1ª Parte
É com muito gosto que estou em Harvard para falar convosco sobre os
comunismo. A minha conferência tem cinco temas principais:
- Como é que a actual atmosfera intelectual e académica restringe e
mutila o discurso do que é possível fazer no mundo.
- O que são de facto o socialismo e o comunismo – e o que não
são.
- Como o que «todos sabemos», bem como a erudição académica «de
última geração» sobre a experiência das revoluções socialistas do
século XX, são propagadas com distorções e mentiras... e como isso
retira às pessoas a capacidade de compreensão.
- Um olhar sobre a mais importante experiência revolucionária até
hoje, a Revolução Cultural na China: os seus objectivos, os seus
êxitos e as suas limitações.
- Como é que a nova síntese de Bob Avakian permite que a humanidade
vá mais longe e faça melhor a revolução socialista no mundo de
hoje.
Espero que daqui resulte uma vigorosa e frutuosa troca de perguntas
e respostas. Por isso, deixem-me começar.
Introdução: A ignorância institucionalizada
| |
| Vladimir Ilitch Lenine, líder da
Revolução Russa, dirige-se às massas |
Imaginem-se numa situação em que os creacionistas fundamentalistas
cristãos tinham tomado o poder global e que depois tinham suprimido
todo o conhecimento sobre a evolução. Imaginem que eles tinham mesmo
chegado a executar e encarcerar os mais proeminentes cientistas e
professores que insistiam em ensinar a evolução e em levá-la ao
conhecimento público. E que tinham caluniado e denunciado o facto bem
estabelecida da evolução, criticando-o e ridicularizando-o como teoria
distorcida e perigosa que contradiz a «verdade» bem conhecida da
história bíblica da criação e as noções religiosas de «lei natural» e
«ordem divina».
Para continuarmos a analogia, imaginem que, nesta situação,
muitas «autoridades» intelectuais, juntamente com outras pessoas que
seguem na sua esteira, apanham o comboio e dizem coisas como: «não
só foi ingenuidade como foi mesmo criminoso acreditar que a evolução
era uma teoria científica bem documentada, não devíamos ter imposto
essa convicção às pessoas». E que algumas autoridades intelectuais
faziam declarações como: «Mas agora podemos ver que é ‘conhecimento
comum’, que ninguém questiona – e que nós também não questionaremos;
podemos ver que é conhecimento comum que a evolução encarna uma certa
visão do mundo e leva a actos desastrosos para os seres humanos. Fomos
enganados pela garantia arrogante dos que propagaram essa noção.
Podemos ver que tudo o que existe, ou existiu, não poderia ter sido
criado sem a mão guiadora de um ‘projectista inteligente’.»
Continuando nesta «experiência conceptual», suponhamos que, nesta
situação, há mesmo muitos intelectuais progressistas e radicais que
ficam desorientados e desmoralizados. E que são intimidados ao
silêncio.
[1]
Bem, isto é uma analogia com a situação que existe na vida e no
discurso intelectual em relação ao comunismo. É agora aceite sem
discussão o veredicto de que o comunismo é um fracasso. Pensadores
radicais que antes contestavam as mentiras anticomunistas e que
abriam os seus olhos e os dos estudantes para a experiência actual e
libertadora da revolução comunista – muitos desses académicos
progressistas aceitaram esse veredicto sem reflexão.
Vejam que, nos anos 1960, o mundo fervilhava com a revolução. A
revolução chinesa inspirou pessoas em todo o mundo. Os movimentos
mais revolucionários e de maior alcance dos anos 1960 – seja o dos
Panteras Pretas ou os de libertação feminina radical – foram
influenciados pela revolução comunista, e sobretudo pela Revolução
Cultural na China. E isso teve um impacto nas universidades –
incluindo aqui mesmo em Harvard – na forma como as pessoas viam as
suas vidas e o significado e os objectivos do trabalho intelectual.
Mas desde a derrota da revolução na China em 1976, já lá vão quase 35
anos, tem havido uma ofensiva ideológica incessante contra a revolução
comunista. E isto tem tido importantes consequências.
Eu sei que há pessoas nesta sala que querem fazer algo de
significativo com as suas vidas em benefício da humanidade. Talvez
alguns de vós queiram dedicar as vossas energias à resolução da
emergência ambiental que enfrentamos... ou a ensinar nas zonas urbanas
marginalizadas... ou a explorar através das artes na esfera da
imaginação e da metáfora como é que as pessoas são e poderiam ser, e
como é que o mundo é e poderia ser.
Mas, independentemente das vossas paixões e convicções, este
sistema tem a sua própria lógica que tudo molda. Estou a falar de um
sistema que funciona na base do lucro. Estou a falar de uma economia
que é a base de um império: um sistema global de exploração em que
os Estados Unidos se arrogam para si próprios o «direito» de fazerem
a guerra e de invadirem e ocuparem outros países. Estou a falar de um
sistema económico protegido por instituições governamentais e por uma
máquina militar de morte e destruição. Estou a falar dos valores e
ideias que são promovidos nesta sociedade.
Vocês sabem que é urgente tomar medidas radicais para inverter a
catástrofe ambiental iminente. Mas o que se faz – na realidade o que
não se faz para enfrentar a emergência ambiental, de que a Cimeira de
Copenhaga é o mais recente exemplo indigno – é movido e limitado pelos
mecanismos do mercado mundial capitalista... pelo equil]ibrio
financeiro capitalista... e pelas relações de poder e lutas de poder
entre os Estados Unidos e as outras grandes potências opressoras.
Vocês querem ensinar «verdades incómodas» sobre a verdadeira
história da América e o seu papel no mundo? Bem, devem fazê-lo, mas
irão ser pressionados e ameaçados e provavelmente irão ficar sem
emprego. Se uma mulher quiser romper com as convenções e os
estereótipos, irá enfrentar toda uma vida de olhares ameaçadores,
ameaças físicas e imagens sexuais degradantes que reflectem e reforçam
as tradições escravizadoras e a subordinação.
| |
| Manifestação na Nevsky Prospekt, São
Petersburgo, Julho de 1917, um dos muitos levantamentos das massas que
precederam a Revolução de Outubro na Rússia (Foto: Rheta Louise Childe Dorr) |
Nós precisamos de um sistema diferente. A humanidade precisa de
uma «revolução total»: na economia, na política, na cultura e na
moral. E a verdade é que nós podemos criar um mundo sem exploração
onde a humanidade pode florescer. Mas, e isto é uma cruel ironia,
precisamente numa altura em que o capitalismo está em crise,
quando toda a sua irracionalidade e o sofrimento que inflige se estão
a intensificar exponencialmente – neste preciso momento, dizem-nos:
«não é possível ir além do capitalismo; o melhor que podemos fazer são
pequenos ajustes dentro dos seus limites».
É como se tivesse sido afixado uma etiqueta de aviso quanto ao
discurso sobre a possibilidade humana. Perigo - tudo o que desafie o
capitalismo de uma forma fundamental é, no melhor dos casos, um sonho
impossível e, no pior, uma utopia impraticável imposta de cima que
resultará num pesadelo. Atenção - o projecto de fazer a revolução e
construir uma economia e uma sociedade que promovam e sirvam o bem
comum contradiz a natureza humana, a lógica económica e o próprio
curso da história. Alerta - chegámos ao fim da história: a sociedade
ocidental representa o ponto supremo e final do desenvolvimento
humano.
Na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), na de Nova
Iorque (NYU) e na de Chicago distribuímos um questionário de escolha
múltipla sobre factos básicos relativos ao comunismo. Não eram coisas
obscuras nem enigmáticas. Fizémos perguntas como: durante os anos 1930
qual foi o único país da Europa de Leste que se ergueu contra o
anti-semitismo? A resposta é a União Soviética.
[2] Perguntámos: nos
anos 1960 qual foi o único país do mundo em que o governo e os líderes
apelaram às pessoas que se revoltassem contra a autoridade
institucional opressora? A resposta é a China maoista.
[3] Os resultados das
respostas foram péssimos – a pontuação média do teste foi de cerca de
58 em 100. Por outras palavras, as pessoas reprovaram.
Isto é uma vergonha. Porque no século XX aconteceu algo histórico
a nível mundial e as pessoas não sabem o mais básico sobre isso. As
primeiras sociedades socialistas forjaram-se através de revoluções
monumentais, do levantamento dos miseráveis da Terra: na União
Soviética entre 1917 e 1956 e na China entre 1949 e 1976. Estas foram
as primeiras tentativas na história moderna de criar sociedades livres
da exploração e da opressão – o socialismo. E a experiência dessas
revoluções... muda tudo. O mundo não tem de ser desta maneira e nós
podemos conseguir mais e melhor numa nova vaga da revolução.
O socialismo e o comunismo explicados
Então, o que é o socialismo? Clarifiquemos alguma da confusão. O
socialismo não é apenas a propriedade governamental de algumas
empresas ou uma ou outra regulação governamental – todos os governos
capitalistas o fazem. E o socialismo não é o que Obama está a fazer –
Obama não é socialista.
Na realidade, o socialismo consiste em três coisas:
Primeiro, o socialismo é uma nova forma de
poder
político em que os que antes eram oprimidos e explorados, em
aliança com as classes médias e profissionais e a grande maioria da
sociedade, governam a sociedade sob a liderança de um partido
visionário de vanguarda. Esta nova forma de poder de estado mantém
refreados tanto os velhos como os novos exploradores. Ela torna
possível uma democracia que: (a) liberta a criatividade e a iniciativa
das pessoas em todo o tipo de direcções e (b) dá às massas populares o
direito e a capacidade de mudarem o mundo e de se envolverem num
processo de decisão com sentido que promove um debate de maior alcance
e protege os direitos individuais. Este novo estado socialista de que
estou a falar serve de plataforma de lançamento para a revolução em
todo o mundo
Segundo, o socialismo é um
novo sistema económico
onde os recursos e as capacidades produtivas da sociedade são
propriedade social através da coordenação do estado socialista. Nele,
a produção é organizada e planificada de uma forma consciente para
satisfazer as necessidades sociais e para eliminar as desigualdades da
sociedade capitalista de classes – tais como a opressão das
nacionalidades minoritárias e a subordinação da mulher. É uma economia
organizada para promover a revolução no mundo e proteger o planeta. A
exploração e a supremacia do lucro deixarão de reger a sociedade e a
vida das pessoas. Já não serão as grandes empresas farmacêuticas e os
conglomerados financeiro-seguradores a determinar as condições de
fornecimento de cuidados de saúde e a investigação médica. Deixarão de
existir. Também deixará de haver uma General Motors e uma Boeing a
enviesarem o desenvolvimento dos transportes e a produção de energia
com o objectivo do lucro.
Terceiro, o socialismo é um
período histórico de
transição entre o capitalismo e o comunismo, um período de
luta e experimentação revolucionária para transformar todas as
estruturas económicas, todas as instituições e arranjos sociais e
todas as ideias e valores que perpetuam a divisão da sociedade em
classes.
| |
| Tropas das grandes potências imperialisas
(EUA, Grã-Bretanha e Japão) em parada em Vladivostok em 1917 em apoio
ao Exército Branco que tentou esmagar a Revolução Russa
(Foto: Albert Rhys Williams) |
E o que é o comunismo? Aqui, quero ler-vos parte da declaração
«A Revolução de que precisamos... A liderança que temos», do
Partido Comunista Revolucionário:
O comunismo [é] um mundo em que as pessoas trabalham e lutam juntas
pelo bem comum... em que todas as pessoas contribuem para a sociedade
tudo o que podem e recebem tudo o que precisam para viverem uma vida
digna de seres humanos... em que deixa de haver divisões entre as
pessoas em que algumas dominam e oprimem as outras, roubando-lhes não
só os meios para terem uma vida decente, mas também o conhecimento e
os meios para realmente compreenderem o mundo e agirem para o
mudar.[4]
As revoluções na Rússia e na China, durante o que equivale a um
«nanossegundo» na história humana, conseguiram fazer coisas
surpreendentes no caminho que eu estou a descrever. Claro, não sem
problemas e insuficiências sérias... mas, durante o tempo em que
existiram, estas revoluções consseguiram grandes feitos, apesar dos
grandes obstáculos.
Porque é que os obstáculos eram tão grandes? Em primeiro lugar,
porque os imperialistas trabalharam sem cessar para esmagarem essas
revoluções. As revoluções socialistas do século XX tornaram-se
numa ameaça
mortal (e, claro,
moral) à
ordem global estabelecida de exploração, privilégios e desigualdade.
Elas abriram à humanidade novas possibilidades e novos caminhos para
concretizar essas possibilidades.
Os imperialistas não andaram a dizer a Lenine ou a Mao: «Ah, vocês
querem tentar criar uma nova sociedade baseada na cooperação, querem
criar uma economia planificada baseada em dar prioridade a satisfação
das necessidades humanas, querem resolver os problemas da saúde e da
educação e vão tentar fazer com que os que estão no fundo da sociedade
a administrem cada vez mais. Muito bem, porque não tentam fazê-lo
durante vinte anos e depois comparamos os resultados? Veremos então
qual dos sistemas funciona melhor.»
Não! As potências capitalisto-imperialistas cercaram, pressionaram
e tentaram estrangular essas revoluções. Poucos meses após a vitória
da revolução bolchevique de Outubro de 1917, França, Inglaterra,
Japão, Estados Unidos e mais treze potências enviaram dinheiro,
armamento e tropas em socorro às forças contra-revolucionarias na
Rússia que pretendiam restaurar a velha ordem de exploração e
obscurantismo religioso.
Quantos de vocês sabem que o primeiro embargo de petróleo do mundo
foi aplicado contra a revolução soviética? Quantos de vocês sabem que
durante todo o período entre 1917 e 1950 a nova sociedade socialista
da União Soviética ou estava a preparar-se para a guerra, ou a fazer a
guerra, ou a recuperar dos danos da guerra?
Ou então considerem as circunstâncias que a revolução chinesa
enfrentou após a sua chegada ao poder em 1949. Passado apenas um ano,
as tropas norte-americanas estavam a subir pela península coreana
acima e a ameaçar invadir a própria China. Quantos de vocês sabem que,
no início dos anos 1950, o presidente norte-americano Eisenhower, no
seu discurso sobre o estado da Nação, fez ameaças nucleares veladas e
que os imperialistas norte-americanos desenvolveram planos militares
para desencadearem ataques nucleares contra a nova República Popular
da China?
[5]
Esta é a verdade histórica.
Foi nestas circunstâncias históricas que milhões de pessoas na
União Soviética e na China fizeram a revolução e iniciaram profundas
mudanças nas suas condições de vida e na sua forma de pensar. E uma
outra razão porque elas enfrentaram grande obstáculos foi que essas
revoluções não se desenvolveram no vácuo. Elas ocorreram, tal como
as futuras revoluções, em sociedades que ainda continham as cicatrizes
e as influências da velha ordem social, incluindo as divisões de
classes, juntamente com as ideias e tradições do passado. Tudo isto
também faz parte da realidade e dos desafios de fazer a revolução.
É isto que vocês têm andado a aprender sobre a história do século
XX? Será que vocês aprendem que nos anos 1920 – num período em que nos
Estados Unidos os negros eram linchados e em que um dos maiores êxitos
da cultura norte-americanao era o filme racista
Nascimento de uma
Nação, que exalta o Ku Klux Klan – será que vocês aprendem que na
União Soviética estava a acontecer algo totalmente diferente? Nesse
mesmo período, na União Soviética estavam a ser feitos enormes
esforços para eliminar a desigualdade entre as nacionalidades.
A nova sociedade socialista estava a levar a cabo uma luta contra o
chauvinismo histórico da nacionalidade russa predominante. Estavam a
ser canalizados recursos económicos e técnicos para as regiões com
grandes concentrações de nacionalidades minoritárias. O novo estado
soviético estabeleceu formas de governo autónomo nessas regiões que
permitiram que os povos dessas regiões se encarregassem da sua
administração. Promoveu a igualdade de idiomas e chegou mesmo a
desenvolver formas escritas dos idiomas que antes não as
tinham.
[6]
Isso foi um surpreendente mar de mudanças. Reparem que, antes da
revolução bolchevique, a Rússia era conhecida como uma «prisão de
nações», tristemente famosa pelos
pogroms contra os judeus e
pela submissão de nações inteiras. Era uma sociedade em que, antes da
revolução, certas nacionalidades minoritárias estavam proibidas de
usar os seus próprios idiomas nativos nas escolas.
A maioria de vocês não sabe isto porque este conhecimento foi
afastado do mundo académico e da sociedade. Vocês estão cercados e
é-vos inculcada a narrativa oficial de que nada de bom resultou dessas
revoluções – que elas falharam e não poderiam senão falhar.
2ª Parte – As mentiras e os métodos por trás das mentiras
| |
| Mao Tsé-tung proclama a fundação
da República Popular da China na Praça de Tiananmen em Pequim a 1
de Outubro de 1949 |
Há um pequeno problema com isto do «que todos sabemos» sobre o
comunismo. Baseia-se na distorção integral da verdadeira história da
revolução socialista; baseia-se em mentiras descaradas.
Devo dizer que é surpreendente o que passa como sendo rigor
intelectual quando se trata do comunismo. E, tristemente, tanbém é
surpreendente o que aceitam pessoas que se dizem intelectualmente
escrupulosas.
Eu quero desconstruir três exemplos típicos de alto perfil e
grande impacto daquilo de que estou a falar.
Chang/Halliday distorcem totalmente o significado das palavras de
Mao
Comecemos pelo livro
Mao: A História Desconhecida, de Jung
Chang e Jon Halliday. O livro tem sido apresentado como a biografia
definitiva de Mao Tsé-tung e esteve na lista dos livros mais vendidos
do jornal
The New York Times. Jung Chang e Jon Halliday querem
que vocês acreditem que Mao era um hedonista cínico que assassinou dez
vezes mais inocentes que Hitler. Insistem que ele era um assassino a
sangue-frio – mas como não podem substanciar isso com factos, encheram
o livro de mentiras e distorções.
Vejamos o Capítulo 40 do livro, que trata do ano de 1958. Tem o
seguinte cabeçalho em cada página: «O Grande Salto: ‘Metade da
população da China pode ter de morrer’».
[7] Chang e Halliday estão a citar um
discurso de Mao em Novembro de 1958 em que ele disse: «metade da
população da China pode ter de morrer».
Eles fazem essa citação como prova de que Mao não se preocupava com
a vida humana: que deixaria metade da população da China morrer para
concretizar uma visão alucinada de uma nova sociedade. Mas quando se
lê o discurso de Mao, o que ele na realidade está a dizer é o oposto:
«Na construção das obras de irrigação, entre o inverno passado e
esta primavera, removemos mais de 50 mil milhões de metros cúbicos de
terra e pedras a nível nacional, mas entre este inverno e a próxima
primavera queremos remover 190 mil milhões de metros cúbicos a nível
nacional, um aumento bastante maior que para o triplo. Teremos de
lidar com todo o tipo de trabalhos: aço, cobre, alumínio, carvão,
transporte, as indústrias de processamento, a industria química –
[todos] requerendo muita gente. Neste tipo de situação, acho que se
fizermos [tudo isto em simultâneo] indiscutivelmente metade da
população da China acabará por morrer; e se não for metade, será um
terço ou dez por cento, ou seja 50 milhões de pessoas mortas... Anhui
quer fazer tantas coisas, é muito correcto fazer-se muito, mas tomem
como princípio que isso não cause nenhuma morte.»
[8]
Mao está a salientar que o plano económico está a tentar fazer
demasiados grandes projectos de uma só vez, e que a insistir-se nesse
plano, bem... «indiscutivelmente metade da população da China acabará
por morrer» – e
nós não queremos isso! Ele está a avisar
contra o excesso de entusiasmo – porque isso pode levar ao excesso de
trabalho, esgotamento e mortes – e Mao está a fazê-lo de uma forma
altamente dramática.
Portanto, Chang e Halliday retiraram a frase de Mao completamente
fora do seu contexto e inverteram o seu significado. Mentiram. Isto em
si mesmo já seria suficientemente mau. Mas esta mentira é repetida em
análises, jornais e blogues. Propaga-se e é citada tão frequentemente
que se está a tornar num facto estabelecido. A seguir ninguém tem de
provar nada. É um caso encerrado: Mao era pior que Hitler. Isto é
inacreditavelmente desonesto e perverso. E no entanto passa por
erudição.
A desastrada erudição de MacFarquhar convertida em verdade
Deixem-me passar agora a uma prestigiada fonte académica com um
verniz de rigor erudito. Estou a falar do livro
Mao's Last
Revolution [
A Última Revolução de Mao], de Roderick
MacFarquhar, o muito conhecido estudioso da China aqui em Harvard, e
Michael Schoenhals. Este livro foi publicado em 2006 e tem sido
amplamente considerado como o relato «definitivo» da Revolução
Cultural.
MacFarquhar descreve o contexto em que Mao desencadeou a Revolução
Cultural. Eis como o faz: «Vários comentários indicam que Mao ansiava
por uma medida de terror catalítico para iniciar a Revolução Cultural.
Ele não teve nenhum escrúpulo em tomar vidas humanas. Numa conversa
com pessoas da sua confiança numa fase posterior da Revolução
Cultural, o Presidente chegou a dar a entender que o sinal de um
verdadeiro revolucionário era justamente o seu intenso desejo de
matar». E então MacFarquhar apresenta esta alegada declaração de Mao:
«Esse homem, Hitler, era ainda mais cruel. Quanto mais cruel melhor,
não acham? Quanto mais pessoas se mata, mais revolucionário se
é.»
[9]
| |
| Militantes comunistas entram em Pequim
durante a Revolução Cultural |
Bem, isto é uma declaração muito sórdida. Por isso, fui às notas e
fontes no fim do livro e deixem-me dizer-lhes o que diz a nota: «De
uma fonte muito fidedigna vista por um dos autores».
[10] Será
possível acreditar nisto? Ele está supostamente a citar provas do
apetite por sangue que alegadamente motivaram Mao e a Revolução
Cultural. E é esta a documentação que MacFarquhar oferece? Parem e
pensem nesta afronta intelectual. Fornece-se às pessoas provas de que
Mao era um monstro com base num rumor totalmente inverificado e
inverificável.
É escandaloso. É o clássico «confiem em mim, não vos posso fornecer
o discurso, a conversa ou o artigo... mas confiem em mim, é
fidedigno». Faz lembrar George Bush ao desencadear a guerra no Iraque:
«Vejam, Sadaam Hussein está a desenvolver armas de destruição em
massa. Não posso divulgar as provas, mas confiem em mim, as minhas
fontes são fidedignas.» É um rumor mascarado de algo sólido e
incriminatório.
E, a partir daqui, esta declaração, que não pode ser atribuída a
Mao com realismo ou possibilidade de prova, nem citada em nenhum
contexto significativo, é repetida na comunicação social estabelecida
e por outros senhores do mundo académico. Andrew Nathan, um conhecido
liberal estudioso da China, professor na Universidade de Columbia,
incluiu essa declaração atribuída a Mao na sua recensão crítica do
livro na revista
The New Republic.
[11] Eu segui o rasto da recensão de
Nathan, e ela foi reproduzida em diferentes blogues e sítios de
recensão de livros.
Suponhamos agora que um de vocês na audiência está a tentar
aprender sobre a Revolução Cultural e vai à Wikipedia. Bem, na entrada
sobre a Revolução Cultural, encontrarão a seguinte declaração de Mao
Tsé-tung, apresentada como parte das orientações de Mao para a
Revolução Cultural: «Quanto mais pessoas se mata, mais revolucionário
se é». E qual é a fonte? Adivinharam: Roderick MacFarquhar, essa
eminência parda dos estudos chineses.
[12]
A minha pergunta é: porque é que todos esses outros estudiosos não
escrutinaram essa nota, em vez de repetirem essa calúnia
sensacionalista sobre Mao? Porque eles não se sentem obrigados a
provar nada: o projecto comunista foi declarado um desastre e um
horror. E muitos desses e outros ditos estudiosos têm participado no
tecer de uma narrativa das revoluções bolchevique e chinesa baseada em
distorções e deturpações semelhantes sobre o que essas revoluções
pretendiam fazer, o que essas sociedades socialistas de facto
conseguiram e quais as verdadeiras dificuldades e desafios que
enfrentaram.
Eu fiz um desafio público a Roderick MacFarquhar para um debate (o
meu desafio menciona essa nota no final do livro) – e os organizadores
da minha digressão transformaram-no num anúncio pago e submeteram-no a
semana passada ao
Harvard Crimson.
[13] Mas, adivinhem o que se passou?
O presidente do
Crimson recusou-se a publicar o anúncio,
dizendo que era «demasiado controverso».
Duh!
Onde estão os académicos progressistas? Porque não estão a
denunciar tudo isto? Porque muitos deles aceitaram esses veredictos,
num ambiente de ataque impiedoso ao projecto comunista – enquanto
outros ficaram intimidados por aquilo «que todos sabemos» e por aquilo
que se tornou na norma do discurso intelectual: antes que se possa
falar sequer em socialismo, mesmo que de uma forma positiva, é preciso
negar a experiência das revoluções socialistas do século XX.
Entra Naomi Klein
Na realidade, estas distorções anticomunistas impregnam
profundamente o pensamento político progressista. Veja-se o caso da
activista e crítica social Naomi Klein. Aqui, vou basear-me na análise
de Bob Avakian publicada no jornal
Revolution.
[14] Nas primeiras
páginas do livro dela,
A Doutrina do Choque, Klein descreve a
situação nos Estados Unidos após o 11 de Setembro e a forma como a
administração Bush a explorou.
Klein escreve: «De repente, descobrimo-nos a viver numa espécie de
Ano Zero em que tudo o que sabíamos acerca do mundo antes podia agora
ser ignorado como ‘pensamento pré-11 de Setembro’.» E ela tem razão
quanto a isto. Mas depois usa a seguinte analogia: «Ainda que nunca
tenhamos sido fortes no nosso conhecimento de história, os Estados
Unidos converteram-se numa tábua rasa – numa ‘folha de papel em
branco’ em que ‘podem ser escritas as mais novas e mais belas das
palavras’, como Mao disse do seu povo.
[15] Klein está de facto a citar um
pequeno ensaio de 1958 de Mao intitulado «Apresentação de uma
Cooperativa». Mas ela retira essa passagem totalmente do contexto
para fazer parecer que se refere ao controlo da mente de massas não
educadas por parte de líderes totalitários.
Vejamos o que de facto disse Mao:
| |
| Manifestação em Shenyang em 1968 de apoio
ao movimento de massas de incentivo aos estudantes e ex-Guardas
Vermelhos a irem viver nos campos |
«Além das suas outras características, uma coisa marcante que
distingue os 600 milhões de habitantes da China é que eles são ‘pobres
e em branco’. Isto pode parecer uma coisa má, mas na realidade é uma
coisa boa. A pobreza dá lugar ao desejo de mudança, de acção e de
revolução. Numa folha de papel em branco, livre de qualquer marca,
pode escrever-se os mais frescos e mais bonitos dos caracteres, pode
pintar-se as mais frescas e mais bonitas das imagens».
[16] E de seguida
Mao salienta que as massas estão de facto a usar cartazes com grandes
caracteres nas cidades e nos campos para levarem a cabo o debate e a
luta ideológica em massas – e diz que isto é um grande antídoto ao
«marasmo» da sociedade.
Por outras palavras, Mao não estava a dizer, «oh óptimo, os
camponeses são apenas uma massa de betume que nós os líderes podemos
moldar como quisermos». Estava a dizer o oposto do que Klein sugere.
Estava a dizer que serem «pobres e em branco» faz com que as pessoas
não só queiram uma mudança radical como sejam capazes de tomar a
iniciativa de lutar por essa mudança radical. E é claro, quando se lê
esse ensaio, que Mao está a dizer que os «mais frescos e mais bonitos
dos caracteres» e as «mais frescas e mais bonitas das pinturas» estão
a ser escritos e pintados
pelos próprios camponeses – e
que, sim, isso está a acontecer com uma liderança comunista.
No início do ensaio, Mao observa: «Nunca antes as massas populares
estiveram tão inspiradas, tão militantes e tão audazes como agora».
«Inspirados», «militantes» e «audazes»: não é exactamente este o mundo
em que George Bush ou Barack Obama querem que vivamos! Nem é o
estereótipo que Klein insinua, de líderes comunistas que transformam
as pessoas em robôs inconscientes.
Eis aqui três exemplos diferentes de propagação de estrondosas
mentiras e distorções que reforçam a ignorância sobre o comunismo:
desde os autores reaccionários de
Mao: A História Desconhecida;
ao
A Última Revolução de Mao do liberal anticomunista Roderick
MacFarquhar; e à crítica social progressista Naomi Klein no seu livro
 Doutrina do Choque. Como tenho vindo a salientar, os efeitos
disto não podem ser subestimados: uma redução de pontos de vista, toda
uma geração de jovens a quem é roubado conhecimento.
3ª Parte – A Revolução Cultural na China: O que realmente foi
No resto desta conferência, irei utilizar o documento
Comunismo:
O Início de uma Nova Fase, Um Manifesto do Partido Comunista
Revolucionário dos EUA.
[17] Este Manifesto faz um resumo da
história da revolução comunista até agora, dos seus avanços e das suas
lições. Explica como o comunismo evoluiu enquanto ciência viva,
criativa e flexível, desde o seu início com Marx, passando por Lenine,
até Mao e Bob Avakian. Este Manifesto fornece um enquadramento para o
inicio de uma nova fase da revolução comunista. E deixem-me
acrescentar que ninguém se pode considerar informado e actualizado
sobre o pensamento humano emancipador se ainda não leu este Manifesto.
Agora, uma das coisas que ouvimos muito frequentemente ao
discutirmos o comunismo com estudantes é o seguinte: «bem, pode ser
uma boa ideia, mas na prática não funciona». Quero responder a isto,
voltando justamente à Revolução Cultural e entrando naquilo que foi e
no que conseguiu.
Algum enquadramento histórico
A Revolução Cultural de 1966-76 foi o ponto mais alto das
revoluções socialistas do século XX e de toda a primeira fase da
revolução comunista, iniciada com a Comuna de Paris. A Revolução
Cultural foi a luta mais radical e de maior alcance da história humana
pela eliminação da exploração e da opressão e para mudar a sociedade e
criar novos valores e novas formas de pensar.
[18]
Mas a «narrativa dominante» burguesa é que a Revolução Cultural foi
uma purga vingativa dos seus opositores por parte de um Mao sedento de
poder: uma orgia de violência sem sentido e de perseguição
generalizada que mergulhou a China numa década de caos. Não há uma
pinga de verdade nesta narrativa. Mas antes de eu entrar directamente
nisso, quero enquadrar a Revolução Cultural falando um pouco sobre a
sociedade chinesa antes da revolução de 1949.
A vasta maioria dos habitantes da China eram camponeses que
trabalhavam a terra, mas que tinham pouca ou nenhuma terra própria.
Viviam sob o domínio de proprietários rurais que controlavam a
economia local e as vidas das pessoas. Os camponeses lutavam
desesperadamente pela sobrevivência. Nos piores anos, muitos deles
tinham de comer folhas e cascas de árvores, e não era incomum as
famílias camponesas verem-se obrigadas a vender os filhos para pagarem
as suas dívidas. A agricultura estava infestada de ciclos infindáveis
de inundações e secas e fome. Para as mulheres, a sua existência era
um inferno em vida: espancamentos pelos maridos, pés dolorosamente
atados, casamentos arranjados e as jovens forçadas a tornar-se
concubinas dos proprietários rurais e dos senhores da guerra.
Na maior cidade da China, Xangai, estima-se que as brigadas
municipais de saúde pública recolhiam 25 000 cadáveres das ruas por
ano. Ao mesmo tempo, os bairros controlados por estrangeiros
resplandeciam. Num país com 500 milhões de habitantes, só havia 12 000
médicos treinados em medicina moderna e morriam 4 milhões de pessoas
por ano devido a doenças epidémicas ou infecciosas.
[19]
É por coisas destas que as pessoas fazem revoluções. Foi por
isto que milhões de pessoas na China participaram conscientemente na
luta liderada por Mao pela tomada do poder de estado e pela criação de
uma nova sociedade.
Distorções comuns sobre a Revolução Cultural
| |
| Cartaz chinês da Revolução Cultural com
as frases: «Destruir o velho mundo. Construir o novo mundo», 1966.
|
1ª Distorção: Os chamados peritos na China como Roderick
MacFarquhar falam na obsessão de Mao com a revolução, com o combate ao
revisionismo e o impedir a contra-revolução, como se Mao estivesse a
imaginar ou a manipular os inimigos para satisfazer os seus caprichos
políticos.
A verdade é que a revolução de 1949 acabou com o domínio
estrangeiro, os grandes capitalistas e os grandes proprietários
rurais. Mas, logo desde o inicio, houve importantes forças nessa
revolução cuja perspectiva da sociedade não passava de transformar a
China numa grande potência industrial que tivesse o seu lugar na
economia mundial e no sistema internacional de estados-nações. Essas
forças converteram-se numa nova classe capitalista centrada no
interior do Partido Comunista da China e do estado e, por volta de
meados dos anos 1960, estavam a posicionar-se para tomarem o poder. Os
seus líderes, como Liu Shaoqi e Deng Xiaoping, tinham objectivos
coerentes e um programa coerente para a China: acabar com o
socialismo, restaurar a exploração em nome da eficiência e abrir a
China ao capital estrangeiro em nome da interacção com o mundo
moderno. Foi por isto que Mao advertiu contra o revisionismo, que é um
programa e um ponto de vista capitalista expressos numa terminologia
marxista.
2ª Distorção: Os relatos burgueses descrevem a Revolução
Cultural como uma horrível tentativa de Mao de incentivar as pessoas à
histeria generalizada.
A verdade é que a Revolução Cultural foi um levantamento popular
revolucionário em que participaram centenas de milhões de pessoas numa
profunda e intensa luta sobre o rumo da sociedade:
Iria a China socialista avançar na via socialista para o comunismo:
para uma comunidade mundial da humanidade sem classes, onde tenham
sido eliminadas todas as formas de exploração e desigualdade social,
onde o homem tenha deixado de dominar a mulher, onde já não existam
nações dominantes e nações dominadas e em que o próprio mundo já não
esteja dividido em nações, onde tenha sido eliminada a divisão da
sociedade entre os que trabalham sobretudo com as suas mãos e os que
trabalham sobretudo na esfera das ideias, onde já não seja necessário
um estado para impôr o domínio de um grupo da sociedade sobre o outro?
Ou iria a China socialista tomar a via capitalista de regresso à
exploração intensa, à aglomeração nas cidades de migrantes
desesperados à procura de trabalho, à subordinação da mulher e ao
ressurgir da prostituição e da objectificação da mulher – em suma,
iria a China tornar-se na China de hoje?
3ª Distorção: A narrativa burguesa sobre a Revolução
Cultural fala em «desastrosa implementação das utópicas fantasias» de
Mao.
A verdade é que Mao e os revolucionários que lideraram a Revolução
Cultural tinham objectivos coerentes e visionários. Que objectivos
eram esses?
- Mobilizar as pessoas na sociedade para derrubarem essas novas
forças capitalistas e revolucionarem o próprio Partido Comunista.
- Revigorar a revolução, submetendo todos os níveis de autoridade e
governação à crítica e ao questionamento das massas.
- Promover os valores socialistas de «servir o povo» e pôr em
primeiro lugar os interesses da humanidade mundial e combater a moral
capitalista de maximização do auto-lucro e auto-enriquecimento, bem
como a mentalidade confuciana de se curvar perante a autoridade e as
convenções.
- Reconfigurar e revolucionar as instituições e a estrutura da
sociedade: a) para criar um sistema de ensino que, em vez de produzir
uma elite privilegiada, contribua de facto para a elevação do
conhecimento e das capacidades da sociedade e para a eliminação das
grandes divisões da sociedade; b) forjar uma nova cultura
revolucionária, como as obras revolucionárias modelo na ópera e no
ballet que punham uma nova ênfase nos operários e camponeses e na sua
resistência à opressão (em vez dos velhos dramas sobre a corte
imperial) e que criaram poderosas imagens de mulheres revolucionárias
fortes e independentes; c) criar novas instituições de base dentro das
fábricas, escolas e hospitais que verdadeiramente dêem poder ao
povo.
Eram estes os objectivos cruciais da Revolução Cultural; não era
nenhum «utopismo louco».
Uma verdadeira revolução
| |
| Uma foto oficial do início da década de
1970, de promoção do movimento dos médicos pés-descalços
|
Sejamos claros, a Revolução Cultural foi uma verdadeira revolução.
Perturbou a rotina da vida normal; fervia de invenção e inovação;
inspirou dezenas de milhões de pessoas mas também chocou e perturbou
dezenas de milhões logo no seu início. As escolas fecharam; os jovens
foram para os campos para se ligarem aos camponeses, os estudantes de
Pequim foram a Xangai fomentar protestos nas fábricas, os
trabalhadores foram encorajados a erguer as suas cabeças e perguntar:
«Quem de facto manda aqui?» Isto tornou-se muito desordenado.
Havia um debate político e intelectual generalizado: reuniões de rua,
protestos, greves, manifestações, aquilo que ficou conhecido como
«cartazes de grandes caracteres» que continham comentários e críticas
às políticas e aos líderes. O papel e a tinta eram fornecidos
gratuitamente, os edifícios públicos eram disponibilizados para
reuniões e debates.
[20]
Era uma sociedade em mudança e a mudar o mundo de uma forma cada
vez mais consciente. Nunca houve, na história mundial, um movimento
revolucionário com esta dimensão e este nível de consciência. Mao via
os jovens como força catalízadora para despertar e mobilizar a
sociedade. Em 1966-67 havia em Pequim mais de 900 jornais em
circulação.
No Outono de 1966, havia em Xangai cerca de 700 organizações nas
fábricas. Por fim, os operários revolucionários, sob a direcção
maoista, conseguiram unir vastos sectores da população da cidade para
derrubar os seguidores da via capitalista que estavam no comando da
cidade. E o que se seguiu foi extraordinário: as pessoas começaram a
experimentar novas instituições de autoridade política da cidade; e a
liderança maoista pôde analisar e retirar lições dessa experiência e
desses debates.
[21] Nos campos, os camponeses
debatiam como é que os valores confucianos e o sistema patriarcal
ainda influenciavam a vida das pessoas.
E quanto à violência?
Os relatos ocidentais típicos fazem acusações de que ataques
violentos a pessoas e a eliminação física de opositores tinham a
bênção oficial de Mao – e que, quer fosse uma política ou não, a
violência arruaceira era a norma. Estas duas alegações são falsas.
A orientação de Mao para a Revolução Cultural foi claramente
especificada em documentos oficiais amplamente divulgados. Na
Decisão em 16 Pontos, que guiou a Revolução Cultural,
declarava-se: «Onde houver debate, deve ser conduzido através da
argumentação e não da força.
[22] Sim, houve violência durante a
Revolução Cultural. Mas: a) ela não foi a principal característica da
Revolução Cultural – as principais formas de luta foram os debates de
massas, a mobilização política das massas e a crítica de massas; b)
quando os jovens activistas Guardas Vermelhos e outros recorreram à
violência, isso foi claramente condenado e combatido pela liderança
revolucionária maoista – por exemplo, em Pequim, os operários, sob a
orientação de Mao, entraram nas universidades para impedirem as lutas
entre facções de estudantes e para os ajudarem a resolver as suas
diferenças; e c) muita da violência que ocorreu durante a Revolução
Cultural foi de facto incitada por altos quadros seguidores da via
capitalista que tentavam defender as suas posições privilegiadas.
Essa
Decisão em 16 Pontos não foi uma directiva de
circulação restrita entre os círculos internos do partido que de
alguma forma tenha escapado à atenção dos nossos brilhantes estudiosos
académicos. De facto, foi divulgada em toda a China como orientação
sobre as metas, os objectivos e os métodos dessa revolução!
Êxitos reais e sem precedentes
A Revolução Cultural conseguiu coisas surpreendentes e sem
precedentes.
Dizem-nos que Mao era anti-ensino e anti-intelectual. É
falso.
Quantos de vocês sabem que durante a Revolução Cultural o número de
matrículas nas escolas secundarias das zonas rurais subiu de 14 para
58 milhoes?
[23] Ou que o número de matrículas
de operários e camponeses nas universidades disparou? A razão porque
Mao é etiquetado de «anti-ensino» é que a Revolução Cultural desafiou
a ideia elitista burguesa de que o ensino é uma escada para as pessoas
«sobressaírem» ou uma forma de usarem as capacidades e o conhecimento
para obterem vantajas sobre os outros.
Não era nenhum anti-intelectualismo, mas antes uma questão de pôr o
conhecimento ao serviço de uma sociedade que estava a acabar com as
desigualdades sociais. Os antigos currículos universitários foram
revistos. O estudo foi combinado com o trabalho produtivo. Os velhos
métodos de ensino que viam os estudantes como receptores passivos do
conhecimento e os professores e instrutores como autoridades absolutas
foram criticados.
Dizem-nos que Mao não se preocupava com a vida humana. É
falso.
A China, um país relativamente atrasado, alcançou algo que o
país mais rico do mundo, os EUA, não têm conseguido fazer: fornecer
cuidados de saúde universais. Como resultado da Revolução Cultural,
foi estabelecido um sistema de saúde que respondeu e resolveu as
necessidades dos camponeses das zonas rurais da China, os quais
constituíam 80 por cento da população chinesa.
Em pouco mais de uma década após a tomada do poder em 1949, a
revolução conseguiu eliminar doenças epidémicas como a varíola e a
cólera. Foram lançadas campanhas de massas para combater o vício do
ópio.
[24] E
juntamente com a mobilização das massas, houve educação em massa. Isto
era uma característica muito importante e definidora dos cuidados de
saúde na China socialista: maximizar a participação da comunidade e a
consciência e responsabilidade das massas em relação às questões e
preocupações da saúde. Houve simultaneamente uma distribuição
centralizada dos recursos de saúde necessários e uma grande
descentralização.
[25]
Um dos mais entusiasmantes desenvolvimentos da Revolução Cultural
foi o que ficou conhecido como movimento dos «médicos pés descalços».
Eram jovens camponeses e jovens urbanos enviados para os campos que
tinham sido rapidamente treinados em cuidados de saúde básicos e numa
medicina virada para satisfazer as necessidades locais e capaz de
tratar as doenças mais comuns. Em 1975, havia 1,3 milhões desses
«médicos pés descalços».
[26]
Os resultados foram espantosos. A esperança de vida no tempo de Mao
duplicou de 32 anos em 1949 para 65 anos em 1976.
[27] Amartya Sen, o economista
galardoado com o Prémio Nobel, fez um cálculo: se a Índia tivesse o
mesmo sistema de saúde que a China no tempo de Mao, teriam morrido na
Índia menos 4 milhões de pessoas por ano. Isto equivale a um total de
mais de 100 milhões de mortes desnecessárias na Índia desde a
independência em 1948.
[28]
Digam-me qual é o sistema económico-social que valoriza a vida
humana… e qual é o que não o faz.
4ª Parte – A natureza humana pode ser mudada
| |
| Cartaz de divulgação do movimento dos
médicos pés-descalços |
As pessoas dizem que o comunismo não pode funcionar porque vai
contra a natureza humana... que as pessoas são egoístas e só pensam
nos seus próprios interesses... que não terão nenhum incentivo para
trabalharem se não puderem competir para passarem à frente dos outros.
Mas isto não são declarações científicas que descrevem uma natureza
humana imutável. São declarações sobre a natureza humana no
capitalismo, sobre como as pessoas são condicionadas a pensar e a agir
NESTA sociedade.
O capitalismo produz e requer uma certa forma de pensar: a do
«primeiro eu», a de que «o vencedor fica com tudo» e que «a cobiça é
uma coisa boa». E esta perspectiva e estes valores marcam tudo, todas
as instituições e todas as relações na sociedade. As pessoas têm de
competir pelo emprego, pela habitação, por um lugar no sistema de
ensino. Também têm de competir e de se aperfeiçoarem no «mercado» das
relações humanas. Será, então, surpreendente que nesta sociedade as
pessoas sejam indiferentes, insensíveis e mesmo cruéis umas para com
as outras?
É isto que o socialismo, a revolução socialista, muda. Abre toda
uma nova esfera de liberdade para as pessoas mudarem as suas
circunstâncias e a sua forma de pensar. E foi isto que aconteceu
durante a Revolução Cultural.
Na China, durante a Revolução Cultural, havia um sistema económico
baseado na utilização dos recursos em benefício da sociedade e da
revolução mundial. Foram criadas novas relações sociais e novas
instituições que permitiam que as pessoas cooperassem entre si e
contribuissem o máximo possível para uma sociedade libertadora e para
a emancipação da humanidade. O sistema educativo promovia os valores
de servir o povo, de não usar o conhecimento para a auto-promoção
individual mas sim para melhorar a sociedade e a humanidade. Durante a
Revolução Cultural, as pessoas mediam as suas vidas e os actos dos
outros pela lente moral de «servir o povo».
Vocês podem ler entrevistas e livros de académicos como Dongping
Han, Bai Di e Mobo Gao. Estes autores cresceram durante a Revolução
Cultural e participaram nela – e escrevem sobre o que foi crescer no
ambiente social da Revolução Cultural, o que para eles significava
estarem num enquadramento social que valorizava a cooperação e a
solidariedade. Contam como isso afectou a atitude deles em relação a
outras pessoas, o seu sentido de responsabilidade social e a forma
como a Revolução Cultural influenciou o que eles sentiam ser
importante e significativo na vida.
[29]
Uma vez mais, não estou a falar de nenhum tipo de utopia e também
não estou a dizer que tudo foi feito de uma forma perfeita na China
maoista. Mas mudou as pessoas – porque a sociedade socialista cria
este novo enquadramento que permite às pessoas mudarem-se a si
próprias de uma forma consciente.
E quando em 1976 o capitalismo foi restaurado na China e
regressaram as velhas relações económicas do «cão come cão», as
pessoas mudaram novamente: de regresso à velha perspectiva do «eu
contra ti» e «cada um por si». As pessoas mudaram, não porque de
alguma forma se tenha reafirmado uma natureza humana primordial, mas
sim porque a sociedade regressou ao capitalismo.
(continua)
NOTAS