentido, entre luta de classes (que é, sempre, e em todo lugar, o motor da história) e o projeto comunista (que é, sempre, e em todo lugar, o valor promovido pela revolução dos oprimidos). Seu instrumento é a razão tornada sujeito, isto é, o Partido.
“É justo rebelar-se contra os reacionários” exprimi o todo, porque ela fala da luta de classes e da primazia da prática, do comunismo e do definhamento do Estado, do Partido e da ditadura do proletariado. A sentença manifesta a razão integral, que é razão dividida, de acordo com o subjetivo e o objetivo, com a realidade e o projeto, o ponto final e as etapas. E nós podemos ver como essa razão integral é contraditória: é impossível estar certo e ter razão sozinho, e para si mesmo. Só se está certo, só se tem razão contra os reacionários. Estar contra os reacionários é estar sempre certo, estar “contra os reacionários” é uma condição interna da verdade. É por isso que a sentença de Mao Tsé-Tung resume o marxismo; ela diz: toda razão é contradição. “As idéias corretos nascem na luta contra idéias erradas”, a razão é criada na rebelião contra o absurdo, contra o que os chineses invariavelmente chamam de “absurdos reacionários”.
Toda verdade afirma-se na destruição de um absurdo. Toda verdade é, portanto, essencialmente destruição. Tudo que simplesmente conserva é simplesmente falso. O campo do conhecimento marxista é constantemente um campo em ruínas.
A sentença de Mao Tsé-Tung nos diz toda a dialética: a essência de classe da razão como rebelião encontra-se na luta até a morte de opostos. A verdade só existe em um processo de cisão. A teoria das contradições está totalmente envolvida na ciência histórica dos revolucionários. É por isso que a dialética sempre existiu, como as rebeliões. A dialética filosófica contém a concepção de mundo dos explorados, que se levantam contra o mundo atual e pela sua mudança radical. E, por isso, essa é uma tendência filosófica eterna, que incessantemente se opõe à opressão metafísica conservadora: “Ao longo da história do pensamento humano, existiram duas concepções sobre a lei do desenvolvimento do universo: a concepção metafísica e a concepção dialética, que constituem duas visões de mundo opostas” (Mao Tsé-Tung, Sobre a Contradição).
É sempre uma questão de dar continuidade à dialética, sua continuidade contra a metafísica, que significa: dar razão aos revolucionários, para dizer que eles estão certos. Nos tempos de hoje, dar razão ao verdadeiro marxismo contra o falso. Para os maoístas, contra os revisionistas.

A militância comunista do escritor Graciliano Ramos

Reproduzimos o artigo de EDVALDO CORREA SOTANA - Doutorando em História pela UNESP/ Assis e Professor da Faculdade de Presidente Prudente (FAPEPE/ UNIESP), publicado na Revista Espaço Acadêmico nº 61 de 2006, disponível no link: http://www.espacoacademico.com.br/061/61sotana.htm

O texto continua com análises sobre a literatura brasileira modernista iniciadas nesse blog com nosso ensaio sobre Drummond. Ao mesmo tempo relaciona-se com o ensaio referido de forma também crítica, ou pelo menos complementar: se no caso de Drummond, não se fez referência ao dogmatismo do PCB à época, nesse artigo isso fico claro. Mas a temática sobre engajamento político das camadas pequeno-burguesas e artísticas, suas contradições e possibilidades, continua vigente.

A publicação também vem a calhar já que mês passado se completaram 59 anos da morte de nosso sisudo escritor e comunista nordestino.




Graciliano Ramos já foi considerado por muitos especialistas como um dos maiores escritores brasileiros. O romancista produziu livros diversos que, ainda hoje, são extremamente conhecidos do público leitor.  É autor, por exemplo, de livros como Infância, Insônia, Angústia, São Bernardo, Vidas Secas e Caetés. Mas é outro aspecto da sua trajetória que pretendemos tratar nesse breve texto. O texto busca abordar alguns aspectos relacionados à militância comunista de Graciliano Ramos.
Antes, porém, cabe lembrar um importante aspecto institucional da atuação política de Graciliano Ramos. O escritor atuou como prefeito da cidade alagoana de Palmeira dos Índios (1928-1930). Nesse cargo, não favoreceu amigos e produziu relatórios dirigidos ao Governador do Estado. Os relatórios impressionam os leitores pela enorme qualidade literária, característica incomum nos textos produzidos pela maioria dos políticos brasileiros. O romancista também exerceu um outro cargo importante. Durante alguns anos foi o diretor da Imprensa Oficial de Alagoas.
É possível afirmar que o escritor entrou em contato com as idéias e propostas comunistas antes mesmo de ingressar no Partido Comunista do Brasil (PCB). O escritor chegou a ser preso sob a acusação de produzir livros vinculados a doutrina comunista, ainda no ano de 1936. A falta de provas devolveu-lhe a liberdade alguns meses depois. Mas as marcas da prisão ficariam para sempre na sua vida, tal como demonstrou no seu Memórias do Cárcere, publicado postumamente em 1953. Além disso, o contato estabelecido com os comunistas na prisão pode ter aproximado Graciliano Ramos do ingresso no partido.
Não obstante a arbitrariedade da prisão, parece possível ressaltar que algumas obras do escritor realmente estavam extremamente preocupadas com a realidade social no Brasil. Uma breve leitura dos romances São Bernardo (1936) e Vidas Secas (1939) pode sustentar essa idéia. Assim, um trabalho de fôlego sobre a militância política do escritor deve recorrer as duas obras citadas. Deve, igualmente, tratar do período em que o escritor ocupou os cargos de Prefeito de Palmeira dos Índios e de Diretor da Imprensa Oficial de Alagoas. Deve procurar entender, por fim, a sociabilidade que o escritor construiu com alguns militantes comunistas ainda na prisão. Certamente, todos esses aspectos devem ser considerados para desvendar a militância política de Graciliano Ramos nos anos anteriores à sua adesão ao PCB.
No momento, convém lembrar alguns momentos mais próximos da sua adesão formal ao PCB. A casa do escritor serviu de palco para a realização de diversas reuniões entre intelectuais, dentre os quais estavam alguns comunistas ou simpatizantes do comunismo. Serviu também de espaço para debates sobre política e literatura. Os debatedores tratavam especialmente do fim do Estado Novo e da reorganização do PCB a partir da Conferência da Mantiqueira, que foi realizada em 1943. Por isso, as reuniões possibilitaram ao escritor alagoano um maior contato com idéias, propostas e preocupações dos comunistas antes mesmo de ingressar no partido. (MORAES, 1993, p.207).
A filiação formal de Graciliano Ramos ao PCB ocorreu apenas em 1945. Um encontro com Prestes, numa viagem para Belo Horizonte, aproximou muito a sua adesão, formalizada com a assinatura da ficha de inscrição em 18 de agosto de 1945. Uma de suas primeiras atividades como militante foi visitar a redação da Tribuna Popular, periódico comunista que o saudou, em matéria publicada no dia seguinte, como o “maior romancista brasileiro”. Também acompanhou o desfile das células do PCB e dos comitês democráticos na recepção aos pracinhas da FEB. Integrou comissões que se reuniam na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para intensificar a batalha pela Constituinte e participou de festas que visavam arrecadar fundos para os comitês e organismos do PCB.
O partido exibia sua adesão como um troféu, pois tratava-se de um escritor consagrado que reforçaria o prestígio dos comunistas no meio intelectual. O entusiasmo com as filiações de personalidades levou o Comitê Central a organizar, no auditório do Instituto Nacional de Música, uma solenidade para entregar as credenciais dos novos membros. Entre os agraciados com as carteirinhas estava Graciliano Ramos (MORAES, 1993, p.210-13). Deve-se observar que isso era possível por que o partido estava legalizado nesse período, um fato muito raro em toda a história do PCB.
Mesmo requisitado para diversas tarefas partidárias, Graciliano Ramos ficou, de agosto até dezembro de 1945, sem base no partido. Assim, teve que freqüentar o comitê distrital da Tijuca nesse período de espera por orientação. Com o fim das eleições o partido agrupou intelectuais como Graciliano Ramos, Alina Paim e Ignácio Rangel na célula Theodore Dreisser, homenagem a um escritor norte-americano. Subordinada ao Comitê Central, a célula foi instalada numa das salas da editora comunista Horizonte, no centro do Rio de Janeiro. Nos encontros, os participantes organizavam a divulgação das teses partidárias por meio da produção de artigos, elaboração de conferências, em conversas ou reuniões (Ibid., p.207-218).
A filiação formal de Graciliano Ramos ao comunismo não abriu uma ampla possibilidade de produção de idéias sobre a transformação social do Brasil. Sua militância partidária foi marcada por um complexo paradoxo. O intelectual mantinha uma relação de conflito com a direção partidária, mas, mesmo assim, emprestava todo o prestígio de seu capital cultural ao partido.
Assim, o autor de Vidas Secas é relembrado nas memórias de sua filha como um militante discreto que afirmava suas convicções na livraria, na rua, com certa impertinência e sem muito senso de oportunidade. De acordo com as lembranças de sua filha, Graciliano Ramos limitava-se a freqüentar a célula Theodore Dreiser, que congregava escritores comunistas e a pronunciar discursos em comícios. O escritor chegou aceitar a candidatura ao cargo de Deputado Federal pelo Estado de Alagoas. Como candidato, porém, demonstrou não desejar a própria eleição, pois em vez de partir para a campanha eleitoral, deu-se por satisfeito em encaminhar um manifesto aos seus amigos, o que não foi suficiente para elege-lo (RAMOS, 1979, p.167-69).
Graciliano Ramos também compareceu aos comícios em favor da candidatura de Astrogildo Pereira para o cargo de vereador no Rio de Janeiro, nas eleições de 1947 (Moraes, 1993, p.235). Na visão dos dirigentes, sua presença nos comícios carrearia votos do eleitorado mais politizado. O militante compareceu a vários comícios, mesmo com muita dificuldade para falar em público.
Dentre as suas propostas, figurava o plano de utilizar a organização partidária, sobretudo a célula Theodore Dreiser, para descobrir talentosos escritores no interior do país, pois considerava que a literatura não deveria permanecer circunscrita a uma classe social. Propunha que o partido, por meio do sistema de células partidárias ramificadas por todos os estados, recolhesse páginas escritas por estudantes, operários, comerciantes, marinheiros, enfim por aqueles que tivessem talento. O material coletado deveria ser encaminhado para célula Theodore Dreisser que, ao localizar um possível talento, se encarregaria de prepara-lo com cursos para lança-lo à carreira literária (RAMOS, 1979, p.169-70). Aprovada sua idéia, o periódico Tribuna Popular publicou uma nota estimulando o envio dos textos e afirmando que aqueles que tivessem valor literário seriam publicados pelas editoras do PC. Entretanto, Diógenes Arruda, ao tomar conhecimento da iniciativa, concluiu que a célula havia decidido à revelia da direção partidária. O ato de quebra da hierarquia foi coibido com a dissolução da célula, o que levou Graciliano Ramos a retornar ao comitê distrital da Tijuca (MORAES, p.1993, p.218).
Esse acontecimento demonstra que a vinculação ao PCB não era meramente simbólica. A adesão ao partido implicava em aceitar ou conviver com a ideologia e as normas partidárias, que incluíam a disciplina e o cumprimento das mais variadas tarefas partidárias, habitus que deveriam ser incorporados pelos intelectuais que aderiam ao partido.
Por habitus pode-se entender disposições no sentido de esquemas de percepção, apreciação e ação adquiridos socialmente ou incorporados pelos agentes devido sua posição no espaço social por um prolongado tempo (BOURDIEU, 2000,p.61). Eles são diferenciados, mas também operam distinção, pois colocam em prática princípios de diferenciação diferentes ou utilizam diferencialmente os princípios de diferenciação comuns. São princípios geradores de práticas distintas e distintivas, esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão social do mundo. As diferenças nas práticas, nos bens possuídos e nas opiniões expressas, ao serem percebidos por meio dessas categorias sociais de percepção, desses princípios de visão e de divisão do mundo, tornam-se diferenças simbólicas (BOURDIEU, 1996, p.22).
Pode-se salientar que Graciliano Ramos não era o único que precisa incorporar uma série de disposições para permanecer no PCB. Para compreender as disposições que os militantes comunistas precisavam incorporar é possível recorrer a Osvaldo Peralva. No seu Pequena História do Mundo Comunista, o militante Osvaldo Peralva (p.170) ressalta que o partido traçava uma orientação que, certa ou errada, era qualificada, para todos os efeitos, de “justa”. Peralva informa também que o militante que se desviasse dessa orientação, tanto para esquerda quanto para direita, logo recebia os mais diversos rótulos dos dirigentes partidários, uma espécie de “etiqueta na testa”, em que constava afirmações como “está querendo passar contrabando ideológico, acha-se sob a influência da burguesia, é um aventureiro, um sectário!” .
Leôncio Basbaum é um outro militante que colabora com essa visão. Para Basbaum (1962, p.149) o partido tinha sido transformado em uma organização com “autômatos inconscientes que apenas sabiam cumprir ordens, porque alguém pensava por eles”
Dessa forma, aqueles intelectuais que manifestavam certa autonomia com relação às posições partidárias não mantinham uma relação harmônica com os membros da direção do PCB ou, até mesmo, com boa parte dos militantes comunistas brasileiros. Esse parece ser o caso de Graciliano Ramos e de outros intelectuais que limitaram no PCB. Assim, parece necessário pensar sobre a relação dos intelectuais comunistas brasileiros com o PCB[1].
Por enquanto, pode-se ressaltar que Graciliano Ramos demonstrou uma certa autonomia com relação às diretrizes partidárias por diversas vezes. A própria Clara Ramos relembra que seu pai sempre questionou a orientação que determinava igualdade de tarefas para operários e intelectuais, alegou incompetência para pichar paredes e fazer flores de papel para venda em quermesses (RAMOS, 1979, p. 170). O escritor também criticou o realismo socialista e alguns aspectos da vida soviética após ter realizado uma viagem à União Soviética[2]. As criticas ao país dos soviéticos não foram aceitas pela direção partidária que trabalhou intensamente para que dois dos seus romances não fossem publicados, Memórias do Cárcere (1953) e Viagem (1954).
Durante muito tempo o escritor foi combatido pela direção partidária em função desses diversos rompantes de autonomia frente às diretrizes partidárias. Mesmo assim, o partido procurava emprestar toda o capital cultural que o escritor possuía no meio intelectual. Seu prestígio era fundamental para o partido. Por isso, Graciliano Ramos não pode ser considerado um rebelde no partido, mas apenas um militante que se opunha às diretrizes tomadas pela direção partidária a revelia dos militantes. Enfim, parece que o partido perdeu a chance de aproveitar um pouco da visão de mundo daquele que como poucos sabia enxergar a realidade brasileira, tal como bem demonstrou na sua contundente e realista criação literária.
Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.
______. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
BASBAUM, Leôncio. História Sincera da Republica: de 1930 a 1960. São Paulo: Edições LB, 1962.
MORAES, Dênis de. O Velho Graça: Uma Biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
PERALVA, Osvaldo. Pequena História do Mundo Comunista. s/d.
RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. 31. ed. São Paulo: Martins Editora, 1986. 2. vols.
RAMOS, Clara. Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
SOTANA, E.C. Relatos de viagens à URSS em tempos de Guerra Fria: uma prática de militantes comunistas brasileiros. Assis, 2003, 253p. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, 2003.
[1] Essa problemática está sendo estudada pelo autor do presente artigo.
[2] Sobre a viagem que Graciliano Ramos realizou à União Soviética e sobre as impressões que registrou sobre o país dos soviéticos consultar a Dissertação de mestrado que procurou analisar as viagens dos comunistas brasileiros à União Soviética : SOTANA, E.C. Relatos de viagens à URSS em tempos de Guerra Fria: uma prática de militantes comunistas brasileiros. Assis, 2003, 253p. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, 2003.